Por Isadora de Andrade Guerreiro
As manifestações contra Bolsonaro no último dia 29 de maio foram acompanhadas da polêmica sobre ir ou não às ruas durante a pandemia. Não vou entrar nessa questão, mas no que ela me suscitou: sobre a necessidade de colocar o corpo na rua como forma de manifestação política. Ou a necessidade, para a democracia moderna, de materialização do corpo social no espaço urbano para a conformação da esfera pública. E, portanto, sobre a relação entre a cidade e a conformação da arena política democrática. O engajamento corporal no espaço, nesses termos, se diz necessário como articulação do discurso com a dita “realidade”, que é “múltipla”. No entanto, parece-me que o espaço público (a “rua”) não é a “realidade” e pode, pelo contrário, neutralizar suas contradições numa multiplicidade amorfa, a famosa massa. Como fazer com que o espaço urbano, então, articule sua face de esfera pública com as contradições efetivas da sociedade?
Tais pensamentos se juntaram com a declaração da semana anterior, de Mário Frias (Secretário Especial da Cultura), ao ir à 17ª Mostra Internacional de Arquitetura da Bienal de Veneza, de que não conhecia Lina Bo Bardi, a homenageada do ano. Juntando os dois fatos, há algo a ser dito, na medida em que o MASP, projetado por Lina, mais uma vez recepcionava, em São Paulo, uma manifestação-termômetro da frágil democracia brasileira – que precisava ser (desesperadamente) testada, dar alguma prova de vida. Por que a apropriação do vão do MASP é tão relevante como conformadora de esfera pública de manifestação política no espaço urbano? Há algo no MASP que desloca a neutralidade da “rua”, inserindo, no discurso político daqueles que se utilizam daquele espaço, algo das contradições do corpo social, que está em disputa. Minha suspeita é a de que o que está em disputa é o lugar do popular na política atual.
Essa hipótese é ancorada no conceito central de Lina Bo Bardi para o projeto do MASP, mas que também percorre todas as suas obras: o de “Arquitetura Pobre”:
Na projetação do MASP, na Avenida Paulista, procurei uma arquitetura simples, uma arquitetura que pudesse comunicar de imediato aquilo que, no passado, se chamou de ‘monumental’, isto é, o sentido do ‘coletivo’, da ‘Dignidade Cívica’. Aproveitei ao máximo a experiência de cinco anos passados no Nordeste, a lição da experiência popular, não como romantismo folclórico, mas como experiência de simplificação. Através de uma experiência popular cheguei àquilo que poderia chamar de Arquitetura Pobre. Insisto, não do ponto de vista ético. Acho que no MASP eliminei o esnobismo cultural tão querido pelos intelectuais (e os arquitetos de hoje), optando pelas soluções diretas, despidas. O concreto como sai das fôrmas, o não acabamento, podem chocar toda uma categoria de pessoas. Os painéis didáticos de cristal nos quais são expostos os quadros, não agradam aos acostumados ao comodismo dos estofados e dos cotroles remotos, pois para ler os dados técnicos e o nome do autor e título das obras apresentadas, é preciso olhar atrás dos painéis(Lina Bo Bardi[1]).
A “Arquitetura Pobre” do MASP não para por aí. Sua inserção urbana cria a contradição – que pode ser sentida como desconforto para “toda uma categoria de pessoas” – de um vazio-a-ser-preenchido, de forma popular, no meio do centro financeiro da cidade (e do país): “Gostaria que lá fosse o povo, ver exposições ao ar livre e discutir, escutar música, ver fitas. Até crianças, ir brincar no sol da manhã e da tarde. E retreta. Um meio mau gosto de música popular, que enfrentado ‘friamente’, pode ser também um ‘conteúdo’” (Idem, p.102). De muitas maneiras o MASP é o que não está na materialidade da sua construção, mas a pressupõe e sustenta, ao, por exemplo, conformar o tecido urbano para além do seu lote, articulando diretamente duas das mais importantes vias da cidade (a Paulista e a 9 de Julho) e, indiretamente, outras duas (a Consolação e a Brigadeiro Luís Antônio) quando serve de concentração para manifestações que se dirigem a elas, conectadas que estão, por sua vez, com o Centro e, nas outras extremidades, com o Parque do Ibirapuera e a região de Pinheiros (Rebouças, Faria Lima, Largo da Batata). Estes lugares estão presentificados no MASP, ele os amplifica, vocaliza, dando o sentido coletivo da sua “simplicidade monumental”.
Mas os sentidos de “popular” e “coletivo”, aqui, ainda estão vagos e precisaremos resgatar mais da vida e obra de Lina para dar mais complexidade ao ponto. O resgate de Lina – que fazia questão de ser chamada de arquiteto (forma de ser do feminismo daquela época) – passa por olhar para uma militante do Partido Comunista Italiano (PCI) que chega ao Brasil em 1947. Vem acompanhando seu marido, Pietro Maria Bardi, jornalista e marchand, grande entusiasta, divulgador e financiador do modernismo italiano durante os anos 1930 e 1940, o que o colocava em certa proximidade com círculos fascistas[2]. Fato é que o casal aporta no Rio de Janeiro no imediato pós-guerra, durante a restauração e perseguição dos colaboracionistas em solo europeu, mas não só: a Democracia Cristã volta ao poder na Itália, e a esquerda também não tinha lugar. Fizeram as malas de mãos dadas.
A união de Lina, comunista clandestina da Resistência, com Bardi, é algo que precisa ser considerado quando se quer entender a especificidade da arte moderna que o casal[3] passou a fomentar no Brasil: a centralidade do popular na modernidade, que ganhava um sentido renovado neste país:
Chegada ao Rio de Janeiro de navio, em outubro. Deslumbre. Para quem chegava pelo mar, o Ministério da Educação e Saúde avançava como um grande navio branco e azul contra o céu. Primeira mensagem de paz após o dilúvio da Segunda Guerra Mundial. Me senti num país inimaginável, onde tudo era possível. Me senti feliz, e no Rio não tinha ruínas. (…) Naquele tempo, no imediato pós-guerra, foi como um farol de luz a resplandecer em um campo de morte… Era uma coisa maravilhosa. (…) Deslumbramento por um país inimaginável que não tinha classe média, mas somente duas grandes aristocracias: a das Terras, do Café, da Cana e… o Povo”[4].
Em que pese as muitas ilusões (ou cenário politicamente fabricado) desta visão inicial de Lina, há que se lembrar também do lugar do popular na estratégia do PCB (Partido Comunista Brasileiro) na década de 1940 e 1950, em integração com o pacto nacional-desenvolvimentista industrializante. A construção da noção de “povo” se inseria na estratégia global stalinista de “socialismo num único país”, no qual a aliança com a burguesia industrial nos países subdesenvolvidos era importante para a criação de um cenário favorável para o desenvolvimento da classe operária. Já foi bastante discutido o etapismo dessa visão, bem como seu dualismo (atraso-moderno). O popular, nesta construção, esfumaçava as determinações da classe trabalhadora, na medida em que o objetivo não era fomentar a luta de classes, mas promover alianças – algo característico, em solo nacional, da Era Vargas.
Naquele momento, no entanto, tal Era acabava e Lina, cada vez mais adaptada, passou a ter um caminho próprio, dando outros sentidos para este “popular”, que vai desembocar no projeto do MASP 10 anos depois, em 1957. Num contexto bastante diferente, esse momento é de grandes questionamentos ao comunismo soviético após o Relatório Kruschev em 1956, quando a URSS denuncia oficialmente os crimes de Stálin após sua morte. Na arquitetura, este é o momento de formação da crítica ao movimento moderno, ao seu racionalismo abstrato e seu homem universal, quando as teorias do lugar têm vez e o tal popular ganha significado de especificidade cultural local ao invés de homogeneização/aliança de classes – a diferença é tênue, mas existe, dando início à questão da centralidade das identidades.
Atravessando todo esse período de transformações, o MASP é inaugurado apenas no malfadado 1968 brasileiro, que interrompe sua ambição de mobilização urbana antiautoritária. No entanto, como arquitetura, ele espera e carrega a historicidade de uma época à outra, podendo ser realmente apropriado em sua integralidade apenas na década de 1980. Daí também sua identificação com a esquerda formada na redemocratização, onde o popular já estava dentro do enquadramento “democrático-popular”. A partir desse momento o MASP se tornou, até hoje, o Lugar (com maiúscula) privilegiado de manifestações públicas não só de São Paulo, mas do país (não é à toa que os atos de São Paulo são marcados como finalização dos atos nacionais).
Dentro deste percurso, Lina, no entanto, faz um caminho próprio, diferente de outros arquitetos modernistas do PCB, como Vilanova Artigas, que abraçou o racionalismo numa promessa de libertação futura do “povo” abstrato. Lina não construía uma humanidade preconcebida e abstrata do futuro, mas articulava passado e presente por meio da união entre cultura e trabalho: ressignificou o “povo” como trabalhadores em ação, em ato histórico que produz coletivamente, pelos saberes prévios e experiência presente, seu futuro. Seu foco na arte e cultura populares não estava ligado a um fetichismo primitivo, condescendência populista, aliança de classe ou amor pelo passado virgem: pelo contrário, ela encontrava e potencializava no corpo social existente – e ancestral – as possibilidades mais profícuas de criação do novo, do moderno, que não poderia ser nada mais do que um movimento constante em produção coletivizada pelo trabalho. Não um produto finalizado, mas um processo.
Era assim que lidava inclusive com a atividade projetual na arquitetura. Muitos falam de suas obras acabadas, mas poucos sabem que Lina se instalava nos canteiros para projetar durante a construção – como foi o caso do Sesc Pompéia (que ela fazia questão de chamar de Fábrica da Pompéia, mas que os tempos fizeram também questão de apagar). Dava voz, assim, ao trabalho dos operários e também às necessidades do próprio lugar, de seu entorno, de seus materiais, experimentando o uso do espaço e das técnicas em ato – sem deixar de procurar pelo seu máximo de potencialidade, como se pode ver nos finíssimos pilares de sua própria casa, ou no próprio vão do MASP. O uso do espaço, desta maneira, não estava desconectado de sua produção. No MAM-SP, por exemplo, fez com que o espaço de exposição fosse usado como circulação entre as salas da equipe da instituição, entrelaçando trabalho e representação, renovando o sentido coletivo da arte e o lugar social do museu. Seus desenhos projetuais combinavam a precisão técnica com a vida, sempre presente em abundância em aquarelas coloridas sobrepostas ao traço geométrico.
E por isso falar do MASP não é só falar de inserção urbana, nem só do símbolo da cidade no último período democrático, pois o MASP não é espaço passivo, mas agente da ação urbana no presente com força de catalisador social, pois carrega na sua forma, como arte, processos sociais sobrepostos, sem que suas contradições se resolvam. Elas estão ali presentes concomitantemente, participantes: na crueza de seus materiais o trabalho se mostra no meio da Av. Paulista, na extrema tensão do concreto protendido (técnica de construção de pontes) que serve à leveza do bloco flutuante, que expõe à cidade sua coleção permanente através dos maiores painéis de vidro produzidos na época – para produzir um monumento coletivo, a tecnologia mais avançada e que se mostra, no entanto, pelo seu contrário: a rusticidade do paralelepípedo e do concreto, a produção de um grande vazio que pede apropriação.
O projeto e a construção do MASP são, sem sombra de dúvida, um legado não só de arquitetura e urbanismo, mas de militância. O MASP é incontornável: mesmo que se queira contrapor a ele, não é possível ignorá-lo. Lina criou um centro focal urbano da vida política democrática brasileira, pretendendo que ela fosse muito maior, que ela se expandisse do plano discursivo e adentrasse na produção e reprodução da vida. E se a identificação do MASP com a “esquerda institucional” existe, por outro lado é uma identificação tensa, em aberto, em movimento, principalmente em disputa: ainda que as manifestações de direita procurem se apropriar polemicamente de seu significado, se sentem claramente muito mais à vontade na frente da FIESP, alguns quarteirões adiante. No outro extremo do espectro político, o MPL (Movimento Passe Livre), nos idos de 2013, também evitava chamar a concentração de seus atos para o MASP, evitando a identificação com a esquerda tradicional sem, no entanto, prescindir da Av. Paulista – cuja centralidade política não prescinde do MASP. A força urbana do MASP reside também nessa instauração da necessidade de resposta, nas contradições que ele instala, na multiplicidade de possibilidades que ele abre, no imperativo de diálogo com seus questionamentos, ainda que pela negação.
Retomando então as questões iniciais, vemos que é possível articular esfera pública com as contradições sociais no movimento histórico, mesmo por meio da fixidez da arquitetura – quando ela adquire status urbano. Também vemos porque a apropriação do vão do MASP é tão relevante como conformadora de esfera pública de manifestação política no espaço urbano: justamente porque consegue manter a tensão permanente destas contradições do popular através do tempo, ainda deixando em aberto sua possibilidade de apropriação histórica em cada período. Mais do que isso, ele exige apropriação, mas não aceita qualquer uma. Por isso é que atualmente a disputa política em torno do popular – à direita e à esquerda – ganha no MASP um espaço tão relevante. Como toda grande arte, as possibilidades estão ali tematizadas em forma urbana, carregada de contradições sobrepostas: não é uma resposta, é apenas uma pergunta que não quer calar. Obrigada, Lina.
Notas
[1] FERRAZ, Marcelo Carvalho (Org.). Lina Bo Bardi. São Paulo: Instituto Lina Bo e P.M.Bardi, 1996, p.100.
[2] Os laços de P.M. Bardi e do modernismo italiano com a ascensão fascista são sempre polêmicos, mas de extremo interesse, na medida em que as vanguardas artísticas tiveram na Itália de Mussolini uma história de colaboração digna de nota. João Bernardo escreveu sobre o capítulo italiano do modernismo (em particular do Futurismo) durante a ascensão fascista em “Labirintos do Fascismo”.
[3] Pietro, por conta de suas relações com o também jornalista e marchand Assis Chateaubriand, foi criador e diretor do MASP de 1947 a 1996. Continuou com sua produção de crítica e pesquisa em arte, iniciada na Itália, sendo um grande promotor mundial do modernismo.
[4] BARDI, Lina Bo. Curriculum literário. In: FERRAZ, Marcelo Carvalho (Org.). Lina Bo Bardi. São Paulo: Instituto Lina Bo e P.M.Bardi, 1996, p.12.
Texto muito bonito.
Na Folha de São Paulo de ontem (14/08), saiu uma matéria sobre o lançamento do novo álbum do José Miguel Wisnik, sugestivamente chamado “Vão”:
“É a ideia de que a arquitetura brasileira busca o vão e quer flutuar. Isso parece um sonho brasileiro. No nome do disco, é como se essa palavra fosse assim girando em direção a um alvo, que é o infinito vão”, conta Zé Miguel Wisnik, 73.
(…)
Com letra de Carlos Rennó e melodia de Wisnik, “O Jequitibá” leva delicadeza ao tempo de força bruta. “Não havia Masp nem seu vão/ Nem Fiesp nem arranha-céu nem casarão/ Nem Conjunto Nacional/ Com seu relógio à vista […] Antes da torre global/ Do Itaú Cultural/ Do metrô e da metrópole/ Da Parada Gay/ E do Réveillon/ Era ele, o velho, belo e bom/ Jequitibá do Trianon.”
Rennó fez a letra depois de ler uma reportagem da Revista da Folha sobre o jequitibá do parque Trianon, na Avenida Paulista. Segundo Wisnik, as estimativas são conflitantes. A árvore pode ter 150 ou 400 anos. De todo modo, está fincada em um espaço ancestral. A convite de Wisnik e Rennó, o fotógrafo Bob Wolfenson fez uma imersão na Paulista, e suas fotos resultaram em um videoclipe dirigido pelo coletivo Bijari.
“Além de ser um centro empresarial e cultural, a Paulista é um lugar de trânsitos. A população se apresenta de muitas formas. É um lugar de disputa política. Portanto, é um lugar forte da cidade e do Brasil. Dentro dele, tem um segredo. É essa árvore, que está ali no avesso de tudo aquilo, em uma cidade onde nada fica, sem marcas do antigo”, afirma Wisnik.
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/08/bolsonaro-quer-transformar-cidadao-comum-em-jagunco-diz-wisnik.shtml
Leio isso, releio seu artigo e na ressonância de ambos, me parece, há uma certa ideia de modernidade que não é apagamento do passado, mas articulação de passado e presente. Algo meio Oswald de Andrade: A floresta e a escola. O Jequitibá e o MASP.
Enfim, muita coisa para pensar. Obrigado, Isadora!
brutalidade jardim