Dinheiro

Por Raquel Azevedo

Em abril, Adam Tooze publicou um ensaio sobre a trajetória de Paul Krugman nos últimos 30 anos e não é difícil ver nos reveses desse percurso alguns traços da história econômica recente dos EUA. De porteiro da política econômica a crítico – parece que estamos diante de mais uma torção do famoso fragmento da Ideologia alemã em que Marx descreve as atividades a que devemos nos fixar para obter um meio de vida (caçador, pescador, porteiro e crítico). Mas as metamorfoses da carreira de Krugman ajudam a mapear as crises das últimas três décadas e seu triunfo na pandemia, com a aceitação geral de sua recomendação de que não se repita o erro da política fiscal tímida que se seguiu à crise de 2008, nos faz pensar o que exatamente a virada de política econômica significa para a organização política.

Na década de 1990, Krugman foi reconhecido pela tese de que o motor do comércio internacional eram os conglomerados industriais especializados e não as vantagens comparativas (como na velha defesa ricardiana dos vinhos portugueses). Isso significa que o crescimento do pós-Segunda Guerra deveria ser explicado pelo comércio de produtos manufaturados entre países ricos e não pelas trocas entre produtores de matérias-primas e produtores de manufaturados. É em parte essa tese que fundamenta seus ataques à crítica de esquerda à globalização. Não era só o protecionismo dos conselheiros do governo Clinton que o incomodava, mas a recalcitrância, por assim dizer, do movimento antiglobalização em aceitar que seria melhor, em suas palavras, ter empregos ruins do que não ter emprego nenhum.

A postura de Krugman começa a mudar com a crise financeira na Ásia no final da década de 1990. Afirmar que o impasse dos países asiáticos se reduzia a investimento improdutivo era um diagnóstico claramente insuficiente. Mais do que engrossar o coro contra as medidas austeras impostas pelo Fundo Monetário Internacional, Krugman redescobre o problema da armadilha da liquidez que Keynes analisa na Teoria geral. Ou seja, as economias podem chegar a uma situação em que o emprego da política monetária para baixar as taxas de juros já não é capaz de reativar os investimentos. A particularidade da crise asiática marca uma virada teórica importante: Krugman passa a se preocupar, a partir de então, com as expectativas dos agentes econômicos a respeito dos preços e das taxas de juros futuros.

O estudo das expectativas buscava, de certa forma, contornar a irredutibilidade entre micro e macroeconomia. Problemas complexos como o desemprego involuntário poderiam ser analisados, assim, como efeitos em larga escala de imperfeições microeconômicas. A crise de 2008 e a reação tímida de Obama no âmbito da política fiscal assinalaram, no entanto, uma nova transformação teórica na trajetória de Krugman. Já não se tratava mais de constatar que a mera sustentabilidade fiscal isolada era um mau arranjo de política econômica, mas de afirmar que algum aspecto da luta de classes se dá nas decisões de política fiscal. Afinal, não eram os americanos desempregados que guiavam essas políticas, mas os graus de confiança e a flutuação das expectativas. Na década de 2010, as formas de organização política tão devedoras dos movimentos antiglobalização dos anos 1990 estavam novamente em proeminência, mas a aposta de Krugman era a reedição de algo parecido com o New Deal. Não veio no pós-2008, mas veio com a pandemia. Mais especificamente depois da eleição de Biden. Krugman joga solto: agora todos repetem o mantra de que é melhor não repetir os erros do governo Obama. Mais vale errar por excesso, encorajando justamente a expectativa de que a inflação vá subir.

A pergunta que nos resta é: o que exatamente significa uma mudança de política macroeconômica se sabemos que os problemas de organização não são redutíveis a ela? A aposta de Krugman num conjunto de estímulos tão amplo capaz de incluir, parcial e precariamente, os deixados para trás me faz pensar no personagem Stringer Bell, da série americana The wire. As atividades com que cada um se ocupa são obviamente bem distintas, mas a tarefa impossível da formalização – do excedente do tráfico, em The wire, e dos deixados para trás, com Krugman – guarda lá suas semelhanças. Do lado de cá, seguimos com as mesmas perguntas a respeito de como nos organizar criando algum amparo institucional para o trabalho precarizado. Embora somente com muito esforço consigamos entrever algo do nosso modo de vida na história das ideias, os tropeços de Krugman mapeiam bem as crises dos últimos anos. E nos lembram que não apenas não há identidade entre política macroeconômica e organização política, como a organização se nutre exatamente desse descompasso que a teoria econômica nunca contorna.

1 COMENTÁRIO

  1. A pergunta -heurística e eristicamente idônea- talvez seja: “o que é que o cu do Krugman tem a ver com as calças da organização política?”

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