Por Legume Lucas

Há alguns anos fiz parte do primeiro movimento no Brasil a utilizar massivamente as redes sociais como forma de mobilização. Naquele momento entendíamos que elas eram um importante espaço de divulgação das ideias, manifestações e propostas do movimento. Isso permitiu que os chamados, fotos, relatos e ações tivessem uma grande amplitude e que a ação das pessoas nessas redes se massificasse para os mais diversos locais do país. Pessoalmente tinha a função de ser uma figura pública desse movimento e, embora não produzisse conteúdo nas redes sociais, tinha muitas das minhas falas, fotografias, entrevistas, distribuídas por elas. Com isso, por mais que insistíssemos em todas as nossas falas que não éramos líderes, era assim que as pessoas nos tratavam nas ruas, chegando ao que para mim era absurdo: as pessoas pedirem para tirar fotografias conosco em manifestações, desconhecidos nos pararem na rua para conversar, entre outras excentricidades. Há quem considere que deveríamos ter ocupado esse papel de figuras públicas e orientado as pessoas para a transformação que queríamos. Porém, para nós — mesmo com o milhar de diferenças que temos — aquele não era o caminho de transformação que pretendíamos, pois considerávamos que a política precisa ser feita entre iguais e de forma horizontal.

De lá para cá muito se tem debatido sobre o papel daquelas mobilizações, com interpretações das mais variadas, e não é disso que pretendo me ocupar agora. O ponto é que tem ganhado cada vez mais espaço a discussão sobre a ocupação das redes sociais pela esquerda. O uso dessas redes mudou de forma e de escala nos últimos anos. Boa parte das diversões dos trabalhadores passou a ocorrer em meios virtuais. Isso transferiu parte relevante da nossa sociabilidade para esses meios, seja o jogo on line, o grupo de mensagens entre amigos ou colegas de turma, o canal que comenta séries ou aquele que faz streaming de pessoas jogando. Em toda essa rede, desde os espaços mais abertos aos, talvez principalmente, chans mais obscuros passaram a ter uma forte atuação da direita. Tem-se defendido que parte do crescimento da direita se deve aos setores progressistas terem relegado esses espaços ao segundo plano. Como parte da solução desse problema, começaram a ganhar muito peso as figuras de produtores de vídeo de canais de YouTube.

A interação proposta por plataformas como o YouTube ou o Instagram segue uma arquitetura específica, onde o espectador produz uma conexão direta com o emissor, o comunicador conversa diretamente com cada um dos seus seguidores, gerando uma sensação de proximidade. Ao mesmo tempo, o que une as pessoas que assistem àquele canal não são suas experiências de trabalho, ensino, ou moradia; a união se dá justamente em torno de uma pessoa. Na medida em que essa pessoa produz vídeos que geram engajamento na rede, o papel que ela ocupa na vida dos usuários passa a se assemelhar aos outros produtos da indústria cultural. Nesse sentido, independentemente da qualidade do material produzido, a forma leva a que essa politização aconteça pela adesão: se tornam fãs daquele ou daquela figura política. Isso independe dos produtores fazerem parte de organizações políticas ou incentivarem a atuação política de forma coletiva. A maior parte da centena de milhares de pessoas que o assistem é exatamente aquilo de que a plataforma mesmo a chama — “seguidores”. Essa relação explica as reações violentas quando essas figuras recebem críticas, bem como a pouca capacidade de ação dessa massa de seguidores. Não à toa, nas aparições públicas presenciais desses produtores se formam filas para tirar fotografias ou pedir autógrafos. Cabe se perguntar qual é a ação política que essa relação pode gerar?

Não se trata de pensar que não é possível se mobilizar nesses espaços, mas cabe pensar como fazer isso. Neste sentido merece atenção, quando pensamos em redes sociais e mobilização, o #BrequedosApps. Como já foi dito neste site, os entregadores souberam utilizar os aplicativos de mensagens usualmente utilizados para enviar fotos, notícias falsas e verdadeiras, falar besteiras, como uma forma de pensar e organizar a ação política. Emblematicamente, o que mais ganhou destaque nos meios esquerdistas foi a figura particular de um entregador, o Galo, que tinha baixíssima adesão na categoria e quanto mais era colocado pelo público no papel de liderança, mais resistência sofria entre os próprios trabalhadores. Enquanto estes buscavam, com inúmeras dificuldades, construir uma política horizontal entre os entregadores para fazer uma ação direta de impacto no chamado capitalismo de plataforma, parte da esquerda procurava incentivar novas lideranças. A classe em sua mobilização construía, na prática, novas formas de sociabilidade invertendo a função do grupo como forma de distração, e da rede social como exploração pelo engajamento passivo, para a utilização dessa estrutura técnica como espaço de deliberação real sobre os ritmos de trabalho e as formas de lutas.

Uma vez que a sociabilidade encontra-se cada vez mais centrada nesses espaços virtuais, é neles que as pessoas discutem suas vidas, que falam das dificuldades que têm na vida. O que a extrema-direita tem sabido fazer é associar esses problemas reais que as pessoas expressam nesses meios às suas bandeiras e pautas, oferecendo uma articulação entre o particular e o geral. A reversão desse processo passa pela necessidade da esquerda em conseguir novamente articular os sofrimentos que sentem os trabalhadores e trabalhadoras em seu cotidiano, com a estrutura social capitalista em que eles se inserem. A luta dos entregadores mostrou, apesar de muitas dificuldades internas, que há espaço para isso.

Se pretendemos tirar lições concretas das mobilizações nas redes sociais para construir outra sociedade, cabe pensar não apenas em que conteúdo colocaremos nelas. Na medida em que esses conteúdos se inserem em uma estrutura na qual cada elemento é determinado e determina reciprocamente o todo, ele provavelmente reforçará a estrutura que pretende combater. Com isso não pretendo defender que criemos redes sociais de esquerda, pois isso seria apenas falar para nós mesmos. Nosso trabalho, sem dúvida mais difícil, precisa ser o de se apropriar e retirar as técnicas que estão presentes nessas redes e inseri-las em outras estruturas sociais.

As imagens que ilustram o artigo são de Prateek Katyal e Code Ninja

9 COMENTÁRIOS

  1. Bem colocado, Legume. Tenho pensado nos últimos meses em escrever algo nesses moldes.

    Acho importante destacar também que o exemplo que você deu, do Galo, alcançou essa visibilidade em decorrência da afinidade ideológica com aqueles que o promoveram em decorrência da luta. Mas não é a organização dos trabalhadores que ganhou com essa visibilidade personalizada nele. Outro exemplo de militantes que se criam em cima das Redes é o Jones Manoel, com este o buraco é ainda mais embaixo. Não é um trabalhador selecionado na luta, é um intelectual aos moldes do ‘Que Fazer?’, visando o uso das redes sociais para pensar numa ‘consciência vinda de fora’. Se no primeiro exemplo, do Galo, há um engajamento a partir da luta, com o Jones há um engajamento pelo princípio, e este não se reflete na luta — isto é, onde os trabalhadores são protagonistas na luta de classes — mas no engajamento pura e simplesmente para a linha do partido.

    “– Ah! Mas qual o problema em ser Youtuber? ”

    Não é um problema e não é a produção de conteúdo que está sendo criticada. O problema é que o mesmo dá a entender que a sua profissão e sua militância, ambas no Youtube, vão no mesmo sentido. É por confundir sua militância com seu emprego que o Jones demonstra que a sua importância política é mais engajar trabalhadores em sua linha ideológica (bem problemática, por sinal) do que incentivá-los à luta de classes propriamente. Por sinal, tanto o seu trabalho quanto a sua militância são patéticos.

    É por entender que as redes sociais são um dilema, podendo servir de espaço de discussão de trabalhadores, como também para estimular burocracias em meio a estes, que artigos como esse são fundamentais.

  2. Interessante como vcs ainda veem as redes com olhos analogicos. Pensando a sua utilizacao pautatada na antiga logica de assorciar-se a – e dai surgem propostas e normas que considero fechadas do ponto de vista da quantidade de informação e da impropria comunicação ja que as plataformas são virtuais. Mesmo dentro da questao da horizontalidade, ja estamos como vivencia entre os jovens, do uso simultâneo da verticalidade e horizontalidade. Parece que temos ainda grandes grupo de pensadores a esquerda preso nos velhos modos de interagir e comunicar. Presos a procura da maneira certa. E nao tem. Vivemos quebrando paradigmas tdos os dias. Estamos na ERA DA INFORMAÇÃO. Fico surpresa como a direira ja entendeu e usa e abusa dos novos recursos. E a esquerda parece um senhor bem intencionado com medo de apertar o botão.

  3. Legume,

    gostei do artigo, mas o ínício é meio surpreendente para mim. Foi a primeira vez que vejo alguém do Passe Livre dizer que as mídias sociais foram usadas massivamente como forma de mobilização. Você não reduz a mobilização a isso, mas para quem lê de fora pode reforçar o que aparecia na grande imprensa, de que se tratava de movimento criado pelo facebook e coisa do tipo, quando na realidade era consequência de militância real, cara a cara, nas escolas, sem a qual as mídias sociais nada seriam para mobilização, uma vez que o MPL se construiu como referência através da sua militância real.

  4. O penúltimo comentário acima termina dizendo que «a direita já entendeu e usa e abusa dos novos recursos. E a esquerda parece um senhor bem-intencionado com medo de apertar o botão». Independentemente de saber o que, nas circunstâncias actuais, se entende por esquerda, é curioso verificar que estes meios técnicos de comunicação sejam considerados neutros e que, se os defensores do capitalismo os usam, os anticapitalistas possam usá-los também. Mas os defensores do capitalismo usam e abusam desses meios técnicos precisamente porque eles não são neutros e revertem sempre a favor da organização capitalista da sociedade, além de constituírem veículos privilegiados de recolha de informações e de controle policial.

  5. Alfredo,
    Historicamente a relação da esquerda com a chamada “liberação de militantes” tem resultado na formação de burocracias que decidem o que os outros devem fazer. Não chega a ser surpreendente que determinados grupos tentem reproduzir em espaços virtuais o que já faziam nos espaços físicos.
    Carla,
    O artigo se dedica a analisar justamente as formas de mobilização que utilizam essas redes, inclusive dá dois exemplos que considero positivos dessas. Porém, me parece que você propõem uma emulação das ações da direita pela esquerda. Para mim isso resultaria em trabalharmos com os mesmos fins que eles.
    Leo V,
    Me parece claro, e já disse isso em entrevistas na época, que as redes sociais foram usadas como ferramentas de amplificar as convocações. Sem dúvida a efetividade delas se dava por reconhecerem o MPL como um emissor válido daquela mensagem, e isso vinha da prática do movimento fora das redes. Penso que as mobilizações nas redes, para serem efetivas, precisam ter essa articulação com um elemento que passe confiança para quem recebe a proposta de ação. A direita no WhatsApp me parece utilizar bem esse mecanismo, pois as pessoas confiam na mensagem recebida pelo tio, pelo colega de trabalho, pelo fiel da igreja.

    João Bernardo,
    Praticamente no mesmo momento que li esse comentário me deparei com esse tweet: https://twitter.com/marcogomes/status/1307775429022019585?s=20

  6. realmente a direita vem assustando com o seu uso da internet, e acho que já passamos a curva em que a internet era vista como o reino da liberdade para o momento em que ela se revela um lugar horrível perfeito para várias modalidades de guerra psicológica.
    A dinâmica das lutas sociais pode trazer essa urgência do uso frenético das redes, em escalas que muitas vezes superam as expectativas e os funcionamentos normais idealizados por programadores e por censores no mundo inteiro, não por outro motivo o botão de “desligar a internet” tem sido tão acionado no mundo recentemente. Por outro lado, países como a China e a Rússia já nacionalizaram, ou estão terminando de nacionalizar, suas redes de telecomunicação, o que torna a margem de ação extremamente mais curta e também obstaculiza a internacionalização da classe trabalhadora por meio do intercâmbio de comunicações, experiências, notícias internacionais, etc.

    Mas a formação da classe não ocorre apenas nos momentos de auge de lutas. Acho que devemos encarar a produção de conteúdos diversos nas redes assim como antigamente as organizações proletárias criavam seus jornais, revistas, cadernos de formação, etc. É fácil tirar um sarro dos partidos que ainda imprimem panfletos em A4 apertando as margens para que entre toda a a análise sobre a guerra da síria e as consignas revolucionárias ao final. Que tipo de conteúdo escutaria um trabalhador no trem na hora e meia de viagem de volta para sua casa? Acho que desde que os anarquistas e os setores radicais da social-democracia imprimiam livros de teoria em imprensas clandestinas, o objetivo era fortalecer o movimento nos momentos de calma, estimular a formação dos e das trabalhadoras, ganhar certas posições, dar fundamentos para debates que ocorrem cotidianamente entre trabalhadores, oferecer pontos de vista e ferramentas para a atuação. Estas funções não estão ligadas diretamente com a convocatória concreta a este ou aquele evento massivo, uma “luta concreta”, mas que na sua capacidade de capilarização são o que pode chegar a dar mais potência a uma convocatória, e que quando esta convocatória ocorra, não conte apenas com trabalhadores atomizados, mas também com setores mais consolidados capazes de sustentar as lutas com determinação, sem ter que esperar que outros digam o que fazer.

  7. Lucas,
    Concordo plenamente que a formação não se dá apenas nos momentos de luta e que precisamos pensar em como fazer isso. Porém, o YouTube é uma plataforma específica de uma empresa, produzir material para ele como formação teria algo de análogo com mandar cartas para o Guardian para formar os trabalhadores. Tendo a achar que os vídeos tem o problema de identificação da pessoa com o público e não das ideias, nesse sentido penso que os podcasts podem ser um caminho mais interessante para essa formação.

  8. Os podcasts estão em um momento parecido com o início dos blogs, porém agora temos as redes sociais e uma maior popularização da internet. Por não estarem organizados em redes sociais e a monetização ainda ser um desafio para as empresas de tecnologia, há uma certa liberdade de criação para os podcasters e me parece possível atingir alguns segmentos da classe trabalhadora que perderam o hábito da leitura, porém ainda podem escutar programas bem feitos e sem demagogia. Essa liberdade de criação e de distribuição dos podcasts não deve durar muito e em breve surgirá algo próximo ao Youtube também para eles, padronizando os formatos, linguagens e determinando o que as pessoas devem ou não escutar. Mas até lá, me parece mesmo uma forma interessante de produzir conteúdo.

    Problema 1: por mais que sejam muitas as plataformas de distribuição, as pessoas só acessam os conteúdos se eles forem antes disponibilizados nas redes sociais, pelo menos até criarem o hábito da escuta. Então, para impulsionar um podcast, ainda é necessário interagir nas redes sociais, criar redes de contatos e tudo o mais. E sabemos o quão tudo isso pode ser uma armadilha.

    Problema 2: Em especial no Brasil – e provavelmente em muitos outros países cuja população tem acesso precário à internet –, a internet se resume ao Facebook e ao WhatsApp. O que não chega através dessas plataformas não consegue atingir grandes públicos. E muitos ainda sequer podem acessar conteúdos de fora dessas plataformas, pois a conexão de dados não permite. O que vejo: alguns podcasts disponibilizam o programa no formato de áudio de WhatsApp. Ajuda um pouco, mas não resolve.

    Problema 3: anonimato. Como fazer um programa de qualidade e, ao mesmo tempo, se manter anônimo? Nem vou falar do atual momento de hiper individualização, no qual é quase imprescindível dar um rosto (ou pelo menos uma voz) aos conteúdos. Tô falando mesmo da segurança de quem se propõe a produzir conteúdo anticapitalista de caráter não-reacionário.

  9. Se o cabo é Siemens (ou_____________), se o pendrive é Scandisk (ou_____________), se a provedor de internet é Sky (ou____________), se o processador é Intel (ou_______________), se o sistema operacional é Windows (ou____________), se o computador é Dell (ou_________), se o satélite é SGDC (ou__________) se a empresa de telefonia é Vivo (ou___________) ou se… (preencham as lacunas ou ou ou…_________), nosso Papai… é (ou será…) Noel? Ou..Ou..Ou…

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