Por Leonardo Gomes Miranda
Foi uma ótima surpresa ler o texto A pandemia e o fracasso político da existência gay, de Jorge Luiz, neste site. O autor fala das aglomerações vistas em festas gays em alguns centros urbanos e expõe a tese de que o desrespeito a normas de isolamento social, algo característico de negacionistas e conservadores aloprados, só fortaleceria, ainda que indiretamente, um modelo político que sempre atacou minorias, incluindo o próprio público LGBTQ. Tratar-se-ia, portanto, de um boicote autoimposto.
Achei a tese sedutora. Afinal, a premissa maior dela é a necessidade de isolamento social em uma época de recrudescimento de casos e hospitalizações, o que não se discute. A conclusão do raciocínio, embora mais discutível, e que não decorre necessariamente dessa premissa, é a de que o descumprimento de normas sanitárias por minorias acaba tendo um efeito político adverso e imprevisto sobre elas. No entanto, penso que a causa dessas aglomerações nesse momento inoportuno, e não a consequência delas, é de fato o problema sobre o qual devemos nos debruçar.
É inegável que a existência gay em centros urbanos gira em torno de festas e baladas. Sufocados pelo preconceito diário, cansados dos cálculos que têm de fazer a todo momento sobre o custo de exporem sua sexualidade no trabalho ou mesmo na família, alguns indivíduos veem esses momentos de lazer como uma oportunidade de escapar do fardo de ser diferente. Esses locais são para muitos gays a única oportunidade de existir em sua inteireza.
Infelizmente, a necessidade de isolamento social imposta pela pandemia acabou privando muitos gays dessa única rota de fuga e, em alguns casos, os trancafiou em lares homofóbicos, com parentes fundamentalistas. Com o passar do tempo, a pressão de estar em uma situação que já seria muito difícil de suportar passa a ser intolerável com a impossibilidade de manter uma vida social que os distraia de seus problemas. A solução adotada por muitos passa a ser então a ida a festas, um estilo de vida já conhecido e que lhes traz algum conforto.
Não há aqui uma tentativa de justificar festas e aglomerações em uma pandemia, o que pode implicar, na prática, a morte de outras pessoas. Seria raso também dizer que todos que se aglomeram são pessoas de alguma forma expostas a situações de extremo estresse decorrente de preconceito de gênero. Apenas se aponta aqui que o problema é muito mais complexo do que apenas afirmar que tais pessoas são irresponsáveis e endossam um projeto político violento e homofóbico. A pandemia só deixou mais visível algo que já existia antes dela e que continuará a existir depois de seu fim. É necessário se perguntar por que as pessoas se engajam em tais comportamentos e, o mais importante, por que a única opção para algumas delas é participar de tais festas. O que está acontecendo em suas vidas e seus lares? Por que não conseguiram ajuda? Por que não encontraram outros lugares de acolhimento além de festas?
É muito sintomático que festas como as que foram noticiadas na mídia ainda sejam o principal lugar de convivência social do público LGBTQ. O caminho não passa por apontar dedos para uma classe inteira, e tentar imputar a ela uma responsabilidade adicional à do resto da sociedade, mas sim por tentar compreender por que a luta pelos direitos LGBTQ não refletiu com seriedade sobre a razão de o culto ao hedonismo descompromissado ainda ser a principal característica dessa comunidade. Talvez seja o momento de problematizar alguns lugares-comuns que ouvimos e nos quais passamos a acreditar sem questionamento. Será que somos realmente tão mais aceitos na sociedade do que antigamente? Por que só festas acolhem homossexuais, e não a família ou a igreja?
O papel central que festas possuem na comunidade LGBTQ pode ser um sinal de que tais eventos funcionam, em pleno 2021, como lugares de liberação sexual e comportamental. Ou seja, ainda é necessário que existam, e isso deve nos incomodar. Não que estejamos pregando um movimento LGBTQ sisudo e chato, mas devemos nos questionar por que precisamos nos refugiar em tais lugares. Por enquanto, precisamos nos manter isolados, e deve ser assim até o fim da pandemia, mas as imagens vistas de aglomerações em festas gays nos fazem questionar o quão livres realmente somos ou se até hoje somos vistos, ou pior, nos enxergamos, como um gueto que se contenta com a balada como prêmio de consolação após uma semana inteira de opressão.
Acho que festas sempre terão a conotação de libertação no mundo gay. Por mais que lutemos ,a destruição total do modelo patriarcal, que engloba os padrões heteronormativos, não é possível. Mas acho interessante, como proposto, que possamos ir além disso.
Festa e balada sim o q gostamos, nada de errado nisso. Tenho a impressão que as festas fazem parte do estilo de vida gay tb pq não construímos famílias tão cedo e ficamos solteiros muito mais tempo que heteros. Mas tb pq não temos famílias (filhos, parceiros de longo prazo) é outro problema. Com uma coisa do texto concordo 100%, precisamos mesmo desconstruir a noção de que somos tão aceitos quanto achamos. Acho que não.
Questão complicada. Festas têm um significado diferente para cada um, é difícil determinar se possuem um sentido compartilhado por todos. De qq forma, é inegável que o público LGBT não tem mta opção para sociabilizar além de festa.
“A existência gay já não andava bem antes da pandemia”, “A pandemia e o fracasso político da existência gay”, e tantos outros artigos que perambulam por estas trilhas se esquecem do fundamental:
Citando Engels, Lukács assevera que “as numerosas vontades individuais que operam na história produzem, na maior parte do tempo, resultados completamente diferentes daqueles desejados – frequentemente até opostos – e, por conseguinte, seus motivos têm igualmente importância apenas secundária para o resultado de conjunto. Por outro lado, restaria saber QUAIS AS FORÇAS MOTRIZES SE ESCONDEM, POR SUA VEZ, ATRÁS DESSES MOTIVOS, quais são as causas históricas que, agindo na mente do sujeitos agentes, transforma-se em tais motivos” (Georg Lukács, História e Consciência de Classe)
Ilustremos com um exemplo “aparentemente” num outro contexto. O divórcio é o rompimento legal e definitivo do vínculo de casamento civil. Esse tipo de separação foi instituído oficialmente no Brasil com a aprovação da emenda constitucional número 9, de 28 de junho de 1977, regulamentada pela lei 6.515 de 26 de dezembro do mesmo ano. Quais as causas da lei do divórcio? É claro que há uma demanda e uma causa social por trás da implementação desta lei. Mas a “força motriz que se esconde atrás” dos motivos estão muito mais próximos do desenvolvimento das forças produtivas do que da emancipação dos cônjuges. Se os meios (materiais e “espirituais”: educação, cultura, religião, etc) que organização social anterior utilizava para produzir um trabalhador necessitavam estar concentrados numa unidade fabril, o lar, organizados com um homem chefe de família, esposa e filhos, etc, com o desenvolvimento das forças produtivas, esta concentração de meios se tornou, não apenas dispensável, mas, sobretudo, ineficiente para a continuidade da produção do trabalhador. Tal qual no modo de produção toyotista, ou seja, também na produção do novo trabalhador os papéis sociais deveriam ir se tornando mais flexíveis. Disto resulta que a “acumulação flexível” do capital não se contabiliza apenas nos cofres dos capitalistas, mas também, nas novas unidades (ou na possibilidade de novas unidades produtivas) que a instituição do divórcio possibilitou e, não devemos nos esquecer, com a intervenção direta da classe gestora do período de ditadura militar. Não queremos com isso dizer que somos contra o divórcio nem a favor do casamento, mas que é essa a “força motriz” que materializa muitas das relações sociais.
Ora, este mesmo desenvolvimento das forças produtivas estariam, porventura, ausentes nas questões de gênero, raça, e, até mesmo, anticapitalistas em geral? Não será esta a razão, ou pelo menos uma das razões, dos “resultados completamente diferentes daqueles desejados – frequentemente até opostos” que Lukács assevera?
E para quem acha que “desenvolvimento das forças produtivas” e “força de trabalho” é exclusividade do modo de produção capitalista…
“Já na cidade-estado de Esparta, cuja sociedade dava mais ênfase ao desenvolvimento militar do que ao cultural, a visão do amor entre homens tinha um enfoque um pouco diferenciado. Era ela estimulada dentro do exército espartano, para torná-lo ainda mais eficiente. Isso se explica por um simples fato: com a existência constante de relacionamentos homoafetivos dentro do exército, quando este ia para a guerra, o soldado estaria lutando não apenas por sua cidade-estado, mas igualmente para proteger a vida de seu amado, o que, obviamente, aumentaria o grau de dedicação do combatente. (VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Manual da Homoafetividade: da possibilidade jurídica do casamento civil, da união estável e da adoção por casais homoafetivos. São Paulo: Método, 2008, p 44)
A polivalência do trabalhador no toyotismo não se realiza somente no âmbito do espaço propriamente do trabalho, até porque não existe um espaço próprio do trabalho – todos espaços são espaços do trabalho, ainda mais com a expansão dos meios técnicos informacionais disponíveis. Nos lazeres e tempos livres, sejam eles “héteros” ou não, aí também se desenvolveram qualificações para o trabalho e a realização do próprio trabalho. Nisto se inserem também os “poliamores”, os “multiculturalismos”, etc.
Prezado Leonardo Gomes Miranda, agradeço a forma generosa com que você respondeu aos meus argumentos e quero dizer que considero seu texto uma sóbria correção ao meu. No meu texto não procurei traçar um retrato completo de como os gays vivem a pandemia, nem busquei supor causas para essas aglomerações. Silenciei sobre coisas importantes que você aborda. A intensificação da experiência da homofobia familiar, o aumento da violência doméstica, efeitos do isolamento sobre a saúde mental, tudo contribui para agravar uma situação que já está dada. Eu acho mesmo que o espaço que temos, que nos foi dado, e com o qual de alguma medida nos conformamos é um espaço pequeno. Quando você pergunta: “Por que só festas acolhem homossexuais, e não a família ou a igreja?” e “”Será que somos realmente tão mais aceitos na sociedade do que antigamente?” é todo um programa de reflexão e de ação que pode vir dessas perguntas. Acho até que articulá-las é um bom começo, já que falta um fórum onde isso possa ocorrer.
Aproveito pra dizer, a você e quem mais ler o comentário, duas coisas:
1) o segundo texto que escrevi pro passapalavra ficou pronto antes dessa sua ótima resposta, e por isso não pode levá-la em consideração
2) se você e qualquer pessoa que se sentiu interpelada por essa discussão quiser conversar sobre esses e outros assuntos, meu facebook é
https://www.facebook.com/joregia.eliwellton
Abraço,
Olá, Jorge Luiz, como vai? Agradeço pela reação ao meu texto. Foi apenas uma tentativa de rascunhar alguns problemas e dar o pontapé para discussões um pouco esquecidas. É necessário fazer justiça ao seu texto, no qual se fala expressamente sobre a necessidade de ir além dos espaços tradicionais de convivência proporcionados pelo “fervo”. Mas senti a necessidade de colocar mais em foco essa sua constatação, tratando-a não como um novo problema a ser explorado, mas como a própria causa do desrespeito ao isolamento social pelo público LGBTQ abordado por você.
Lerei o seu novo texto e tenho certeza que ele será tão enriquecedor quanto o primeiro. Espero que os leitores deste site se interessem ainda mais por essas questões e contribuam com seus próprios textos. Um abraço.
G.O.R e demais, penso que a necessidade de explicar fenômenos da superestrutura pelas relações de produção subjacentes pode nos levar a um modelo heurístico sem respostas úteis para problemas do nosso dia a dia e a um perigoso e indesejável conformismo às avessas. Isso porque, levando o argumento ao extremo, nada estaria sendo discutido de forma correta se não se colocar na pauta a própria destruição do sistema de produção capitalista.
A tese do texto é muito simples: as aglomerações em festas LGBTQ vistas na pandemia são a evidência de que o “fervo” tem sido a única possibilidade de existência política desse público. E deve nos incomodar que festas ainda subsistam como único lugar de libertação. Por que ainda precisam ter essa função diante das supostas conquistas do movimento nas últimas décadas? Trata-se de um problema real e que precisa de respostas que não podem e nem precisam esperar pela reestruturação completa das relações de produção capitalistas.