Por Into the Black Box e Officina Primo Maggio

Publicado originalmente aqui. Este artigo é parte do livro Lutas na pandemia, publicado em inglês pelo coletivo Notes from below e cuja Introdução foi publicada em português aqui. Fizeram parte da publicação os artigos A chamada da morte: pânico no atendimento, Atento: resistindo à chamada da morte, Odisseia da morte: persiste a luta pela vida na Atento e AnkerMag: uma imagem da Bélgica.

A tradução é de Marco Túlio Vieira.

O progressivo surgimento da emergência sanitária causada pela pandemia de COVID-19 não foi simplesmente um processo regular de medidas impostas por cima para contê-la. Pelo contrário, a Itália presenciou uma onda bastante relevante de lutas no interior e contra este cenário radicalmente novo. Ao invés de uma rota passiva em direção à “unidade nacional” para confrontar o “inimigo invisível” nesta nova “guerra” (para usar a linguagem do Governo e da mídia), nós vimos formas heterogêneas de rebelião nas cadeias, abstenção massiva do trabalho, greves, ações de solidariedade e formas de protesto que tornaram visíveis o jeito como, mesmo durante uma pandemia, as desigualdades e injustiças ainda têm um papel crucial na formação de nossas sociedades contemporâneas. Em outras palavras, a “exceção” representada pela erupção da COVID-19 iluminou os modos “normais” pelos quais as pessoas são hierarquizadas.

A divisão de classes está mais manifesta do que nunca, e as maneiras pelas quais gênero e raça influenciam diariamente as desigualdades estão mais evidentes. Nós podemos dizer que um conjunto de contradições está ficando mais evidente e alcançando a percepção das massas. Primeiramente: o embate brutal entre saúde e lucro e a distinção entre reprodução social e reprodução do capital. A demanda por suspender a produção — especialmente nas regiões mais afetadas pelo vírus no norte da Itália — foi duramente combatida pela Confindustria, a associação comercial nacional dos industriais, representando um sério risco para milhões de trabalhadores.

Uma nova constelação de pontos relacionados a essas contradições está surgindo. Apenas para dar alguns exemplos: a abordagem política neoliberal e quase uma década de medidas de austeridade se tornam emblemáticas agora por seus efeitos necrogênicos devido aos cortes nos sistemas públicos de saúde e à privatização de ramos da saúde; a noção de “essencialidade” se tornou o centro da discussão pública para definir quais tipos de trabalho deveriam ser suspensos e quais não, definindo uma nova percepção pública de qual é o real papel de alguns trabalhos.

Uma terceira camada analítica, intimamente relacionada com a última reflexão, deve levar em consideração as formas como as economias contemporâneas são organizadas e o que a crise da COVID-19 nos diz sobre elas. A lógica das cadeias globais de valor foi profundamente abalada e rompida. A ideia de se organizar os processos de trabalho através da fragmentação, individualização e de subsistemas hierárquicos está sob um escrutínio radical por sua incerta sustentabilidade do ponto de vista do capital. A logística, um dos elementos-chave para as cadeias globais de valor, passou nos últimos dez anos de um setor marginalizado e invisível para um setor estratégico e “essencial”. A nova logística metropolitana representada por plataformas como a Amazon e por aplicativos de entrega como o Deliveroo se tornaram infraestruturas centrais da vida cotidiana. Trabalhadores de entrega costumavam ser classificados como “trabalhadores precários” [gig workers] e agora são empregados em uma espécie de “setor essencial” que precisa continuar funcionando durante a pandemia. As milhões de pessoas que ainda estão indo para seus locais de trabalho todos os dias nos lembram o quanto a condição “tradicional” da classe trabalhadora ainda é crucial para as economias contemporâneas, demostrando como o capital é capaz de integrar “novas” e “velhas” condições e explorações dos trabalhadores. Finalmente, a desestruturação dos mercados de trabalho ocorrida nas últimas décadas está manifestando seus efeitos violentos agora. Centenas de milhares de pessoas que estão trabalhando como autônomos com contratos precários ou em mercados informais estão agora sem renda.

Dado este esboço geral, nós agora vamos focar em algumas pesquisas atuais que estamos conduzindo durante a crise.

Logística

A logística foi constantemente considerada crucial nas constantes mudanças das ordens do novo Primeiro Ministro durante a crise da COVID-19. O Decreto do Primeiro Ministro do dia 22 de março (chamado “Chiudi Italia” — “Fechar a Itália”) confirmou os serviços de transporte e logística como atividades essenciais que deveriam permanecer abertas, não mencionando nenhuma restrição em termos de quais itens “essenciais” deveriam ser entregues. Enquanto isso, greves e bloqueios aconteceram em muitos armazéns e empresas de logística antes e depois desta data. Desde o início da crise da COVID-19 muitos protestos espontâneos e organizados aconteceram demandando a garantia das medidas sanitárias de distanciamento social nos locais de armazenamento, limpeza, luvas de plástico, máscaras de proteção e outras medidas de segurança. Do Vale do Pó aos bairros de Roma, da Lombardia ao Piemonte, assim como em outras partes da Itália, muitos trabalhadores pararam. GLS, TNT, DHL, BRT, Amazon (se juntando à Declaração Internacional dos Trabalhadores na Amazon) e outras empresas de logística ainda estão enfrentando greves diárias: os trabalhadores demandam somente a movimentação das mercadorias essenciais e o direito à saúde no trabalho. Logo antes da Páscoa, alguns sindicatos alcançaram um acordo com algumas das empresas de logística, fazendo-as assinar um documento pelo qual as empresas concordavam com os seguintes termos: os trabalhadores garantiriam a movimentação completa indispensável de remédios e alimentos; em relação a outras mercadorias não essenciais, os armazéns deveriam funcionar com um percentual reduzido de suas capacidades. Apesar do acordo inicial, nem as poucas empresas de logística que assinaram o documento respeitaram os termos. A situação ainda está fluída e sem definição, mas a insatisfação dos trabalhadores continua.

Além disso, a cadeia de suprimentos agroindustriais está sob tensão porque as colheitas de muitos produtos estão se aproximando, mas as medidas de confinamento estão bloqueando o suprimento de força de trabalho. Na verdade, trabalhadores imigrantes representam a maioria da força de trabalho neste setor, caracterizado pela hiperexploração e uma hierarquização baseada na cor: o regime de mobilidade restrita das leis de imigração italianas criminaliza estruturalmente os trabalhadores imigrantes para expô-los a mais exploração, sem a possibilidade de apelar por direitos básicos nas condições de trabalho. É por isto que várias organizações e sindicatos estão reivindicando um ato de indenização para legalizar as condições civis de tais trabalhadores, já que a pandemia está chamando a atenção para o seu papel fundamental na cadeia de suprimentos agroindustriais.

Entregadores

Mesmo que os entregadores estejam extremamente expostos ao risco de infecção, as plataformas de entrega de comida nunca suspenderam o serviço. Deliveroo aumentou seu alcance para incluir alguns produtos “essenciais”, como remédios, para ganhar novas fatias de mercado. Além disso, as empresas diminuíram a renda mínima garantida por hora e aumentaram a comissão cobrada dos restaurantes. No começo, muitos restaurantes suspenderam os serviços, mas, à medida que a quarentena se estendeu, voltaram a fornecer serviços de entrega para os clientes.

No entanto, as plataformas não forneceram nenhum tipo de medida de proteção ou benefício emergencial para os trabalhadores, se livrando de qualquer responsabilidade frente a um suposto trabalho autônomo. Uma espécie de reembolso foi prometido aos trabalhadores afetados pelo coronavírus se conseguissem provar o contágio (e nós sabemos que não é exatamente fácil, já que os exames são feitos apenas em pessoas extremamente doentes). Entregadores reclamaram da falta de apoio e organizações sindicais autônomas locais convocaram uma paralização dos serviços e a instituição de uma renda de quarentena. O problema, na verdade, é que grande parte dos entregadores precisam trabalhar para sustentar suas famílias e não possuem outras formas de renda.

Em tal contexto, as plataformas de entrega de comida estão reforçando seu papel de infraestrutura social para a vida urbana e podem lucrar com a economia fechada pós-emergência sanitária.

Ao mesmo tempo, à medida em que esse serviço parece ser essencial nas cadeias de suprimento contemporâneas do capitalismo, os trabalhadores ganham uma nova visibilidade e podem explorar tal papel para reivindicar melhorias nas suas condições de trabalho.

Trabalhadores autônomos

A situação criada pela disseminação do coronavírus afetou empresas e trabalhadores (empregados e autônomos) e provavelmente será muito pesada para muitos freelancers que não podem contar com benefícios sociais, políticas de bem-estar ou reservas e poupanças devido a rendas muitas vezes abaixo do nível de pobreza.

No início de março, a associação de freelancers italiana ACTA, que organiza “a condição profissional”, lançou uma pesquisa (inchiesta-lampo) para coletar dados sobre os efeitos das medidas de combate à disseminação do coronavírus no trabalho dos freelancers. O que é preocupante, em particular, é a perda de renda que já está acontecendo e que irá continuar nos próximos meses. Os serviços tipicamente executados por esse grupo de trabalhadores são programados com bastante antecedência e são fortemente afetados não apenas pelas condições da indústria italiana e estrangeira em geral, mas também pela falta de movimentação de pessoas, na Itália e em outros países. Os resultados mostram que as mulheres aparentemente são mais afetadas do que os homens, em parte porque as profissões que mais sofreram são do tipo que conta com grande número de mulheres, e também porque o fechamento de escolas e creches tem um impacto maior na disponibilidade de mulheres para trabalhar. Na verdade, muitas pessoas acham que deveriam haver medidas compensatórias em favor daqueles que foram impedidos de trabalhar devido ao fechamento das escolas.

Os setores mais afetados ainda são aqueles diretamente impactados pelo lockdown, mas a desaceleração geral da economia está começando a ter um impacto no cenário mais amplo.

De acordo com as medidas tomadas pelo governo italiano durante a emergência, há um bônus de 600 euros no mês de março para freelancers. Isso é muito pouco se comparado a uma perda que promete ser muito maior, mas é um primeiro passo para aqueles que nunca forem cobertos pelas redes de segurança social. Além disso, outras medidas devem ser tomadas quanto às datas de vencimento dos impostos. Finalmente, essa crise reafirma a importância das políticas de bem-estar, não apenas em relação ao serviço de saúde, cujas virtudes e limitações ficaram em evidência, mas também em relação ao trabalho, onde sistemas já testados estavam disponíveis para empregados, mas não para todos os outros trabalhadores.

Alguns elementos de discussão

Em uma era histórica marcada por crises humanitárias, relativa intensificação de fluxos migratórios e pandemias, o transporte de mercadorias representa um dos setores fundamentais para uma economia globalizada. Por outro lado, a emergência sanitária resultante da disseminação da COVID-19 aumentou a percepção de que, em um contexto de cadeias globais de valor e fortes interdependências entre as economias, um choque que atinja um dos elos da corrente vai se propagar e ter um impacto sistêmico. Quando a emergência acabar, de acordo com alguns observadores, o processo de desglobalização vai se acelerar. As interrupções que empresas, indivíduos e governos estão experimentando atualmente nos levam a pensar que a globalização está posta em risco por tais emergências sanitárias.

Bologna ai tempi del coronavirus – fotógrafa: Francesca Blesio

As empresas provavelmente vão levar em consideração as lições aprendidas sobre o potencial colapso das cadeias de suprimentos globais em função desses choques, e isso se refletirá, no futuro, em uma reconfiguração dos modelos de negócios adotados até então.

O que os trabalhadores podem aprender com essa experiência inesperada? Se, como dizem os observadores, por um lado a pandemia demonstrou a fragilidade das cadeias globais de valor e isso vai acelerar a tendência à desglobalização, por outro lado, eles previram um crescimento do setor de logística (apesar da desaceleração do comércio internacional), transportadoras e entregadores (devido à crescente demanda por entregas em domicílio). O novo cenário que está surgindo nos incita a refletir sobre as próximas lutas disruptivas, aprendendo com os conflitos do passado.

Além do mais, existe a possibilidade de uma economia fechada depois da emergência com um crescente papel das plataformas e empresas de varejo. Gigantes da tecnologia estão lucrando com a crise com suas infraestruturas digitais se tornando fundamentais para a vida em sociedade. Isso criará um impulso para mais automação e digitalização dos trabalhos e serviços. A distinção entre trabalho remoto e trabalho presencial parece refletir uma composição técnica do capital diferenciada pela capacidade de digitalização e terceirização. No entanto, a casa do trabalhador não pode ser encarada como um lugar melhor e mais seguro, mas um lugar onde o trabalho se cruza com outras condições como renda, raça e gênero. Nem todas as pessoas têm o mesmo acesso à internet ou têm as mesmas condições de habitação; a casa também pode ser um local para violência de gênero ou hierarquias.

Dito isto, a pandemia está produzindo uma experiência de massas que está abrindo novas energias de conflito em potencial. Portanto, é importante orientar as pesquisas e elaborar hipóteses para as tendências emergentes. Nós precisamos estar prontos para agarrar as oportunidades para verticalizar rupturas potenciais em direção à desestruturação do comando capitalista. Os contornos do sujeito social que vai emergir dentro deste novo cenário ainda são vagos, mas é possível apostar na possibilidade da expressão política de um campo social que não vai aceitar pagar o alto preço desta crise. O desafio é organizar as novas possibilidades de lutas de classes, encontrando as forças motrizes dos sujeitos que possuem visões antagônicas em relação ao sistema atual nos enfrentamentos que já estão em curso. Neste sentido, nós achamos que novas oportunidades para as lutas de classe estão emergindo e que irá crescer o potencial de ação de uma multiplicidade de “novas e velhas” formas de trabalho. Além disso, dois outros campos serão estratégicos: a “digitalização” do trabalho e da vida — incluindo formas invasivas de vigilância social — provavelmente se tornará um novo terreno de conflitos, com formas e dinâmicas a serem inventadas; a reprodução social é um campo de tensão onde novos processos de conflito podem emergir. Dentro deste conjunto heterogêneo de possibilidades, nós achamos que a crise deve ser vista não apenas como um espaço/tempo para a restruturação do capital e de medo social, mas também como a possibilidade de relançar novas configurações de luta.

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