Por Jorge Luiz
É possível fazer, com razoável segurança, algumas previsões sobre o carnaval:
- Alguns governadores vão manter restrições a aglomerações, outros, pressionados por empresários e “cidadãos de bem”, vão voltar atrás e outros ainda não vão nem tentar.
- Em muitas cidades as restrições não vão existir ou vão ser solenemente ignoradas. Essas cidades vão fazer propaganda ativa para juntar o maior número de pessoas que queiram ali curtir o carnaval.
- O Presidente Jair Bolsonaro vai fazer sua aparição pública em uma dessas cidades, de forma bastante espetaculosa, chocando alguns e deleitando outros. Não declarará nada, ou dirá que “o povo é livre”.
- Duas semanas depois, algumas dessas cidades se encontrarão em uma emergência sanitária, com falta de leitos e de insumos médicos — uma situação que será veiculada na imprensa de modo dramático e comovente, causando indignação em uma parcela do público.
A nossa situação é tão previsível que soa repetitivo escrever sobre o carnaval depois de um texto sobre o fim de ano. O que foi dito sobre o Reveillon vale para o Carnaval, para a Festa Junina e — a julgar pela lentidão da vacinação e o tamanho da base parlamentar de Bolsonaro — poderá valer para o próximo Final de Ano.
O que precisamos não é um texto sobre o carnaval, mas uma campanha capaz de juntar a indignação e a revolta dispersos e tornar possível imaginar a derrubada desse governo como algo realizável. As forças políticas organizadas que supostamente poderiam dar direção a uma campanha assim fracassaram até o momento, ou não estão suficientemente interessadas. Marcar manifestações pontuais respondendo a ocorrências midiáticas — um ato no Largo da Batata aqui, depois das manifestações nos Estados Unidos pós-morte de George Floyd, uma carreata acolá, quando a situação em Manaus fica intoleravelmente trágica — isso não é nem será suficiente.
Não culpo a população pelo que está acontecendo. Há uma cadeia de responsabilidade e nela o governo tem precedência. Quem quis culpar a população, foi o vice-presidente Hamilton Mourão: depois do desastre em Manaus, Mourão disse candidamente que o povo brasileiro é indisciplinado. Nas palavras dele:
“Você tem que entender, vamos dizer assim, a característica do nosso povo. O nosso povo não tem, vamos dizer assim, essa imposição de disciplina em cima do brasileiro não funciona muito. Então a gente tem que saber lidar com essas características e buscar informar a população no sentido de que ela se proteja” [1].
Essas palavras têm o tom autoritário de alguém que, infantilizando a população, pode melhor se colocar no papel de patriarca — a liderança necessária àqueles que carecem de disciplina. Brecht dizia que “onde existe opressão, a palavra disciplina deve ser substituída pela palavra ‘obediência’, porque a disciplina também é possível sem o déspota e, consequentemente, tem o significado mais nobre que obediência” [2].
Espero que, em 2021, provemos que Mourão está errado: sejamos desobedientes e disciplinados.
Notas
[1] https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/01/15/governo-faz-alem-do-que-pode-diz-mourao-sobre-colapso-no-sistema-de-saude-em-manaus.ghtml
[2] https://dazibao.cc/textos/cinco-dificuldades-no-escrever-a-verdade/
Mas uma coisa me intriga nisso tudo (e realmente não tenho resposta). Muitas análises (e me parece que essa vai nesse sentido) tratam os trabalhadores como passivos nesse processo de resistência à implementação de medidas sanitárias, colocando exclusivamente (atenção à palavra exclusivamente, pois não estou tirando sua responsabilidade) a culpa sobre os patrões e os governos, especialmente os bolsonaristas. Não haveria entre os trabalhadores uma complacência (de origem cultural, talvez) para com a adoção de medidas mais rígidas? Como explicar, por exemplo, a completa falta de cuidados em ambientes fora do controle patronal e mesmo do governo? No meu bairro ( e em vários outros bairros de periferia) a grande maioria vive como se nada estivesse acontecendo. A molecada vai brincar na rua, os adultos vão jogar futebol, os jovens vão soltar pipa, vão em festas clandestinas, etc. Como explicar isso?
Muito boa sua pergunta, Paulo Henrique. Não tenho uma resposta, acho que qualquer resposta seria uma especulação parcial mas que vale a pena. Já há quem tenha escrito sobre isso aqui e ali. Agora, não considero que tratei “os trabalhadores como passivos”, apenas eu disse que “Há uma cadeia de responsabilidade e nela o governo tem precedência.” O que não quer dizer que ninguém mais seja responsável, ou que as pessoas não sejam responsáveis por si mesmas e não escolham. Num texto anterior aqui no passa palavra, insisti no outro lado do argumento e fui acusado de “culpar as pessoas”. Agora tentei insistir nesse lado (da precedência), e parece que consegui! Abraços bom “carnaval”