Por João Bernardo
Há não muito tempo publiquei aqui um artigo sobre a fusão entre o amor e a morte na poesia portuguesa, Que povo é este, que povo?, ilustrado com interpretações de fado, e fiquei então com vontade de escrever já não sobre poesia, mas sobre o próprio fado, música urbana por excelência, daquela cidade junto ao rio e à beira do mar de que tanto gosto.
A história do fado está por fazer, se é que algum dia será feita, mas basta ouvir-lhe a música para lhe perceber raízes étnicas variadas e geograficamente dispersas, desde a Andaluzia até às idas e voltas ao Brasil. O fado resultou de uma miscigenação, como todas as grandes formas artísticas resultaram de miscigenações, o que desde já põe em causa os identitarismos. O que se sabe em definitivo é que o fado se gerou e desenvolveu ao longo do século XIX nas docas de Lisboa, canção de rufias e prostitutas, de uma certa fidalguia também, que gostava de se acanalhar com a ralé. João Ferreira Rosa, um dos maiores fadistas da minha geração, se não o maior, monárquico e tradicionalista, evocou na mais célebre das suas interpretações, Embuçado, este comum fascínio que a nobreza e a ralé sentiam pelo fado.
Noutro tempo a fidalguia
Que deu brado nas toiradas
Andava p’la Mouraria
Em muito palácio havia
Descantes e guitarradas.
A história que eu vou contar
Contou-ma certa velhinha
Uma vez que eu fui cantar
Ao salão de um titular
Lá p’ro Paço da Rainha.
E nesse salão doirado
De ambiente nobre e sério
Para ouvir cantar o fado
Ia sempre um embuçado
Personagem de mistério.
Mas certa noite houve alguém
Que lhe disse, erguendo a fala:
— Embuçado, nota bem,
Que hoje não fique ninguém
Embuçado nesta sala!
Ante a admiração geral
Descobriu-se o embuçado.
Era El-Rei de Portugal
Houve beija-mão real
E depois cantou-se o Fado.
João Ferreira Rosa canta Embuçado, com letra de Gabriel de Oliveira
sobre a música do Fado Tradição, de Alcídia Rodrigues.
Nas guitarras estão José Pracana e Fontes Rocha
e nas violas Francisco Peres e José Carlos da Maia.
Este era o ambiente social e geográfico, e nele o fado construiu o seu próprio mito — o mar e o marinheiro, um amor que parte e outro que fica em terra, a distância e a saudade. José Régio foi um dos grandes poetas portugueses do século XX, e não encontro ninguém que tivesse tão bem consagrado o mito, no poema Fado português.
O Fado nasceu um dia,
quando o vento mal bulia
e o céu o mar prolongava,
na amurada dum veleiro,
no peito dum marinheiro
que, estando triste, cantava,
que, estando triste, cantava.
Ai, que lindeza tamanha,
meu chão, meu monte, meu vale,
de folhas, flores, frutas de oiro,
vê se vês terras de Espanha,
areias de Portugal,
olhar ceguinho de choro.
Na boca dum marinheiro
do frágil barco veleiro,
morrendo a canção magoada,
diz o pungir dos desejos
do lábio a queimar de beijos
que beija o ar, e mais nada,
que beija o ar, e mais nada.
Mãe, adeus. Adeus, Maria.
Guarda bem no teu sentido
que aqui te faço uma jura:
que ou te levo à sacristia,
ou foi Deus que foi servido
dar-me no mar sepultura.
Ora eis que embora outro dia,
quando o vento nem bulia
e o céu o mar prolongava,
à proa de outro veleiro
velava outro marinheiro
que, estando triste, cantava,
que, estando triste, cantava.
Amália Rodrigues canta Fado português, poema de José Régio,
com música de Alain Oulman.
Na guitarra está Domingos Camarinha e nas violas Castro Mota e Martinho d’Assunção.
Para além da história e do mito, o que é o fado? Não como nasceu e se apresenta, mas como ele é. Se a própria Lucília do Carmo, que José Carlos Ary dos Santos considerou «um clássico do fado», repetiu, como tantas outras cantadeiras, antes dela e depois, que «O fado é tudo o que eu digo / Mais o que eu não sei dizer», como se poderá saber o que é o fado, senão pelo eco que nos soa?
Perguntaste-me outro dia
Se eu sabia o que era o fado.
Eu disse que não sabia,
Tu ficaste admirado.
Sem saber o que dizia
Eu menti naquela hora
E disse que não sabia,
Mas vou-te dizer agora.
Almas vencidas,
Noites perdidas,
Sombras bizarras.
Na Mouraria
Canta um rufia,
Choram guitarras.
Amor, ciúme,
Cinzas e lume,
Dor e pecado.
Tudo isto existe,
Tudo isto é triste,
Tudo isto é fado.
Se queres ser o meu senhor
E teres-me sempre a teu lado,
Não me fales só de amor,
Fala-me também do fado.
O fado, que é meu castigo,
Só nasceu p’ra me perder,
O fado é tudo o que eu digo
Mais o que eu não sei dizer.
Lucília do Carmo canta Tudo isto é fado, com letra de Aníbal Nazaré
e música de Fernando de Carvalho.
Ignoro quem está na guitarra e na viola.
Devia ter dito antes, se não quisesse começar de outra maneira, que existe um fado feminino e um fado masculino. No fado feminino a voz liberta-se, ou pode libertar-se e cada sílaba prolongar-se em volutas de som, enquanto o fado masculino deve ser sóbrio e fracassa completamente quando não o é. Se, por exemplo, Fernando Maurício ainda está dentro dos limites do suportável, já ouvir Francisco Martinho é confrangedor, como se verifica aqui. O contraste entre Amália Rodrigues e Alfredo Rodrigo Duarte, conhecido como Alfredo Marceneiro, ilustra bem o estilo feminino e o masculino. Amália tem no fado o mesmo estatuto que a Callas na ópera italiana, quero dizer, quem nunca foi superada e jamais o será. E assim como Amália é o modelo do fado feminino, Marceneiro é o modelo do fado masculino. (Sugiro uma experiência. Ouçam Marceneiro a cantar e depois Louis Armstrong, ou na ordem inversa.) João Ferreira Rosa, que escutámos no começo deste artigo, foi um discípulo atento de Marceneiro, que aliás aparece no vídeo fugazmente em primeiro plano, um senhor idoso de cabelo pintado e óculos escuros, com o indispensável cachené que ele nunca largava. Amália usou a música de Marceneiro para escrever a letra de Estranha forma de vida, mas foi com a sua voz que cantou.
Foi por vontade de Deus
Que eu vivo nesta ansiedade,
Que todos os ais são meus,
Que é toda a minha saudade,
Foi por vontade de Deus.
Que estranha forma de vida
Tem este meu coração.
Vive de vida perdida,
Quem lhe daria o condão?
Que estranha forma de vida.
Coração independente,
Coração que não comando,
Vives perdido entre a gente,
Teimosamente sangrando,
Coração independente.
Eu não te acompanho mais.
Pára, deixa de bater.
Se não sabes onde vais,
Porque teimas em correr?
Eu não te acompanho mais.
Se não sabes onde vais,
Pára, deixa de bater.
Eu não te acompanho mais.
Amália Rodrigues canta Estranha forma de vida,
com letra dela própria e música de Alfredo Marceneiro.
Na guitarra está José Nunes e na viola Castro Mota.
Ouvidas as espirais da voz de Amália, que sempre rasgam no horizonte um infinito de desejos, fazendo-os depois contrastar com os limites das ruas estreitas da cidade, é agora a voz de Marceneiro que nos traz de volta a essas ruas, às vielas que aprisionam os destinos e que ele cantou sobre uma música sua, a do Fado Cravo, com letra de Guilherme Pereira da Rosa.
Fui de viela em viela.
Numa delas, dei com ela
E quedei-me enfeitiçado…
Sob a luz dum candeeiro,
Estava ali o fado inteiro,
Pois toda ela era fado.
Arvorei um ar gingão,
Um certo ar fadistão
Que qualquer homem assume.
Pois confesso que aguardei
Quando por ela passei
O convite do costume.
Em vez disso, no entanto,
No seu rosto só vi pranto,
Só vi desgosto e descrença.
Fui-me embora amargurado.
Era fado, mas o fado,
Não é sempre o que se pensa.
Ainda recordo agora
A visão, que ao ir-me embora
Guardei da mulher perdida.
Na pena que me desgarra
Só me lembra uma guitarra
A chorar penas da vida.
Alfredo Marceneiro canta Viela, com letra de Guilherme Pereira da Rosa
sobre a música do Fado Cravo, composta pelo próprio Marceneiro.
Na guitarra está Francisco Carvalhinho e na viola Martinho d’Assunção.
Hesitei noutros casos, mas agora não resisto a comparar interpretações. A gravação anterior data de 1961. Em 1976, com oitenta e cinco anos de idade, cabelo pintado e óculos escuros, além do cachené, a voz de Marceneiro é mais pungente ainda.
Nas guitarras estão José Pracana e Fontes Rocha
e nas violas Francisco Peres e José Carlos da Maia.
É muito diferente a expressão estilística de Estranha forma de vida, cantada por Amália, e de Viela, cantada por Marceneiro, mas a realidade é a mesma, e esta «mulher perdida» que um homem encontrou «sob a luz dum candeeiro» poderia bem ser aquela mulher cujo coração «vive de vida perdida».
Decerto, outros temas se introduziram, e com vinho e entre amigos as desgarradas soam alegres, mas são talvez mais jocosas do que alegres, grosseiras sobretudo, e mesmo ali os desencontros amorosos estão presentes. Nesta desgarrada os brasileiros não entenderão as obscenidades e os duplos sentidos, porque a gíria é muito diferente num e no outro lado do mar, mas entendem o ambiente e é isso, talvez, o principal.
Nesta desgarrada no Pátio das Artes participaram, por ordem da primeira intervenção, Emanuel Soares, Rodolfo Godinho, Ana Catarina Grilo, Abel Lopes, Andreia Matias,
um anónimo e Paulo Silva.
Na guitarra esteve Rodolfo Godinho, na viola Francisco do Carmo
e na viola baixo José da Guia Ferreira.
Mesmo com o vinho e as gargalhadas, a morte não estava distante. «Fui um dia ao cemitério / e pisei as campas todas / veio de lá um morto e disse: / talvez um dia… te lixes», cantou Andreia Matias, e foi a hesitação final, com a troca da última palavra, que trouxe mais picante, porque lixar-se, que é uma gíria polida para prejudicar-se, substituiu, evidentemente, «talvez um dia te fodas». Ora, este macabro tem uma genealogia, porque nos alvores do romantismo difundiu-se, sobretudo em Inglaterra, um estilo de romance tenebroso, a que se chamava gótico. Afinal, a quadra que Andreia Matias cantou pode classificar-se de forma erudita como gótica. Mais gótico ainda é o fado ao atingir o tema tabu da necrofilia, e foi o que sucedeu com aquele anónimo que o vinho fazia oscilar circularmente em torno de um eixo vertical, quando cantou «Minha prima morreu ontem / enterrei-a na valeta / mas deixei uma mão de fora / para me bater a punheta».
Vinho e risos, porém, não fazem esquecer o que nunca se esquece, porque os fadistas que animam as desgarradas são os mesmos que cantam no fado sério infinitas variações sobre o tema da infelicidade.
A ilustração que encabeça o texto é um exemplo de arte de rua nas Escadinhas de São Cristóvão, no bairro da Alfama, em Lisboa.
A segunda parte deste artigo pode ser lida aqui.
Caro João Bernardo,
O artigo proporciona uma saborosa viagem pelo fado, aguardo a continuidade na próxima próxima sexta-feira.
Uma questão me ocorreu ao ler o artigo anterior (“Que povo é este, que povo?”) e se repetiu agora. Fiquei a imaginar parentescos entre o fado e o tango, quase como se fossem irmãos separados pelo oceano. Talvez tenha a ver com a origem de ambos “entre a ralé dos portos”. Os versos Anílbal Nazaré, por exemplo, dialogam com o universo do tango: “Almas vencidas/ Noites perdidas/ Sombras bizarras”. Enfim, “o fado é tudo o que eu digo mais o que não sei dizer”.
A única coisa que eu achei ruim é ter de esperar o dia 18 pela continuação.
Excelente.
j lembrou do tango, eu lembrei dos encontros poéticos que Rancière conta em “A noite dos proletários”.
Quanto ao cantar do Francisco Martinho, não me soou nada constrangedor!
Caro j, não tenho conhecimentos musicais suficientes para lhe responder. Rui Vieira Nery, que é um excelente musicólogo, profundo conhecedor da música erudita, interessa-se igualmente pelo fado. Aliás, o seu pai foi um destacado guitarrista de fado, que acompanhou praticamente todas as grandes cantadeiras e cantadores. Mas vejo que as opiniões de Rui Vieira Nery sobre as origens do fado são contestadas por outros estudiosos, por isso escrevi que a história do fado está por fazer. Penso que não se chegou ainda ao necessário consenso mínimo sobre as suas origens musicais. Refere-se com frequência uma contribuição brasileira, especificamente negra, através da modinha e do lundu, mas no fado feminino parece-me sensível a afinidade com a música ibérica de raízes árabes, nomeadamente o flamenco e especialmente o cante jondo, dos ciganos da Andaluzia. Ouça nesta perspectiva as volutas de voz de Amália, e tem um exemplo extremo em Cansaço, o poema de Luís de Macedo cantado por Ana Moura em Seattle, em 2006, que eu reproduzi no outro artigo que você mencionou. Como não reconhecer na sua maneira de cantar as afinidades andaluzas e árabes?
Ana Moura foi uma excelente fadista, mas perdeu-se quando preferiu ganhar muito dinheiro, convertendo-se numa vedeta internacional e desvirtuando o fado. Tantas outras seguiram o mesmo caminho! Foi o que sucedeu com muitos desses nomes conhecidos no Brasil como se fossem fadistas e que não são mais do que cantoras que cantam o fado, o que é muito diferente de ser fadista e pode mesmo ser o oposto.
É que, na verdade, o fado tem várias semelhanças com o tango, antes de mais serem ambos músicas urbanas de cidades portuárias, geradas no seio da plebe, o que decerto condiciona a existência de temas comuns. Aliás, há também uma música de fado tradicional, composta por Joaquim Campos, intitulada Fado tango, que acompanha precisamente Cansaço, que recordei há pouco. É uma música muito usada e, para dar outro exemplo, é também sobre o Fado tango que António Pelarigo, um excelente amador, canta o poema Esquina de rua, de João Fezas Vital.
Mas há outra coisa ainda, é que tanto o tango como o fado são o que eu chamo músicas populares eruditas, quero dizer, que devem ser cantadas e tocadas respeitando padrões estritos. Tal como sucede na música usualmente designada como clássica, toda a dificuldade consiste em atingir o máximo de expressão dentro de padrões rigorosos e limitados, e é dentro desses padrões que se pode criar e evoluir, ou que se pode improvisar e fazer variações, como noutra música erudita, o jazz.
E passo assim para a resposta ao Rodrigo. Para os meus ouvidos Francisco Martinho é confrangedor porque não se canta fado como se fosse uma ópera de Verdi nem se canta fado masculino como se feminino fosse. Pelo mesmo motivo, porque se trata de uma forma musical erudita, eu me recuso a ouvir fado que não seja acompanhado exclusivamente por guitarra e viola. Essas cantoras que cantam o fado sem serem fadistas fazem-se frequentemente acompanhar por contrabaixo, bateria, saxofone, até por violinos. Isso não é fado, é a conversão do fado em kitsch. Nesta primeira parte do artigo eu exemplifiquei o fado masculino com as vozes de Marceneiro, evidentemente, e de João Ferreira Rosa. Há pouco coloquei um link para António Pelarigo. Se os tomar como padrão de referência, entenderá porque considero Francisco Martinho, e outros como ele, confrangedores.
Grato pela explicação, João Bernardo, agora compreendi. E não conhecia o termo “confrangedor”, que, diferentemente de “constrangedor”, não envolve vergonha – é comum sentir-se constrangido ao ouvir alguém cantando (ao vivo) de forma semitonada, desafinando as melodias.
Nesse caso, o canto do Francisco Martinho não tem absolutamente nada fora do lugar quanto à afinação, e absolutamente tudo fora do lugar quanto àquilo que canta. Ouvi agora há pouco ele cantando “Velha Lisboa”, e em alguns momentos ele canta de modo “angelical”, sem a aspereza que se ouve nos outros fadistas. Curiosamente, uma comentarista no YouTube escreveu o seguinte: “Sempre adorei ouvir esta bela e timbrada voz só ele conseguia cantar assim …” Por outro lado, no vídeo que está linkado ao texto, as pessoas o consideram um desconhecido ao lado do “rei Fernando Maurício”.
Saindo do fado, mas não do tópico das descaracterizações, considero totalmente confrangedora a música “Sunday Bloody Sunday” na versão samba feliz do Sambô…