Por João Bernardo
Uma reprodução nunca reproduz um quadro, antes de mais porque a redução do formato implica modificações na composição. Embora as proporções se mantenham, perde-se o peso e o impacto dos grandes espaços e a subtileza dos espaços menores. Além disso, uma reprodução, mesmo nos casos em que a cor é transmitida com fidelidade, homogeneíza o tratamento das superfícies coloridas, quando o artista recorre nalguns lugares a pinceladas fortes, em contraste com o acetinado de outras zonas. E há o brilho também, que em certas partes do quadro pode ser mais intenso e noutras é esbatido, consoante a tinta, a pasta e a mão do pintor. Um quadro são dimensões, cores e luz, e tudo isto a reprodução não reproduz.
Uma reprodução é uma evocação, e é dentro destes limites que deve ser considerada. Destina-se a reavivar o que possa existir na nossa memória. Mas o que sucede quando nunca se viu o original? Neste caso a reprodução é uma deturpação, porque nada existe para comparar. E mesmo quando se conhece o original, a reprodução pode ter o efeito perverso de adulterar a memória. Um cinzento que na reprodução é azulado, não será que eu o vi esverdeado? E neste castanho que a reprodução me mostra, onde está latente um tom amarelado, não seria um tom avermelhado no original? Não me lembro mais.
Dito isto, para quê apresentar uma reprodução, se nunca é fiel ao original e, pior ainda, talvez corrompa a imagem que conservamos? Mas que fazer, então, não podendo visitar todos os museus de todas as cidades de todos os países?
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Las Meninas é um quadro muito grande (3,205 metros de altura e 2,815 metros de largura, segundo o site do Museo del Prado, onde a obra se encontra), que ocupa praticamente a parede maior de uma vasta sala. A meio dessa sala, ou talvez um pouco mais recuado, é a boa distância para ver a obra.
À primeira vista, podemos julgar que a composição é simples. As figuras parecem dispostas num só plano vertical. À direita um homem e uma senhora com aspecto de freira situam-se um pouco atrás das Meninas, mas sem realce, confundidos com as paredes sombrias. O cortesão cuja silhueta se destaca em contraluz numa porta ocupa o mesmo plano da parede do fundo, mas há como que uma ausência de espaço intermédio, ficando abreviada a parede da direita, por isso todos parecem situar-se no mesmo plano vertical. Como se não bastasse este posicionamento, Velázquez usou os tons e as sombras para acentuar a impressão de um grande plano frontal. Então, reduzido a uma dimensão única, o quadro deveria provocar um enorme tédio, mas é o contrário que sucede, seduz os artistas, fascina os ensaístas, atrai multidões, fixa os olhares. Porquê?
Mantendo-me no âmbito das formas, em contraste com esse plano frontal a que a maior parte do quadro se reduz, há o plano diagonal ocupado pela tela que Velázquez está a pintar. O ângulo agudo desenhado por estes dois planos confere à obra uma inquietação que rompe a placidez das gentis maneiras palacianas, uma inquietação persistente, porque a tela traça um plano que logo se interrompe, mas que o nosso olhar tende a prolongar. Não se trata, então, somente de um contraste estático, mas de um conflito dinâmico entre o plano frontal, que se apresenta figé na pose dos modelos, e o plano oblíquo, que inconscientemente expandimos.
Este conflito entre os dois planos torna-se mais acentuado ainda se observarmos o quadro a partir do fundo da sala, comodamente encostados ao umbral da porta que lhe está defronte. Com esse recuo, parece na verdade que o canto inferior da tela sai do quadro. É a esta distância que melhor podemos perceber o elemento estruturante básico da obra.
A ruptura entre o plano frontal e o plano oblíquo é brutal, e tanto mais brutal quanto o plano oblíquo mostra apenas o cavalete e a esquadria de madeira da tela, ou seja, componentes técnicos do ofício, que na época convinha dissimular, mas que aqui surgem em evidência, deixando para trás as figuras requintadas e palacianas que preenchem o plano frontal. Todavia, este é um aspecto de conotação narrativa, que na estética considero secundário relativamente ao aspecto formal. O contraste existiria sem o aspecto narrativo, que serve apenas para o acentuar.
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A estrutura desta obra não provém somente do contraste entre planos estabelecido no âmbito das formas, que de imediato se impõe à nossa visão. À medida que o olhar se fixa no quadro, apercebemo-nos de outro elemento estruturante — um elemento invisível. E não foi dos seus menores feitos, que Velázquez tivesse conseguido fixar o invisível.
Velázquez — o Velázquez pintado no quadro — está a pintar a infanta, as duas acompanhantes, a anã, o anão e o cão, mas está ligeiramente atrás deles. Como consegue pintá-los pela frente se os vê por detrás? Tal como muitos artistas daquela época e de outras épocas também, tanto antes como depois, Velázquez está a usar um espelho, pintando o que o espelho reflecte. O espelho está onde nós estamos, e não são as figuras reais, mas as suas imagens reflectidas, que o artista observa. Muito antes da era industrial os pintores recorriam a mecanismos por vezes complexos, e a aparente contradição entre a sensibilidade estética e a maquinaria é só isto — aparente. Além de espelhos, usavam-se também lentes e uma diversidade de artefactos ópticos, através dos quais se via o mundo de uma maneira que só os ingénuos pensam que seria natural. David Hockney, uma das personalidades significativas da Pop Art, dedicou todo um livro à utilização da camera obscura e da camera lucida na actividade artística, e para falar deste assunto os pintores estão mais bem situados do que os meros ensaístas. Mas no caso de Las Meninas o instrumento foi simples. A luz reflectida pelos espelhos, sobretudo pelos espelhos fabricados com as técnicas daquela época, era diferente da luz exterior, tinha outra homogeneidade, outra suavidade. Mas então, se Velázquez está a pintar a cena que vê reflectida num espelho, a sua pintura — aquela que ele se representa a pintar — seria diferente do quadro que nós vemos, o ângulo de visão seria outro, porque a tela traça um plano oblíquo relativamente ao plano frontal. Afinal, vemos Las Meninas, mas não sabemos o que Velázquez teria pintado numa tela que só conhecemos por trás.
Há outro espelho ainda, certamente menor, na parede do fundo, que nos mostra uma mulher e um homem. Não se confunde com um quadro, porque os quadros que ornamentam as paredes estão reproduzidos em tons sombrios, praticamente indistintos, e também porque daquele rectângulo emana a luz especial que só os espelhos reflectem. As duas figuras são os monarcas, e o cortesão que vemos ao fundo, em contraluz, tinha, entre outros ofícios, o de abrir as portas para que as majestades passassem sem incómodos. Então, o rei e a rainha estariam onde? Decerto desviados do espelho de que Velázquez se serve, porque não fazem parte do quadro que ele pinta, mas em frente do espelho pendurado na parede do fundo. A imagem reflectida dos monarcas integra o quadro que nós vemos, mas não aquele que Velázquez está a pintar.
Basta a enorme dimensão da tela com que Velázquez se defronta para percebermos que não é do régio casal que ele se ocupa. Aliás, são as Meninas e os anões que estão fixos numa pose, dispostos e encenados para um retrato, enquanto o rei e a rainha, tanto quanto podemos perceber pela imagem difusa do espelho, mantêm a aparência natural de quem está só a observar os outros. Não são as Meninas que vêm ver os soberanos ser retratados, mas os soberanos que as vêm ver a elas. O espelho ao fundo da sala reflecte a passageira imagem dos monarcas, e não é para eles que o olhar do pintor se dirige, mas para o espelho que nós não vemos, porque está onde estamos, e em que se reproduz outra imagem das figuras que vemos.
Este complexo jogo de espelhos reforça a construção da obra, articulando uma estrutura invisível com a estrutura visível.
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A estrutura é ainda mais complexa, porque não existe pintura sem luz. Há sempre a luz exterior, evidentemente, mas há ainda uma luz inerente ao quadro, que dele emana. Um quadro pode ser escuro, pode mesmo ser o preto a sua cor predominante, e apesar disto ser luminoso. Tintoretto sabia do que falava quando afirmou que «a mais bela de todas as cores é o preto», e um quase contemporâneo de Velázquez, o genial Caravaggio, conseguiu fazer com que a cor negra fosse não só luminosa, mas resplandecente, a luz surgindo das trevas.
Pode suceder, porém, que a luz esteja homogeneamente difundida por todo o quadro, um pouco à semelhança daqueles romances em que existe um narrador exterior à obra, confundido com o autor, de maneira a tornar neutra a perspectiva da narração. Não é o que ocorre em Las Meninas, pois ali o feixe luminoso destaca-se num vasto espaço geralmente sombrio. À direita do quadro há uma grande entrada de luz, proveniente de um corredor. Velázquez acentuou que se trata de um corredor porque no umbral pintou o rebordo de uma moldura, o que deixa supor a sua continuação. A luz proveniente desse corredor banha os rostos e a parte dianteira dos corpos das Meninas e dos anões e projecta-se sobre a tela num ângulo superior a noventa graus, porque veja-se como a orla de madeira da tela está bem iluminada. Assim, a diagonal desenhada pelo plano oblíquo do cavalete e da tela contra o plano frontal do resto da obra, que instaurara um dinamismo de formas, é acentuada por outra diagonal, a da luz sobre a tela, intensificando-se o movimento interno de um quadro em que todos os personagens estão parados.
No fundo vemos uma porta aberta sobre um espaço iluminado, mas por ali quase não entra luz. Ilumina a porta e um pouco do patamar e logo se extingue, servindo apenas esteticamente para delinear a figura do cortesão. É uma luz que morre, perante a força da luz lateral, vinda da direita, que assim fica ainda mais patente.
Aquela entrada lateral de luz reforça também a estrutura invisível do quadro, fornecida pelo jogo de espelhos. Nós, os visitantes do museu, os espectadores do quadro, estamos aquém do quadro, não só na realidade, mas no próprio espaço concebido pelo artista, tal como estavam os monarcas, exteriores ao alcance do espelho invisível que tinha como função reflectir a cena que Velázquez, o Velázquez pintado, está a pintar. E é iluminados por essa luz lateral que a rainha e o rei aparecem reflectidos no espelho pendurado na parede do fundo.
Uma tripla estrutura, portanto — a diagonal dos planos, o jogo dos espelhos e os percursos da luz.
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Em Las Meninas não existem as Meninas nem a anã nem o cão nem o anão que o empurra com o pé, não existe o Velázquez pintado nem os soberanos e demais cortesãos. Só existem espaços, cores, luz e as tensões internas. Se uma pintura for uma obra de arte, uma obra de grande arte, deve ser vista estritamente como uma pintura abstracta. Quando numa pintura nada encontramos senão as figuras e a narrativa, então resume-se a uma ilustração, o que é outra coisa.
Se fecharmos as pálpebras durante dez segundos e as abrirmos de novo, tentando restabelecer a primeira impressão, a inalcançável e sempre desejada virgindade do olhar, é notável que uma estrutura tão complexa seja expressa por meios pictóricos tão simples, quase ascéticos. Las Meninas é um quadro austero, com uma paleta que se reduz praticamente a duas cores, o preto e o branco. No branco incluo as várias tonalidades, desde o branco brilhante da infanta até ao branco sombrio da pseudo-monja, e ainda os acetinados das acompanhantes. No preto incluo o ocre pardo do cão e os restantes castanhos. E tudo o que vemos do chão é um espaço percorrido pela entrada de luz lateral, porque sem isto o chão seria tão pardo como resto da sala. Não existe mais nada.
E assim Velázquez conseguiu em Las Meninas aquele que é o traço maior do génio, atingir o máximo de expressão através do emprego de meios mínimos. Nunca com tão pouco se fez tanto. Luca Giordano extasiou-se perante o quadro e considerou-o «a teologia da pintura».
A pintura chinesa obedece a princípios diferentes dos que regem a pintura nascida no ocidente da Europa, e aliás bastaria para isso o facto de na China a escrita ser uma forma de pintura, por vezes mesmo a forma superior. Excluindo, portanto, a arte chinesa, não hesito em classificar Las Meninas como a obra cimeira de toda a história da pintura.
A imagem de destaque reproduz uma fotografia de Absar. Diego Velázquez (1599-1660) pintou Las Meninas em 1656.
Quando menos é mais: o desempenho tecno-po[i]ético de Velásquez e o enunciado crítico-estético de João Bernardo funcionam, ambos, como expressões sub specie minimax. Dir-se-ia, noves fora alguma hipérbole meta-histórica, que um para o outro.
Descrevendo-nos o que viu quando esteve diante do quadro, apenas descrevendo o que o quadro lhe mostrou, João Bernardo produziu uma magnífica análise do mesmo! Um artigo que deveria estar presente nos catálogos do Museo del Prado como aquela que deve ser a melhor apresentação / descrição / análise já feita desse quadro do Velásquez.
Impressionante!