Por João Bernardo

Ao ler o Flagrante Delito publicado no sábado, Primeiro de Maio, dedicado ao Feminismo soariano, lembrei-me de um célebre poema (célebre em Portugal) que António Gedeão escreveu durante o fascismo, Calçada de Carriche:

Luísa sobe,
sobe a calçada,
sobe e não pode
que vai cansada.
Sobe, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas,
não dá por nada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;
bebeu a sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu-a deitada;
serviu-se dela,
não deu por nada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Na manhã débil
sem alvorada,
salta da cama,
desembestada;
puxa da filha,
dá-lhe a mamada;
veste-se à pressa,
desengonçada;
anda, ciranda,
desaustinada;
range o soalho
a cada passada;
salta para a rua,
corre açodada,
galga o passeio,
desce a calçada,
chega à oficina
à hora marcada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga;
toca a sineta
na hora aprazada,
corre à cantina
volta à toada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga.
Regressa a casa
é já noite fechada.
Luísa arqueja
pela calçada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Para os brasileiros que não o saibam, convém explicar que calçada é uma rua muito inclinada (Lisboa é uma cidade entre colinas e um belo rio); Carriche é um bairro no limite de Lisboa; passeio é o que no Brasil chamam calçada; lancheira é a caixa em que os operários levam a refeição; desenxovalhada, neste contexto, quer dizer decidida, o que os brasileiros chamam sem frescuras; magalas são soldados e desembestada é correndo, à pressa. Há bons poetas, naquele país.

Há muito bons poetas em Portugal, mas é um povo sentimental e dado à piedade, como o fado mostra. Ora, Calçada de Carriche tem um ritmo único ao longo de todo ele, e a chave para a compreensão desse ritmo é dada pelas estrofes que repetem puxa que puxa larga que larga, ou seja, é o ritmo de uma máquina. Todo o poema obedece ao ritmo de uma máquina, e Luísa é só uma engrenagem da máquina. Este é o cerne do poema, e é a partir daí que ele pode ser entendido.

Por isso o poema deve ser dito por uma voz fria e ligeiramente cruel, a frieza da máquina, deixando a compaixão para quem o ouve ou lê. Uma voz como aquelas que recitavam Brecht durante a república de Weimar. Apesar disto, a interpretação antiga de Mário Piçarra, entre as que conheço, ainda me parece a melhor, pelo ritmo que consegue sustentar. Pena que a voz seja nostálgica.

Quanto à Calçada de Carriche, ela hoje é assim

Mas na época do poema seria mais ou menos assim:

Muita coisa se passou entre estas duas fotografias e, para se entender o salto na história, nada melhor do que outro poema. Apesar da diferença de sotaques e de vocábulos — e ainda há quem diga que a língua é a mesma! — peço aos brasileiros que ouçam e vejam Mário Viegas recitar um poema de Maria Velho da Costa (marquei o início no minuto 7:25).

Mário Viegas foi um dos melhores actores e recitadores portugueses, morreu de Aids há umas dezenas de anos. Quando ainda havia só três empresas ocupadas e em autogestão, o jornal Combate, de que fui um dos fundadores, organizou uma sessão de apoio aos trabalhadores dessas empresas e também de recolha de fundos para a sua luta. Participou um grupo de cantores, que incluía nomeadamente Vitorino e José Mário Branco, e um recitador, Mário Viegas. Foi a primeira sessão pública de apoio à autogestão.

A autora do poema, Maria Velho da Costa, era esposa do sociólogo Adérito Sedas Nunes, destacado ideólogo da classe dos gestores, que foi um personagem significativo na transição do salazarismo para a democracia. Dediquei a Sedas Nunes algumas páginas no meu livro Labirintos do Fascismo, para aí remeto quem estiver interessado. Mas Maria Velho da Costa posicionava-se à esquerda e salientou-se, nos últimos anos do fascismo, ao colaborar na publicação das Novas Cartas Portuguesas («Novas» para que não se confundissem com as Lettres de la religieuse portugaise). Tudo somado, Maria Velho da Costa deixou uma obra literária marcante e destacou-se na luta contra o fascismo e pela emancipação das mulheres.

O poema recitado por Mário Viegas reproduz bem a época, o ambiente e o papel desempenhado pelas mulheres no processo revolucionário português de 1974 e 1975. Foi uma das coisas que mais nos surpreendeu, a mim e aos outros camaradas do Combate, ver como da noite para o dia, aquelas mulheres do povo, que durante todo o fascismo pareciam não ter voz, surgiam, se afirmavam e tomavam as coisas nas mãos. A primeira fábrica a entrar em autogestão tinha um pessoal exclusivamente feminino, era uma pequena indústria, com uma dúzia de operárias, nenhuma delas com qualquer passado político. A segunda empresa a entrar em autogestão, bastante maior, tinha igualmente um pessoal quase todo feminino, também sem nenhum passado político. Se bem me lembro, só havia ali alguns homens nos escritórios e na parte administrativa. Depois, o mesmo sucedeu em todo o país, nos latifúndios do Sul tal como nas indústrias do Norte, embora as camponesas do Sul tivessem frequentemente uma experiência política na área do Partido Comunista.

Comecei este artigo com o poema de António Gedeão, Calçada de Carriche, que exprime, nas palavras e no ritmo dos versos, a vida dessas mulheres sem voz, «puxa que puxa, larga que larga, puxa que puxa, larga que larga». Como é que os milhões de Luísas que subiam as calçadas se transformaram subitamente nesses milhões de mulheres que encheram o poema de Maria Velho da Costa e embargaram de emoção a voz de Mário Viegas, como é que as Luísas passaram a encher as calçadas e as ruas, as empresas e as casas naqueles dois anos?

E onde estão elas hoje?

A fotografia de destaque mostra um episódio de repressão pela GNR na zona industrial do Barreiro, ao sul de Lisboa, do outro lado do Tejo, na década de 1940. Não sei quem é o fotógrafo, nem sei se alguém sabe.

4 COMENTÁRIOS

  1. Onde estão…. Onde vivem, o que comem… Algumas delas, muitas delas mães pretas, estão na base de organizações ditas de esquerda. Estão na base, fazendo comida e faxina, subjulgadas, subtraídas, subescutadas pelos dirigentes homens. Até aqui, nenhuma novidade. Inúmeros exemplos concretos disso, basta olhar, olhar realmente.
    Charge de Charb sobre os operários sumidos, retirada do livro Marx, manual de instruções: https://boitempoeditorial.files.wordpress.com/2013/08/charge_1_630p.jpg

  2. IMANÊNCIA TRANSCENDENTAL
    Antes da irrupção, enquanto vige a paz social, as Luísas e demais sem-reservas estarão apassivados e serão os condenados da terra. Durante a irrupção, a caosmose transindividual: ‘queremos tudo, exigimos o impossível’! Após a irrupção, reestruturado já o capitalismo na democracia totalitária, é hora de suportar a canga e tragar o fel: ainda não foi desta vez…
    Obrigado, JB.

  3. Incrível leitura!

    Peço licença ao ulisses, mas vejo justamente que sua frase fjnal é a ressonância perfeita dos poemas aqui expostos e da pergunta deixada por João Bernardo: não sabemos “onde estão elas hoje”, mas os percalços nos indicam que “ainda não foi desta vez…”.

    Sobre a pergunta mais difícil – como as Luísas se transformaram de modo tão surpreendente nas mulheres do poema Maria Velho da Costa -, a resposta não existe. Fiquemos com a própria arte da autora a ser espelho para nós dessa questão:

    “Elas iam e não sabiam para aonde, mas que iam”.

    Impossível não olhar para esse verso de Maria Velho da Costa e não recordar do verso, já citado aqui nesse sítio, de Sophia de Mello Breyner Andresen: “Navegavam sem o mapa que faziam”.

    As fotos também chamam demais a atenção e nos fazem pensar que as questões apresentadas no artigo também podem ser pensadas a partir da apreciação/comparação entre elas.

    Obrigado pelos ensinamentos!

  4. Uma achega.
    A foto de destaque, a mais divulgada da repressão nas grandes greves de julho-agosto de 1943, publicada no jornal “O Século”, foi identificada inequivocamente, já neste século, como respeitante à dispersão por forças da polícia de segurança pública (PSP) de mulheres familiares de operários grevistas da Fábrica Sol, em Alcântara (Lisboa), da CUF (Companhia União Fabril), mais concretamente na Travessa do Baluarte. Ver, entre outras fontes, por exemplo,
    https://estudossobrecomunismo2.wordpress.com/2003/07/28/j-m-leal-da-silva-fotos-da-greve-de-1943-excerto/

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here