Por Um estudante de licenciatura

Este texto começou a ser escrito no segundo semestre de 2019, para um debate interno com camaradas que construíam diferentes processos de luta e se reuniam para fazer o balanço dessas experiências. Novas provocações e uma pandemia ainda em curso tornaram a reflexão mais urgente, em decorrência da tendência à revolução tecnológica e atomização nesse tipo de atividade produtiva. Assim, o artigo foi reformulado, estendido e submetido à publicação no Passa Palavra, onde espero que o debate possa se ampliar através dos comentários ao artigo e além.

Acabava de acontecer uma paralisação de estagiários da educação especial do Rio de Janeiro, com ato em frente à Prefeitura do Rio. De uns anos para cá — não saberia dizer se desde que o projeto de estágio teve início pela Prefeitura —, tem sido normal estagiários terem seus salários pagos com atraso, e às vezes com cortes indevidos. Naquele ano de 2019 o atraso não durou dias, mas 2 meses. Para piorar, o Vale Transporte, que era pago junto com a bolsa-auxílio, também estava atrasado. O contexto em que as mobilizações entre meus colegas estagiários começaram, era o de esses trabalhadores-estudantes estarem custeando o transporte para as escolas do próprio bolso, às vezes acumulando empréstimos porque não sabiam quando iam receber.

Se engana, porém, quem pensa que a luta começou com aquela paralisação do dia 23 de setembro. A luta começou em sua concepção mesma, a partir da organização subterrânea com a insatisfação dentro das escolas, aparentemente tímida pois diferia das greves explosivas, das sabotagens deliberadas e outras formas de luta assumidas no meio escolar [1]. Dezenas de vezes por dia, estudantes ligavam para a Secretaria Municipal de Educação (SME) cobrando seus salários e pedindo respostas para seus problemas. Muitos desses problemas não se reduziam a salário, mas incluíam condições de trabalho e assédio moral. Além disso, como percebiam com o tempo que as respostas para os seus problemas eram contraditórias, sempre com a Prefeitura “empurrando com a barriga”, muitas vezes iam pessoalmente para a Secretaria resolver.

Aquelas insatisfações começaram a se transformar em um movimento na medida em que os estagiários começaram a perceber que tinham de conhecer outras pessoas em situação semelhante para encontrar soluções. Com o tempo, mesmo suas ligações telefônicas eram ações políticas: eles começavam a gravar o que os gestores do Departamento Financeiro diziam e comparavam entre eles, para escancarar as mentiras e contradições. Essas ações começaram a ser percebidas pelas direções das escolas, que até o momento não sabiam o que fazer. Algumas se solidarizavam, porque realmente não lhes cabia responsabilidade sobre aquele problema, porque só registravam a folha de ponto, não emitiam ou solicitavam pagamento. Outras direções eram mais autoritárias e o assédio moral recaiu sobre muitos estagiários.

Cinco dias antes do ato dos estagiários, o movimento, em especial nas redes [2], ganha força com um e-mail [3] enviado pela 3ª Coordenadoria Regional de Educação (CRE) — núcleo regional da Prefeitura — endereçado aos diretores de escola pedindo que tranquilizassem seus estagiários, que não era necessário “alarde” porque o pagamento logo ia ocorrer, o que foi documentado na época pelo coletivo Invisíveis por meio da publicação de algumas das principais denúncias sobre o que estava sucedendo com os estagiários. O que acontece é mais atraso, mais falta de transparência, enfim, o cenário estava consolidado para o ato no dia 23 [4].

Eu me envolvi com essa mobilização na mesma época em que estava lendo o texto Miséria do meio Estudantil da Internacional Situacionista [5]. Os militantes franceses constataram o caráter dependente do estudante. Alheio à autoridade familiar, buscava sempre uma nova tutela. Essa tutela passa para as novas instituições que regem a sua vida. Há uma “menoridade prolongada”, fenômeno que consiste no estudante aceitar os piores postos de trabalho por concordar que o presente não é ainda o futuro que o espera. Ele aceita ser tratado, não como trabalhador, mas como alguém que está se iniciando no mercado de trabalho. O estudante se choca com duas dimensões de sua realidade: 1) o status atual, que aceita de bom grado pela necessidade de “aprender”, por entender que ele está em uma etapa de sua vida com a qual deve se conformar em nome de um bem maior; e 2) o status futuro, todo o futuro que lhe é prometido após terminar sua formação. Fato é que até alcançá-lo, a vida concreta cobra que ele receba menos que um trabalhador não-qualificado e sem garantia de direito algum. Isto se dá porque o status futuro funciona como uma idealização do presente.

Hoje um estagiário da educação inclusiva pelo município do Rio precisa assinar um contrato que não lhe garante vínculo empregatício e seu vale transporte não é compatível com os transportes que utiliza, porque a lei do Vale Transporte é válida apenas para funcionários enquadrados na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) ou servidores públicos. Para o estagiário, não. É “apenas um estudante”! O estagiário aceita essa condição, tanto quanto os trocentos estágios obrigatórios (e não remunerados), para poder terminar sua formação e continuar o sonho de ser um dia um “profissional realizado”.

Comparemos com outra categoria de trabalhadores: os auxiliares de serviços gerais. Mesmo sendo o elo mais fraco das universidades públicas, têm muitos dos seus direitos garantidos, se comparados aos estagiários. Em 2017, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), os trabalhadores da limpeza fizeram greve contra o atraso no pagamento dos salários. O estado não havia repassado verba para que a UERJ pagasse a empresa terceirizada e, consequentemente, os funcionários da limpeza ficaram sem seus pagamentos. Nessa greve não houve retaliação imediata, mas aos poucos os que estiveram mais à frente foram sendo demitidos ordinariamente por pretextos inventados. Ainda assim, com a dificuldade que é se organizar sendo terceirizado, arrumaram formas coletivas de lutar por seus direitos, enquanto os estagiários em sua maioria entendem que têm de recorrer a saídas individuais, quando recorrem. Porque pensam que ainda estão em formação, então ainda não são “empregados”. Os estudantes não parecem uma “categoria” muito privilegiada, mas pensam ser vanguarda de alguma coisa da qual não têm controle.

Militantes e as redes sociais

Há uma relação entre a renovação dos contratos de estágio com a insatisfação que tomou corpo. A prefeitura contrata estagiários semestralmente, ao que parece para incorporá-los em relações de trabalho que permitem que sejam considerados “apenas estudantes” e não trabalhadores com direitos previstos na CLT. A rotatividade desse tipo de trabalho é grande, devido à forte demanda dos licenciandos em fazer outros estágios obrigatórios para terminar a formação.

A luta, ainda que traga certo saldo organizativo, é refém dessa rotatividade, fenômeno que também gerou reflexões sobre a greve dos estagiários da Defensoria Pública de SP [6]. Os estagiários que hoje conseguem mobilizar um grupo no WhatsApp podem não estar envolvidos no mesmo trabalho no semestre seguinte, dificultando a construção de lutas. Esse tipo de fenômeno parece ser intrínseco às lutas estudantis, em paralelo às lutas tradicionais dos centros e diretórios acadêmicos, mas também cada vez mais parece ser característica de lutas sociais que se dão em modelos não tradicionais de contrato de trabalho.

Ao contrário da teoria (cumprirem os contratos e largarem o estágio), aqueles estagiários parece terem uma cultura de renovar semestralmente esse estágio e são trabalhadores que estão encontrando formas de se organizar para reverter essas tretas descritas anteriormente. São estudantes que subvertem a temporalidade do contrato porque não podem se permitir deixar de trabalhar, o que tem a ver com a taxa de desemprego dos estudantes de licenciatura em geral.

Essas lutas parecem apontar justamente para as redes sociais como um fenômeno característico desse tipo de mobilização. Pessoas que foram obrigadas a se conhecer para enfrentar juntas os problemas e, quem sabe, arrumar uma solução. Não têm com eles a mediação de um sindicato ou outras instituições.

Uma das razões para terem procurado a solidariedade de estagiários de outras escolas para romper com a passividade deve ser porque no local de trabalho não encontram formas de se unir com os professores e demais profissionais da educação para protestar. Preferem recorrer a estagiários precarizados de outras escolas por entenderem que estão na mesma situação. E talvez por verem os professores em situação “privilegiada”, por terem eles um sindicato e uma relação de trabalho um pouco diferentes (serem servidores, e não trabalhadores eventuais).

Os gestores, por sua vez, parece saberem se aproveitar da consciência que os estagiários possuem, novamente, em decorrência do perfil estudantil, para colocá-los numa posição cada vez pior, em que pareça normal para eles não receber salário. Outro ponto a ser considerado é que ainda que estejam sem salário e sejam tratados como lixo pelos gestores, os estagiários muitas vezes não aderem às paralisações porque ficam preocupados com as crianças que vão deixar sem assistência nas escolas.

A preocupação não é sem fundamento, pois as famílias sofrem cada vez mais com a falta de pedagogos responsáveis pelo atendimento especial, o que torna “confortável” para a Prefeitura adiar concursos públicos para Agentes de Educação Especial (AEEs), cobrindo a demanda com estagiários sem experiência prévia e sem formação específica em educação inclusiva.

O problema, então, lança luz sobre uma questão maior: como impulsionar lutas que não prejudiquem os beneficiários dos serviços, em sua maioria trabalhadores? Este parece ser o dilema entre os estagiários da educação, da Defensoria Pública, e parece agora retomar com a polêmica adesão ao ensino remoto.

Ensino remoto

Adotado o semestre remoto em 2020, muitos foram os coletivos de profissionais de educação (e também estudantes), em todo o país, que tomaram como imperativo o “Não ao Ensino Remoto”. Esses profissionais são (quero crer que todos) contrários ao retorno ao ensino presencial na atual conjuntura, com o argumento de que podem resultar em infecções pelo novo coronavírus. Assim sendo, a pauta concreta desses profissionais é o adiamento do semestre letivo.

Poucos foram, até onde sei, aqueles que focaram sua luta em cobrar das prefeituras e estados acesso digno ao ensino remoto por meio de políticas assistenciais. O boicote ao modelo de ensino foi o aparente consenso entre os educadores, sem o qual três períodos teriam sido perdidos sob o vai e vem da política sanitária conduzida por Jair Bolsonaro em queda de braço com governadores e prefeitos.

A maioria das universidades públicas continua até hoje em ensino remoto, enquanto as privadas já abriram as portas e também muitas escolas de ensino básico já retomaram o ensino presencial contrariando as recomendações dos principais infectologistas. Não podemos esquecer também que a pandemia reduziu em muito o desempenho escolar, fato atestado inclusive pelo Ministério da Educação [7] e confirmado por toda a imprensa. É comum acusar diretamente o ensino remoto por essa baixa, mas isso é retirá-lo de seu lugar na história, e esquecer-se que seria milhares de vezes pior se todos esses estudantes estivessem sem instrução alguma durante um ano e quatro meses de pandemia.

Aliás, sem o ensino remoto, ou pelo menos algum contato com instruções online, os alunos especiais das escolas do município do Rio ficariam também sem acompanhamento. Algumas famílias optaram por ter seus filhos sendo mediados remotamente por estagiários, que por sua vez puderam renovar seus contratos, apesar de mais uma vez a prefeitura ter atrasado as bolsas [8].

Com ou sem uma melhora nos índices de hospitalizações e mortes nos próximos meses, havendo ou não lockdowns, temos suficientes motivos para crer que a modalidade virtual veio para ficar [9] , senão por inteiro, obrigando instituições a aderir ao ensino híbrido. Resta ao conjunto da nossa classe, e em especial aos profissionais da educação e estudantes, refletir sobre o que fazer daqui em diante.

Notas

[1] Frequentemente se confunde o caráter de uma luta pela sua aparência supostamente combativa ou não, e se menospreza sua capacidade de construção coletiva e possibilidades de avanço. É muito comum ver esse tipo de confusão em nichos ditos “combativos”, “libertários”, “blocos autônomos”, onde a combatividade começa e termina nos protestos de rua, e a liberdade das ruas não se manifesta no cotidiano do trabalho, onde ocorre a triste constatação de que a autogestão nestes não está no horizonte.
[2] Os estagiários em poucas semanas conseguiram se organizar principalmente pelo WhatsApp. Criavam grupos “gerais” de agitação e debates mais amplos, além de grupos por CRE, onde as pessoas mais próximas pudessem se encontrar para debater sobre o que fazer.
[3] Ver aqui: https://www.facebook.com/invisiveisluta/photos/a.1756490074656693/2157711494534547/?type=3&theater.
[4] Para ver o desfecho: https://passapalavra.info/2019/09/128422/.
[5] Ver aqui: https://guy-debord.blogspot.com/2009/06/da-miseria-no-meio-estudantil.html
[6] Ver aqui: https://passapalavra.info/2019/06/127103/.
[7] Ver aqui: https://abmes.org.br/arquivos/legislacoes/Parecer-CNE-CP-11-2020.pdf.
[8] Ver aqui: https://passapalavra.info/2020/07/133019/.
[9] O coletivo Passa Palavra no ano passado já havia se alongado neste assunto: https://passapalavra.info/2020/08/133439/.

Ilustram este artigo fotografias de Shalom de León.

1 COMENTÁRIO

  1. A situação dos estagiários descrita no texto (trabalhando e não recebendo salário, ou não recebendo salário equivalente, com o pretexto de que estão a aprender) reflecte uma situação generalizada nas formas mais antigas de capitalismo, em que o aprendiz, na construção, nas oficinas e no comércio, trabalhava sem receber remuneração, em troca da instrução prestada pelo mestre, que era o patrão. Em Portugal, na época da minha juventude, era assim que as mulheres proletárias aprendiam a ser costureiras. Trabalhavam o dia todo em oficinas sem qualquer remuneração, em troca de aprenderem, e a mestra comercializava o fruto desse trabalho, que constituía o seu lucro. Se se lembrarem do poema de António Gedeão, Luísa sobe a calçada, que serviu de mote a um artigo meu recente, a Luísa era operária numa fábrica de têxtil ou de confecções, mas estou certo de que ela aprendeu naquela forma que descrevi. Inclusivamente, havia uma expressão muito corrente nos meios populares, olha que eu não andei contigo na costura, que significava: vê com quem falas, olha que eu não fui tua colega, não sou tua amiga, não andámos juntas na escola. Era engraçado ver um operário zangado dizer para outro: olha que eu não andei contigo na costura. Em suma, e como sempre sucede na universidade, esse Templo do Saber é o mais lento a evoluir, custa-lhe sair da Idade Média, e essa situação dos estagiários é um indício do carácter arcaico da instituição. Outro indício é a relutância dos professores em aceitarem o ensino remoto, tal como os artesãos ludditas do início do século XIX receavam o uso das máquinas. Coitados dos professores de mentalidade medieval sonhando com a universidade de elite! Coitados dos professores proletários que julgam que não o são! Pelo menos, os estagiários lutam por serem considerados proletários na condição moderna do proletariado.

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