Dinheiro

Por Raquel Azevedo

O Índice Geral de Preços-Mercado (IGP-M) registrou um aumento acumulado nos últimos 12 meses de 17,94%. Esse número de setembro é significativo: o índice, que, como se sabe, é utilizado no reajuste de contratos de aluguel, não sofria uma elevação tão expressiva, no acumulado, desde setembro de 2003, quando atingiu 21,42%. Quando comparamos essa alta com as variações acumuladas (nos últimos 12 meses) do Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), utilizado como parâmetro no reajuste de salários, e do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), que fundamenta as decisões de política monetária do Banco Central, os números começam a nos dizer algo: a alta acumulada do INPC, em agosto, foi de 2,94% e do IPCA, em setembro, de 3,14%. A diferença entre os índices se deve ao fato de que o IGP-M absorve mais diretamente o aumento dos preços das commodities e a flutuação do câmbio. O IGP-M é uma média ponderada entre três outros índices – os preços no atacado para os produtores, os preços no varejo para os consumidores e os preços na construção civil. A pressão de alta vem dos preços no atacado, em que as decisões de segurança alimentar da China e a consequente elevação dos preços das commodities, bem como a desvalorização do real aparecem com mais clareza. Mas o que essa diferença entre o índice que regula os aluguéis e o índice que regula os salários representa?

Uma queda relativa de renda, claro. Estamos diante, aqui, de uma interrupção momentânea dos benefícios que a economia brasileira vinha obtendo com o crescimento chinês. O setor exportador segue sem razões para reclamar, mas poderíamos dizer que a forma como as decisões chinesas afetaram os aluguéis no Brasil nos coloca numa situação semelhante àquela descrita por Branko Milanovic, em Capitalism, alone, no que diz respeito ao efeito do crescimento da China na renda dos americanos. O argumento de Branko é que o crescimento chinês se reflete na economia americana como uma perda relativa de renda. Não fosse o auxílio emergencial, poderíamos dizer que as decisões do governo chinês durante a pandemia e a incompetência do governo brasileiro poderiam ser pensadas como uma queda relativa de renda também por aqui. O que significaria estar no mesmo barco furado dos EUA nesse quesito? Um reforço à xenofobia e ao nacionalismo?

O aumento do preço dos aluguéis em razão desse encadeamento de circunstâncias durante a pandemia nos remete, na verdade, a uma reflexão sobre os limites do mercado como estrutura de organização social. Não uma reflexão moral, mas aquela à que Aurora Apolito nos convidava no artigo sobre o problema da escala. É interessante pensar a passagem de uma escala de organização à outra não como um crescimento contínuo de uma economia local para uma economia global, mas como a capacidade de circunscrever uma dada forma de organização como forma localizada, contingente, não-natural. O esforço de Apolito para pensar uma estrutura capaz de levar em conta a complexidade efetiva de um sistema (a complexidade que decorre de relações estruturadas e não de aleatoriedade) é uma tentativa de localizar, tornar contingente o mercado como forma de organização. Mas lembremos, por um momento, que a definição de passagem de escala que Apolito apresenta logo no início do texto consiste na capacidade de distribuição de serviços em larga escala. Talvez fosse preciso definir essa passagem não apenas como uma transformação na capacidade de distribuição de serviços, mas também como capacidade de distribuição do excedente. O que isso muda na análise do problema de escala? Apolito argumenta, em vários momentos, que o lucro é uma estrutura precária de ordenação quando consideramos o objetivo de otimização da distribuição de serviços em larga escala. Mas se levarmos em conta que estamos diante também de um problema de redistribuição do excedente, talvez fosse preciso fazer o exercício de considerar o lucro como uma forma localizada, circunscrita de distribuição do excedente. Notem que muda o papel do lucro no problema. Não é mais uma forma precária de distribuição de serviços, mas uma forma localizada de renda.

Digo isso porque o problema dos aluguéis é mais um problema de distribuição de excedente do que de bens e serviços. É possível que talvez a renda básica não consiga cumprir essa complexa função de circunscrever as demais formas de renda. Mas aqui importa mais simplesmente ser capaz de cogitar esse ponto futuro (mais em termos de perspectiva na geometria do que em termos temporais) que nos permite circunscrever uma forma de organização que não é capaz de garantir a capacidade de comer e morar em meio a uma pandemia.

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