Por Z1010010
O Passa Palavra publicou em setembro de 2020 um artigo do João Bernardo onde ele diz o seguinte:
Eu nasci e formei-me politicamente num país fascista, em que qualquer actividade de oposição ao regime era, por definição, ilegal e, portanto, tinha de ser prosseguida clandestinamente. É isto que falta no seu comentário. Então, tente pensar de novo, mas nunca esquecendo que a condição de tudo era a necessidade de preservar o secretismo.
Quando comecei a minha actividade militante o regime fascista no meu país tinha trinta e seis anos de existência. Ao longo desse tempo criara uma rede colossal de informadores, de espiões e de agentes provocadores. Se escrevi colossal não foi por uma figura de estilo, foi um adjectivo realista. Em cada café, em cada restaurante, em cada cervejaria, em cada local público havia pelo menos um informador da polícia política, por vezes mais. Os operadores dos transportes públicos eram com frequência informadores, tal como o eram os motoristas de táxi. Além disso havia as prisões e havia as torturas, para tentar obrigar o preso a confessar as suas actividades e a denunciar a actividade dos camaradas. Era isto que estava presente na nossa mente, desde o primeiro momento em que começávamos a actividade militante. Nunca o esquecíamos, nunca podíamos esquecê-lo. A forma como vivíamos, como agíamos, a estrutura interna das organizações políticas, a autodisciplina que aprendíamos a ter, tudo isto obedecia a uma preocupação constante, a de preservar as condições necessárias à nossa actividade.
Isso significa, em termos simples, que as ruas e as praças não eram um terreno neutro. Tínhamos de construir o nosso terreno. Tínhamos de organizar as redes de pontos de apoio clandestinos onde se escondiam as tipografias e os copiógrafos, tínhamos de organizar as formas de obter essas máquinas num sistema em que a sua aquisição era severamente controlada pela polícia política, tínhamos de organizar a forma de obter o papel e as tintas adequados às impressões num sistema em que a sua aquisição era igualmente fiscalizada pela polícia política, tínhamos de organizar a distribuição do material impresso num sistema em que era proibido vendê-lo e os correios estavam controlados pela polícia política, tínhamos de montar uma rede de pontos de apoio que permitisse aos militantes clandestinos ocultarem-se ao longo de dias ou meses ou anos, tínhamos de arranjar documentação falsa.
[…] Os sistemas repressivos que aqui evoquei, acompanhados sempre pela privação da liberdade e pela tortura, desapareceram exactamente no momento em que se generalizaram as câmaras de vídeo nos locais públicos, a internet, os computadores pessoais, as redes sociais. É este, no plano da obtenção de informações, o equivalente daquilo que é a mais-valia relativa no plano económico. E assim como o toyotismo conseguiu explorar não só a força de trabalho física, mas ainda a força de trabalho intelectual, estimulando os trabalhadores a darem sugestões que melhorem a produtividade das empresas, também as redes sociais não se limitam a captar passivamente as informações, mas estimulam os usuários a fornecer todo o tipo de dados, mesmo sobre as questões mais íntimas, não só sobre o que fazem, mas sobretudo sobre o que anseiam fazer.
Posso garantir, porque desde muito jovem tive experiência disso, que era muitíssimo mais fácil preservar os segredos em sistema de clandestinidade, com o receio permanente da tortura e mesmo o incómodo de alguma vez ser torturado, do que o é com a internet e as redes sociais. E todos aqueles que contribuem para a ilusão de que as redes sociais sejam um terreno neutro, possível de disputar por uns e por outros, estão, em matéria de repressão policial, exactamente na mesma posição em que estão os trabalhadores que não vêem mais longe do que o horizonte da mais-valia relativa.
Num comentário longo, complementou sua perspectiva:
No meu artigo chamei a atenção para o facto de a repressão baseada nas prisões e na tortura ter desaparecido a partir do momento em que se generalizou a fiscalização por vídeo e a captação de informações mediante a internet e as redes sociais. O tipo arcaico de repressão mantém-se em alguns países, nomeadamente em África, onde é maior o atraso económico e tecnológico, mas mesmo aí tende a ser substituído pelas formas modernas. Então, o problema é o de responder à velha necessidade do secretismo nas novas condições sociais e tecnológicas.
E para responder a esse problema a nostalgia das velhas lutas clandestinas em nada ajuda, só prejudica.
A questão é tão importante que merece um comentário extra, e algumas pistas para superar a “nostalgia das velhas lutas clandestinas”.
A instalação e uso de câmeras de circuito fechado de televisão (CFTV) não tem previsão legal. As únicas ressalvas são sobre guarda das imagens, porque rostos são dados biométricos protegidos pelas leis internacionais de proteção de dados (GDPR europeia, LGPD brasileira etc.). As câmeras CFTV estão hoje em cada esquina, e não há gestor de segurança que negue apresentar as imagens à polícia quando solicitado.
Na internet, a situação é difícil.
A legislação sobre internet em vários países obriga os provedores de acesso e administradores de websites a manter registros das conexões, seja permanentemente, seja por um prazo (um ano, no Brasil); isso facilita a uma investigação entender, a partir da conexão de um modem ou de um celular (ambos associados a um IP), por onde alguém navegou, por quanto tempo navegou etc.
As maiores empresas da tecnologia, conhecidas pela sigla GAFAM (Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft), impõem aos usuários tecnologias que permitem monitorá-los em cada passo, interferir no funcionamento de seus aparelhos, direcionar suas opiniões e formar deles um perfil que, sob a desculpa do seu uso para “propaganda”, é vendido a peso de ouro para empresas interessadas no uso intensivo de massas de dados (big data) para maximizar seus lucros.
Para piorar, as mídias sociais criaram um ambiente onde não apenas se estimula cada indivíduo a publicar detalhes sobre sua vida, como também um ambiente onde cada um destes indivíduos exige e cobra dos demais posições sobre tudo, desde a atuação do presidente até uma palavra “errada” dita por alguém. Nas redes sociais as informações estão aí para quem souber usar um raspador de dados (data scraper), coisa que se aprende em menos de um mês e se faz usando qualquer computador doméstico.
É possível para ativistas manter algum nível de privacidade? É possível para dissidentes políticos construir qualquer ação sem ter de recorrer à vida off-the-grid e condenar-se à impotência? Perguntas como essas devem estar na mente de qualquer pessoa politicamente ativa.
Ao ler o artigo, a expressão “construir o nosso terreno” deu o que pensar. Nesta coluna encontram-se textos com informações importantes para que indivíduos cuidem de sua própria segurança nos meios digitais, é o primeiro passo para “construir o nosso terreno”, mas é pouco, dependem em alguma medida de usar infraestruturas de software e de hardware sob controle dos GAFAM. Levar a sério a ideia de “construir o nosso terreno” nos meios digitais exige sobretudo reconquistar o software e o hardware necessários para garantia da segurança dos dissidentes. São tecnologias alternativas pouco conhecidas, ao alcance de qualquer grupo organizado que mobilize os conhecimentos técnicos e os recursos necessários, e nenhuma delas é “ilegal”.
Este ensaio em quatro partes vai mostrar tecnologias, o que está por trás delas, e um pouco de como usar. Não é um manual, os manuais técnicos estão na internet para quem quiser aprofundar, é só uma apresentação. A ideia é apresentar rapidinho o que são servidores ativistas, comunicação distribuída e redes mesh. Aguardem as próximas partes.
Boa prosa essa! E vamos de Matrix, Jitsi, nextcloud, e toda a boa tralha que respeita a privacidade e não pede seu número de celular acompanhado do tipo de sangue.