por Héctor Orellana
A última eleição presidencial de 21 de novembro no Chile, que teve os candidatos José Antonio Kast (27,91%) e Gabriel Boric (25,83%) como os mais votados, levanta uma questão muito profunda e complexa sobre o que está acontecendo em um país onde há pouco mais de dois anos começou uma onda de protestos a partir da revolta social de 18 de outubro de 2019, que abriu caminho para redigir uma nova Constituição Política que se propõe realizar mudanças profundas e se livrar do modelo neoliberal.
Embora a decisão tenha ficado para o segundo turno da votação em 19 de dezembro, desde que os primeiros votos foram contados se ouve vozes dizendo que a democracia no Chile está em perigo. Ou melhor, um simulacro de democracia. Após o fim da ditadura em 1990, o que se seguiu foi um modelo político sob a proteção da ilegítima Constituição de 1980, escrita a portas fechadas, que promoveu a lógica do Estado subsidiário, e que deixou verdadeiros empecilhos à instalação de uma democracia real no Chile. A isto se soma uma classe política que não teve a coragem de pôr um fim ao legado político pinochetista e ao modelo econômico dos Chicago Boys, aburguesando-se com as regalias que vêm com cargos públicos na administração do Estado.
Na eleição que se aproxima, Kast é o herdeiro político da ditadura civil-militar chefiada pelo general Augusto Pinochet, tendo inclusive criado um movimento ultra-direitista ou – com todas as letras – fascista, a Frente Social Cristã, mais à direita do que o partido que agrupa a direita tradicional no Chile, a União Democrática Independente (UDI). Na Frente estão reunidos o Partido Conservador Cristão e o Partido Republicano do Chile, que estão dando forma a uma narrativa já repetida em outras partes do continente americano, como nos Estados Unidos com Donald Trump ou no Brasil com Jair Bolsonaro, que formaram uma aliança com setores historicamente direitistas, conservadores e com grupos religiosos católicos e evangélicos, estes últimos ainda emergentes, com uma linha doutrinária fundamentalista, ambiciosos de poder político e (mais) poder econômico.
Talvez diferente de Bolsonaro, Kast se mostra tranquilo, extremamente cauteloso, fala devagar, visto que não é um líder carismático nem apático, não tendo inclusive medo do ridículo ao usar redes sociais da moda como o Tik-Tok. Sem dúvida, segue um roteiro muito ensaiado, já que é sua segunda aventura presidencial, e sabe que encarna aquela direita dura que ainda pulula nos corredores do Congresso Nacional e, em menor medida, na Convenção Constituinte, órgão encarregado de redigir a nova Constituição. Nos últimos dias a UDI e a direita liberal (os partidos Renovação Nacional e Evópoli) deram seu apoio a Kast, seja porque não tinham outra alternativa já que seu representante no primeiro turno, Sebastián Sichel, não encantou o eleitorado mais de centro, ou porque faltam escrúpulos quando a direita precisa se alinhar.
Kast introduziu como discurso de campanha a reinstalação da ordem no Chile, a volta ao estado de coisas anterior ao levante social de outubro de 2019, onde a polícia seja respeitada, o modelo desigual de aposentadoria seja mantido, onde a saúde e a educação de qualidade sejam um privilégio para o setor mais abastado da população e tudo funcione em sincronia com a “Suíça da América do Sul”, como alguma vez se referiu o presidente Sebastián Piñera meses antes de começar seu pior pesadelo no governo.
Apesar disso, a face real de José Antonio Kast Rist é a de um candidato de um nacionalismo exacerbado, com um forte discurso antimigração; é a face da campanha de rechaço à nova Constituição; do apoio à militarização como forma de resolver o conflito mapuche; aquele que tacha de delinquentes os presos políticos da revolta social; que é totalmente contrário à ideologia de gênero e é conservador no que diz respeito aos direitos sociais, reprodutivos e sexuais das mulheres; anti homossexuais; cético da crise das mudanças climáticas, etc. Não esqueçamos que ele é filho de nazistas alemães que se refugiaram no Chile sob o amparo de um cartão da Cruz Vermelha que conseguiram para ocultar seu passado nas fileiras de Adolf Hitler.
Como foi possível que 1.961.387 pessoas votassem em Kast se um ano atrás 80% dos chilenos votaram a favor de uma nova Constituição por meio de um órgão independente como é a Convenção Constituinte?
De acordo com os números do Plebiscito e das últimas eleições municipais e para a Convenção, a direita dura estava em retrocesso e em queda livre no Chile, de onde se vê que essa expressiva votação de Kast é uma resposta desesperada de um setor que se vê a ponto de perder os privilégios de que gozaram por décadas e estão mobilizando até o último de seus tentáculos. Eles temem mudanças profundas que envolvam um sistema baseado na solidariedade e impõem um discurso de medo amparado no velho e obsoleto fantasma de que o Chile se torne uma segunda Cuba ou uma nova Venezuela; ou o retorno à polarização da década de setenta com a Unidade Popular do presidente Salvador Allende.
Além disso, o ideário dessa direita minimiza o significado do bem jurídico da dignidade das pessoas como eixo central de uma nova Carta Magna e da redefinição do papel do Estado na economia e na sociedade. Promovem um modelo de administração com um Estado reduzido, onde os entes privados sejam a peça fundamental da engrenagem econômica e social, convertendo em empresas com fins lucrativos desde times de futebol até a educação em todos os níveis, gerando desigualdade e estratificação social que segmenta seus integrantes segundo o hospital público ou clínica privada onde nasceu até a escola pública ou privada onde estudou. Já não estamos falando de cidadãos, mas de clientes.
Mas a estratégia de Kast também tem apelado ao vandalismo do movimento de protesto pós 18 de outubro de 2019, que se convencionou chamar de “outubrismo”, tachando-os de delinquentes ou lumpens, que só se dedicam a infundir terror entre a população, destruindo os arredores da Plaza Italia (hoje chamada de Plaza de la Dignidad), saqueando farmácias ou queimando lojas, bloqueando o centro da cidade a cada sexta-feira. Não se pode ignorar que dentro desse movimento existem grupos radicais, antissistêmicos, que muitas vezes atuam de forma violenta, diferente da democracia dos salões e chá das cinco a qual está acostumada nossa classe política, mas também é certo que milhares dos manifestantes que passam pela Alameda a cada sexta-feira o fazem de maneira pacífica, arriscando a própria vida ante à violência repressora com que atua a polícia chilena, que já deixou mais de 470 pessoas com traumas oculares pelo uso excessivo da força, entre eles os emblemáticos casos do jovem estudante de sociologia Gustavo Gatica e a trabalhadora Fabiola Campillai.
É preciso assinalar que sem o “outubrismo” não teria sido possível o Chile chegar ao fim da transição democrática pós ditadura, porque alguns analistas haviam concluído que com a saída de PInochet seja da presidência, seja da vida política, teria início uma nova etapa, o que não ocorreu. No Chile, a verdade é que nunca caiu nosso “muro de Berlim”, a Constituição Política de 1980, que a direita construiu como uma verdadeira obra de engenharia legal para perpetuar-se no poder sem necessariamente estar nele, com o quórum de dois terços para aprovar reformas constitucionais, permitindo que uma minoria tivesse mais força que a maioria.
O Chile se vê confrontado entre avançar para uma verdadeira transformação social ou retroceder para prosseguir em um modelo que se mostrou um fracasso, onde apenas uma pequena porcentagem de sua população se enriquece à custa da exploração do trabalho de muitos, de pessoas cujo salário não é suficiente nem para o mínimo nem tem garantias tão básicas como meios para se tratar de uma enfermidade grave ou se seus filhos poderão estudar em um sistema que lhes ofereça as mesmas possibilidades que qualquer outra criança da vizinhança.
Sim, a democracia está em perigo no Chile. Também está em risco todo o progresso feito em redigir uma nova Constituição, assim como todo o esforço empenhado pelo movimento social iniciado em 18 de outubro de 2019. O sonho de um Chile mais justo e digno está na berlinda, mas isso não significa que as demandas sociais tenham se esgotado porque o projeto de país representado pela extrema direita mostrou que está longe das aspirações da população, deixando explícito que as receitas neoliberais não servem para lidar com o dia-a-dia, muito menos para tempos complicados como os da pandemia de Covid-19.
Héctor Orellana Flores é um jornalista chileno, mestre em Direitos Fundamentais pela Universidade de Granada, Espanha.
Os quadros que ilustram o artigo são do pintor chileno Roberto Matta (1911 – 2002).
Kast é a negação da revolta social de 18 de outubro, isto é claro como o dia. Mas nem por isso Boric é o “legítimo representante das aspirações populares”. Sobre isso, no entanto, nenhuma palavra. Em vez de analisar como o processo revolucionário se perdeu (esse é o principal significado dessas eleições), o autor se contenta em reproduzir lugares comuns e fazer campanha para o candidato menos pior. Já vimos esse filme aqui no Brasil e o final não é dos melhores. Sem abandonarmos os lugares comuns (na análise e na prática política) não vamos longe.
O que nos ensina o Chile, ainda em meio a um levante, no decorrer de uma Constituinte e no desfecho das Eleições Presidencias?
• o filhote de Pinochet teve apenas 13% do total de eleitores, pois a abstenção atingiu 53% .
• o “mal menor” Boric entusiasmou uma enorme multidão de 12%, habilitando-se a ser uma Bachelet menos pior.
• talvez o mal maior imposto pela Democracia Liberal Representiva seja perenizar uma opção pelo mal menor: através da via eleitoral nenhuma mudança relevante se concretiza.
• uma Constituinte tem sua potência transformadora só, e somente se, estiver fundada e conduzida pelo Poder Constituinte: o movimento popular de massas como vanguarda política das lutas.
• as formas de organização do movimento de massas não mais correspondem aos modelos clássicos do Sec. XX, seja como Partido ou Frente de Organizações.
• candidaturas reformistas ou social-democratas, como a de Gabriel Boric, não são representativas do movimento de massas, portanto, dele tendem ter apoio muito restrito.
• as formas de organização atualizadas para o atual contexto histórico, serão geradas dentro da dinâmica do próprio movimento de massas.
• o novo paradigma tende a se configurar como Redes e Articulações, num embrião de relações sociais confederativas.
《O capitalismo não pode ser derrotado se ao mesmo tempo não se constrói outro mundo, outras relações sociais.
Esse mundo outro ou novo não é um lugar de chegada, mas um modo de viver que em seu cotidiano impede a continuidade do capitalismo.
Os modos de vida, as relações sociais, os espaços que somos capazes de criar devem existir de tal forma que estejam em luta permanente contra o capitalismo.》