Por João Bernardo

Caro Lucas, é exacto tudo o que você escreveu neste seu comentário ao artigo «Redes políticas?», de Legume Lucas. Falta uma única coisa. E, sem ela, tudo o que você escreveu deixa de ser exacto. Vou tentar explicar-me.

Eu nasci e formei-me politicamente num país fascista, em que qualquer actividade de oposição ao regime era, por definição, ilegal e, portanto, tinha de ser prosseguida clandestinamente. É isto que falta no seu comentário. Então, tente pensar de novo, mas nunca esquecendo que a condição de tudo era a necessidade de preservar o secretismo.

Quando comecei a minha actividade militante o regime fascista no meu país tinha trinta e seis anos de existência. Ao longo desse tempo criara uma rede colossal de informadores, de espiões e de agentes provocadores. Se escrevi colossal não foi por uma figura de estilo, foi um adjectivo realista. Em cada café, em cada restaurante, em cada cervejaria, em cada local público havia pelo menos um informador da polícia política, por vezes mais. Os operadores dos transportes públicos eram com frequência informadores, tal como o eram os motoristas de táxi. Além disso havia as prisões e havia as torturas, para tentar obrigar o preso a confessar as suas actividades e a denunciar a actividade dos camaradas. Era isto que estava presente na nossa mente, desde o primeiro momento em que começávamos a actividade militante. Nunca o esquecíamos, nunca podíamos esquecê-lo. A forma como vivíamos, como agíamos, a estrutura interna das organizações políticas, a autodisciplina que aprendíamos a ter, tudo isto obedecia a uma preocupação constante, a de preservar as condições necessárias à nossa actividade.

Isso significa, em termos simples, que as ruas e as praças não eram um terreno neutro. Tínhamos de construir o nosso terreno. Tínhamos de organizar as redes de pontos de apoio clandestinos onde se escondiam as tipografias e os copiógrafos, tínhamos de organizar as formas de obter essas máquinas num sistema em que a sua aquisição era severamente controlada pela polícia política, tínhamos de organizar a forma de obter o papel e as tintas adequados às impressões num sistema em que a sua aquisição era igualmente fiscalizada pela polícia política, tínhamos de organizar a distribuição do material impresso num sistema em que era proibido vendê-lo e os correios estavam controlados pela polícia política, tínhamos de montar uma rede de pontos de apoio que permitisse aos militantes clandestinos ocultarem-se ao longo de dias ou meses ou anos, tínhamos de arranjar documentação falsa.

E não vale dizer que isso era só nos fascismos e que havia as democracias, onde reinava a liberdade. Estudem a legislação contra os anarquistas desde os meados do século XIX até à primeira guerra mundial, estudem a legislação anti-operária das democracias nas décadas entre as duas guerras mundiais, precisamente quando os fascismos ascendiam. Estudem a história da repressão até ao início da década de 1980 e verão que o que escrevi acerca do meu país se aplica igualmente às democracias. Só que no meu país a repressão era explícita, enquanto nas democracias a repressão se desenvolveu secretamente, tão clandestina como era clandestina a actividade dos revolucionários. Estudem a formação e a actuação do SAS na Grã-Bretanha e da polícia na República Federal Alemã durante a Guerra Fria.

Com frequência, no Brasil, quando eu ministrava cursos sobre a economia dos conflitos sociais, os alunos perguntavam-me como era possível que os trabalhadores preferissem trabalhar em sistema de mais-valia relativa, se eram mais explorados do que no sistema de mais-valia absoluta. Pior. Como era possível que os trabalhadores lutassem por condições que, afinal, correspondiam ao desenvolvimento da mais-valia relativa. E eu respondia-lhes com outra pergunta: Vocês preferem ser torturados ou não ser? Nunca encontrei ninguém que me dissesse que preferia ser torturado.

Ora, no plano da obtenção de informações a tortura é o equivalente daquilo que, no plano económico, é a mais-valia absoluta. Interrogar é difícil, muito mais difícil do que pode imaginar-se, porque é necessário que o interrogador, ao formular as perguntas, não revele aquilo que já conhece e, mais importante ainda, não revele aquilo que ignora. A tortura é um método pouco rentável de recolher informações.

Observem a cronologia. Os sistemas repressivos que aqui evoquei, acompanhados sempre pela privação da liberdade e pela tortura, desapareceram exactamente no momento em que se generalizaram as câmaras de vídeo nos locais públicos, a internet, os computadores pessoais, as redes sociais. É este, no plano da obtenção de informações, o equivalente daquilo que é a mais-valia relativa no plano económico. E assim como o toyotismo conseguiu explorar não só a força de trabalho física, mas ainda a força de trabalho intelectual, estimulando os trabalhadores a darem sugestões que melhorem a produtividade das empresas, também as redes sociais não se limitam a captar passivamente as informações, mas estimulam os usuários a fornecer todo o tipo de dados, mesmo sobre as questões mais íntimas, não só sobre o que fazem, mas sobretudo sobre o que anseiam fazer.

Posso garantir, porque desde muito jovem tive experiência disso, que era muitíssimo mais fácil preservar os segredos em sistema de clandestinidade, com o receio permanente da tortura e mesmo o incómodo de alguma vez ser torturado, do que o é com a internet e as redes sociais. E todos aqueles que contribuem para a ilusão de que as redes sociais sejam um terreno neutro, possível de disputar por uns e por outros, estão, em matéria de repressão policial, exactamente na mesma posição em que estão os trabalhadores que não vêem mais longe do que o horizonte da mais-valia relativa.

Este artigo está ilustrado com um detalhe de um dos painéis do Jardim das Delícias Terrenas, de Hieronymus Bosch, pintado numa data incerta entre 1490 e 1510.

3 COMENTÁRIOS

  1. João Bernardo,
    sem dúvida muita coisa mudou desde a época em que você se formou na militância clandestina. Sinto que hoje o que está presente na mente da maioria dos e das militantes é algo bastante melancólico. Varia desde as ilusões de grandeza de quem está certo de que a revolução está logo virando a esquina (conduzida por sua fração da quarta internacional, ou pela organização político-“militar” supostamente em ascenção), até o desalento que já se perdeu da lucidez. A época em que você se formou era uma época de acontecimentos com significados intensos e mobilizantes, para a totalidade da militância e para parte dos e das trabalhadoras. O resultado de uma guerra tinha o poder de oxigenar qualquer pequena chama e o socialismo parecia algo que estava prestes a acontecer.
    Talvez o que vocês tinham era uma verdadeira retaguarda, que possibilitava um teatro de operações e a logística necessária para realizar a guerra contra um regime político e um sistema social. Os poucos casos que conheço hoje de organizações e militantes que tentam imitar as formas da clandestinidade do ciclo dos anos 60-70 parecem gastar muita energia e recursos nesta emulação, ao tempo em que suas organizações penam por manter alguma relevância política ou mesmo social no atual contexto. Por outro lado, os setores técnicos da militância se distanciaram tanto do proletário comum e corrente, que são até poucos os e as militantes que se propõe iniciar-se nestas sendas, que demandam muito tempo de aprendizagem para uma aplicação limitada. Gosto da literatura que conta as anedotas e os detalhes das operações clandestinas dos anos 70. Um plano que envolva 10 pessoas, das quais 6 não se conhecem, 2 carros, 2 endereços, e uma coordenação de horários, certamente é algo que demanda muita cabeça e preparação para ser bem executado. Mas pode ser explicado sem grandes dificuldades a cada pessoa envolvida. As vezes é tão simples como: ir vestido de tal forma a tal lugar, esperar ver tal pessoa, vestida de tal forma, trocar de pastas com esta pessoa, entrar num carro que estará estacionado en tal lugar, etc. Por outro lado, proponho o desafio a qualquer pessoa que esteja lendo este comentário, que trate de entender cabalmente como se envia um email encriptado, ao ponto de sentir que realmente sabe o que se está fazendo e porquê. Se até contando com companheiros e companheiras especializadas neste campo, é algo muito difícil de entender, e entendê-lo plenamente nos custa horas, com resultados extremamente incertos. Isso para não mencionar o fato de que a imensa maioria dos e das militantes hoje não encontra qualquer utilidade em enviar emails encriptados, pois a enorme maioria das comunicações ocorre pelo celular ou presencialmente. Então o debate passa a ser qual aplicação utilizar, e estão os que dizem que uma é melhor, os que dizem que outra é melhor, em quem confiar, e com quais critérios técnicos?

    A internet não é um território neutro, e gostei muito da ideia de que é necessário então criar nossos próprios terrenos. Assim como a rua também não é neutra, e existe o risco constante de ser abordado por uma força repressiva ao colar cartazes. Também com o tempo os cartazes serão arrancados, por dedos ou pela chuva e pelo sol. Não são os cartazes o que torna a rua nossa, mesmo porque são colados na calada da noite, às escondidas. Mas neles está viajando uma mensagem que quer chegar a outras pessoas.

    Evito ser um determinista tecnológico neste sentido. O Legume fez uma distinção, nos comentários de seu texto, na qual os videos tenderiam a ser personalistas e os podcasts não. Não existe motivo para este esquema, dado que os vídeos podem não conter rostos humanos, podem contar com muitas vozes diferentes. Por outro lado, estou certo de que se o Jones Manoel lançar um podcast, a mesma lógica que se aplicava aos seus vídeos se aplicará ao podcast. O que nos leva a outra questão, que é a força do carisma. A tradição dos e das oradoras nos ambientes de agitação proletária é tão internacional como a classe. O furor e a emoção evocada pela palavra falada em presença é inigualável e foi a lenha que fez queimar tanta história de lutas anônimas pelo mundo afora. O ser humano é um animal social e o tempo inteiro nos buscamos, analisamos instintivamente as emoções daqueles ao lado. Se sentimos medo, transmitimos medo. Se sentimos coragem, transmitimos coragem. Como fazer isso em uma época de fragmentação e isolamento? A palavra escrita não basta. A única coisa que eu tenho como certa para mim, é que é necessária uma forma de comunicação “para dentro do movimento”, e outra “para fora”. A internet nos engana fazendo pensar que estamos falando “ao mundo”. Mas enfim, já começo a tropeçar em novos velhos problemas quando se trata de pensar uma demilitação entre um “nós” e um “resto do mundo”…

  2. Lucas,

    Não tenho nostalgia do passado, que é fácil ser idealizado por quem não o viveu. E se alguma coisa a história nos ensina de forma indubitável é que ela não se repete. A história não se repete, mas muitos problemas mantêm-se, e um deles, para os anticapitalistas, é o de saber como será possível difundir as nossas posições e, ao mesmo tempo, manter o necessário secretismo.

    Isso não é um problema para os identitários, quaisquer que sejam as suas presumidas identidades, porque tudo o que desejam é inverter as hierarquias e integrar as elites existentes ou passarem eles a constituir uma nova elite, mas mantendo-se o modo de produção e as relações sociais de trabalho que o fundamentam. Aliás, a renovação das elites dará novo fôlego ao modo de produção. Os identitários são os renovadores do capitalismo, por isso são alheios a toda a problemática do secretismo. E as redes sociais, tal como existem, são o instrumento adequado à sua promoção como novas elites.

    No meu artigo chamei a atenção para o facto de a repressão baseada nas prisões e na tortura ter desaparecido a partir do momento em que se generalizou a fiscalização por vídeo e a captação de informações mediante a internet e as redes sociais. O tipo arcaico de repressão mantém-se em alguns países, nomeadamente em África, onde é maior o atraso económico e tecnológico, mas mesmo aí tende a ser substituído pelas formas modernas. Então, o problema é o de responder à velha necessidade do secretismo nas novas condições sociais e tecnológicas.

    E para responder a esse problema a nostalgia das velhas lutas clandestinas em nada ajuda, só prejudica.

    Como sempre, a arte é precursora, porque a imaginação do artista — se ele for realmente artista — não sofre as limitações que a inércia impõe ao desenvolvimento social. Por isso Oscar Wilde pôde dizer que a realidade imita a arte. E neste caso, mal as novas tecnologias começavam a despontar, já um artista mostrou que a nostalgia pelas velhas formas de clandestinidade estava condenada ao fracasso, num destino entre o trágico e o ignóbil. Refiro-me ao romance Nada, de Jean-Patrick Manchette. Dois anos depois, Claude Chabrol transpôs este romance para um bom filme, com o mesmo nome, respeitando o tom e o ritmo do original. É um romance que seria urgente ler e é um filme que seria urgente ver.

    E hoje, quarente e oito anos depois de Nada ter sido escrito, o que fazer? No Brasil, na época em que o Movimento Passe Livre (MPL) era relevante, o MPL da capital de um dos estados realizou uma acção ilegal e filmou-a, registando os rostos dos participantes, para logo em seguida colocar o vídeo na internet. Narcisismo, claro, mas isto não explica nada. O que é que levou aquele bando de imbecis (decerto não é por acaso que a palavra imbecil, pela sua terminação invariável, serve para todos os sexos do arco-íris) a juntar-se para realizar uma acção imbecil, registada num vídeo imbecil? É esta a questão, ou melhor, a questão é saber como fugir disso.

    Não pretendo apresentar nenhuma solução para o problema, já não tenho competência para isso. Pretendo apenas chamar a atenção para o problema e sublinhar a urgência da sua solução.

  3. eu poderia propor um jogo de inversão.
    Acredito que a maioria dos e das militantes hoje em dia sentem uma recorrente sensação de que suas atividades são secretas. Mas isto num mal sentido. É um secretismo que nos foi imposto, uma irrelevância.
    O narcisismo contemporâneo tem um algo de desesperação, de ataque de pânico. Existe toda uma massa de proletários e proletárias que já quase não consegue viver uma experiência sem comunicá-la, sem gerar imagens que funcionam como prova desta experiência vivida. Sem alguma prova digital, para estas pessoas é como se nunca tivesse ocorrido. É inclusive uma forma de calar o silêncio e de ocupar o tempo morto. De fato, é uma força de trabalho bastante preparada para o protocolo de comprovar a tarefa realizada por meio de uma foto ou de um vídeo, como nos Flagrantes Delitos recentes.
    É preciso urgentemente fomentar espaços onda possamos ter experiências coletivas genuínas, que nos afastem do isolamento e da dependência das redes sociais, das séries e filmes oferecidos em atacado. Apenas em ambientes assim é possível cogitar algum grau de secretismo (ou mesmo viver uma vida digna e interessante…)

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