Dinheiro

Por M. Major

O leitor desta coluna do Passa Palavra, ao receber sua edição diária de um jornal de grande circulação no dia 3 de fevereiro, irá se deparar com a notícia de que o Copom decidiu novamente aumentar a taxa básica de juros (Selic). Desta vez deverá superar os 10% ao ano, coisa que não se via desde 2017. Ao folhear o jornal em busca de explicação, encontrará uma série de especialistas felicitando o órgão pela decisão e prevendo num futuro próximo que isso controlará a inflação.

Nesse momento a memória lhe resgatará a notícia de que os juros nos Estados Unidos também devem subir para conter a inflação. Dessa forma, o leitor talvez fique satisfeito com a comparação entre países, e tranquilo com a justificativa de que quando a inflação sobe, subir a taxa de juros é o remédio correto para controlá-la.

Você então larga seus jornais e abre o Passa Palavra. Encontra nele, para o seu horror, o presente artigo lhe dizendo que nada do que você leu anteriormente explica a alta da inflação doméstica corretamente, como tampouco te informa sobre o fato de que o Brasil está prestes a mergulhar novamente na saudosa aventura rentista.

Primeiro, precisamos entender a relação entre juros e a inflação. A taxa básica de juros na maior parte dos países ocidentais é controlada pelos seus Bancos Centrais, que a utilizam como ferramenta para intervir na quantidade de moeda que circula na economia. A oferta de moeda, por sua vez, influencia nas decisões de consumo. Quanto mais recursos disponíveis, mais as pessoas gastam e os preços inflacionam.

Então você se pergunta: mas por que inflacionam, se a decisão do Banco Central de subir a taxa básica não influencia diretamente as taxas do mercado e muito menos os preços dos produtos? Mesmo que os bancos comuns possam definir suas taxas livremente, a taxa básica (Selic) corresponde aos juros das operações entre o Banco Central (BC) e os outros bancos, sejam empréstimos do BC para instituições privadas ou o contrário.

Portanto, quando a taxa básica sobe, fica mais caro para os demais bancos acessarem recursos do Banco Central, de modo que o seu banco irá cobrar mais caro para te fornecer dinheiro. Isso significa que menos pessoas serão capazes de arcar com empréstimos. O resultado é menos dinheiro circulando na economia e menos consumo, deflacionando os preços.

Essa lógica simples e elegante é a base da política monetária. Entretanto, subir os juros acarreta outras consequências para a economia, e talvez não seja a maneira mais eficiente para conter a recente inflação brasileira. Leitor crítico que você é, agora indaga-se: mas se funciona para os EUA, por que seria diferente para nós?

No caso estadunidense, o governo injetou na economia trilhões de dólares entre 2019 e 2021, em pacotes de estímulos para conter a crise gerada pela pandemia. Essa política fiscal foi o motor da recuperação da economia dos EUA: a taxa de emprego caiu, o consumo retornou e a atividade voltou a crescer (PIB com alta de 5,7% em 2021).

Com a alta do consumo, a inflação retornou. Esta tem relação direta com a recuperação da atividade econômica do país. A alta dos juros, seguindo a teoria clássica, seria a solução. Ainda assim, o Banco Central deles foi muito cauteloso ao anunciar o ciclo de altas dos juros, que deve se iniciar somente em março, também criticado pelo presidente Biden, pois a atividade sofrerá com a medida.

 

EUA Brasil
Pacote Fiscal (US$)* 7.2 trilhões 0.2 trilhões
Pacote Fiscal (% PIB 2020) 35% 15%
Taxa desemprego jun/20 11.0% 11.6%
Taxa desemprego dez/21 3,90% 11.6%
Inflação jan/2020 2,50% 4,19%
Inflação dez/21 7,00% 10,06%
Taxa básica de juros jan/20 1,0% – 1,25% 4,50%
Taxa básica de juros dez/21 0,0% – 0,25% 9,25%
* Estímulos para combater efeitos da pandemia de 2019 a 2021

 

No Brasil, o cenário é completamente diferente (ver tabela abaixo). Desde a saída do PT do governo, em 2015, o discurso sobre o controle dos gastos do governo retornou de tal forma que, mesmo com a pandemia, o tamanho dos pacotes de incentivo foram singelos.

O efeito positivo desses pacotes não bastaram para tirar a economia do buraco. O desemprego é recorde, a fome cresce e a economia deve crescer novamente em torno de 1,2% em 2021, mostrando uma das piores recuperações do mundo. Apesar da economia estagnada, o IPCA, principal medidor da inflação brasileira, encerrou 2021 com taxa de 10,06%, patamar que não era visto desde 2015.

Agora eu te pergunto leitor: se a economia não se recuperou e não estamos consumindo mais, o que explica a inflação?

Sem recuperação econômica, a inflação sobe por causas externas ao mercado doméstico. Os principais fatores são a desvalorização do real (moeda que mais perdeu valor em relação ao dólar em 2020) e alta dos preços das commodities no mercado internacional.

A desvalorização do real acarreta duas consequências: (i) produtos importados mais caros, inclusive os insumos das fábricas nacionais, que inflacionam seus preços; (ii) os produtos internos barateiam lá fora, e levam o produtor a exportar, reduzindo a oferta interna e pressionando os custos.

Segundo dados do IBGE, há ainda outras causas como (a) valorização das commodities agrícolas, que inflacionou os alimentos; (b) a valorização do petróleo e gás no mercado internacional, que inflacionou os combustíveis por aqui; e (c) a crise hídrica, que inflacionou o custo da energia elétrica.

Considerando as causas inflacionárias acima, qual será o efeito de subir a taxa de juros? Dificultar o acesso ao dinheiro, reduzirá o consumo. Entretanto, menos consumo não interferirá nos preços internacionais de commodities, ou na decisão da Petrobras de ajustar o valor dos combustíveis; muito menos trará chuva para amenizar o custo da energia.

Qual a aposta por trás do aumento da taxa? Ela é simples, e talvez simplória: a redução do consumo reduzirá o preço de outros produtos, e isso pode compensar a inflação dos produtos que listamos acima. A dúvida que nos resta é se esse controle inflacionário é um mal necessário para a retomada da economia ou o pior caminho de recuperá-la.

E digo pior caminho porque subir o juro também dificulta o consumo. Brasileiros sentirão a alta nas taxas dos financiamentos, das compras parceladas, do cheque especial, do rotativo do cartão de crédito. Vamos supor você seja assalariado, ganhe o equivalente à renda média brasileira, e considere financiar um imóvel de R$ 200 mil em 20 anos:

 

Taxa de juros 2% 10%
Valor do financiamento (R$) 200 mil 200 mil
Valor final pago (R$) 243 mil 463 mil
Parcela mensal paga 1.011 1.930
Parcela (% renda média brasileira)* 41% 79%
* Renda média mensal Brasileira em 2021 é de R$ 2449,00 (IBGE)
** simulação de um financiamento de 20 anos, sem considerar taxas administrativas e ajustes de inflação

 

Com a Selic em 2%, você terá que pagar parcelas mensais equivalentes a 41% do seu salário e ao final desembolsaria cerca de 20% a mais do que o valor financiado. No cenário de juros de 10%, as parcelas do financiamento consumirão quase 80% da sua renda mensal e o valor total gasto seria mais do que o dobro que o saldo inicial.

Outro efeito da alta de juros é a redução do investimento privado. Com recursos mais caros, empresas terão menos acesso a empréstimos e, portanto, farão menores investimentos. Para empresas fragilizadas pela crise que precisam de crédito para manter seu funcionamento, a alta pode significar a falência. Menos empresas, menos emprego.

Há ainda outras pressões para o aumento da taxa de juros. Uma delas é o próprio aumento da taxa estadunidense, que explicarei num próximo artigo, e a outra é o ano eleitoral brasileiro. A incerteza sobre a implementação das reformas liberais no Brasil costuma deixar o mercado financeiro apreensivo, de modo que os investidores exijam maior retorno pelo dinheiro investido. A expectativa de maior risco, portanto, faz com que as taxas de juros de mercado subam.

Vale fazermos uma comparação entre o financiamento de uma casa de 200 mil e o investimento de 200 mil reais com a nova taxa de juros:

 

Taxa de juros 10%
Valor Investido (R$) 200 mil
Valor final (R$) 1.345 milhões
Rendimento mensal médio (R$)* 9.542
Rendimento (% renda média brasileira)** 390%
*Valor total de rendimentos dividido pelos meses do período do investimento
** Renda média mensal Brasileira em 2021 é de R$ 2449,00 (IBGE)

 

Você já deve ter percebido meu ponto. Enquanto a maioria da população enfrentará a alta da taxa de juros como um obstáculo ao consumo e à melhora na qualidade de vida, uma minoria a verá como oportunidade de rentabilizar seu dinheiro com investimentos de baixo risco. Assim, o que parece somente uma política de controle inflacionário, se torna uma janela para o aumento da desigualdade.

Nada disso é novo por aqui, inclusive sempre chamamos esse estado de coisas de rentismo. Em um país que a taxa básica nos últimos 20 anos esteve acima de 10% a.a. em 12 deles, estamos só voltando para uma normalidade. Resta saber se este jargão voltará ao centro do debate econômico neste ano eleitoral.

5 COMENTÁRIOS

  1. M. Major,

    Gostaria que explicasse qual a diferença entre a perspectiva que aqui defende e aquela que Erdoğan tem aplicado na Turquia, com efeitos catastróficos.

    Já agora, uma pequena observação. Quando escreve, referindo-se aos Estados Unidos, que «a taxa de emprego caiu», certamente queria dizer a taxa de desemprego.

  2. “Sem recuperação econômica, a inflação sobe por causas externas ao mercado doméstico”. Não sei se esta afirmação procede ou mesmo se a tese defendida pelo autor procede. Vejamos:

    “De acordo com dados divulgados nessa terça-feira (21/12) pela Receita Federal, o Governo Federal arrecadou R$ 157,34 bilhões em novembro, com aumento de 1,41% acima da inflação em valores corrigidos pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Em 2020, neste mesmo mês, o valor arrecadado foi cerca de R$140 bilhões.

    O valor deste ano é o maior da história para meses de novembro desde o início da série histórica da Receita Federal, em 1995. Considerando o acumulado do período de janeiro a novembro deste ano, o valor arrecadado foi R$ 1,685 trilhão, com alta de 18,13% acima da inflação pelo IPCA, outro recorde para o período.”(https://www.gov.br/pt-br/noticias/financas-impostos-e-gestao-publica/2021/12/governo-federal-arrecada-r-157-34-bilhoes-em-novembro-e-bate-recorde)

    Por outro lado:

    “Considerando a série histórica anterior, iniciada em 1948, o tombo de 4,1% em 2020 foi o maior em 30 anos e o terceiro pior resultado anual da história econômica do Brasil. As maiores retrações já registradas ocorreram em 1981 e 1990, quando houve queda de 4,3% do PIB em ambos os anos. (…) Entre os principais setores houve alta somente na Agropecuária (2%), enquanto que a Indústria (-3,5%) e os Serviços (-4,5%) tiveram queda. Do lado da demanda, o consumo das famílias despencou 5,5% e os investimentos encolheram 0,8%.” (https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/03/03/pib-do-brasil-despenca-41percent-em-2020.ghtml)

    Como se explica que mesmo com a queda do PIB possa ter havido aumento da arrecadação?

    Só a agropecuária não explicaria este aumento. Nem apenas o “rentismo”, posto que, o acesso ao crédito vem caindo muito antes do aumento dos juros.

    “Num terceiro tipo de situações, alguns países que ocupavam uma posição marginal ou subordinada na economia mundial, como sucedia com as duas nações ibéricas ou, do outro lado do mar, com o Brasil de Getúlio Vargas e com a Argentina de Perón, recorreram ao fascismo para criar um sistema de economia organizada, que lhes permitisse proceder a um arranque industrial sustentável” (João Bernardo, Labirintos do Fascismo, Ultima edição PDF, p. 228)

    Acredito que o governo de Jair Bolsonaro organiza a economia nas condições e em moldes, não idênticos, mas muito similares às condições e moldes fascistas varguista, com a diferença em que a espoliação, na Era Vargas, se desse mais diretamente sobre o trabalho, enquanto na Era Bolsonarista a espoliação se dá diretamente sobre os rendimentos do trabalho. Em ambos os casos, a única espoliada é a classe trabalhadora.

    Portanto, os gestores da economia brasileira da atualidade, recorrem a expropriação direta, através dos impostos, e da expropriação indireta dos rendimentos dos trabalhadores através da inflação, para manter as condições gerais de produção e sustentar a economia.

  3. João, não entendo a relação com a Turquia.

    Até onde sabemos, a heterodoxia do Erdogan vem de sua cabeça, numa espécie de interpretação pessoal de teorias econômicas. A melhor reportagem que li foi da The Economist (https://www.economist.com/the-economist-explains/2022/01/27/is-recep-tayyip-erdogans-monetary-policy-as-mad-as-it-seems), que mapeia as aventuras de Erdogan como uma leitura maluca de uma teoria chamada neo-Fisherism:

    “An equation named after Irving Fisher, an early 20th-century American economist, defines the real interest rate as the nominal interest set by the central bank, adjusted for inflation. Assuming the real interest rate is determined by economic fundamentals that are fixed, then the equation appears to say that higher nominal rates must lead to higher inflation. Yet most economists view this argument as a mirage–a bit like saying that because government spending is a component of GDP, a bigger government will always lead to more prosperity. While nobody disputes the Fisher equation’s definitions, a weighty literature and decades of experience show that neo-Fisherism is no way to run an economy–especially one as unstable as Turkey’s.”

    Ele inclusive acabou de demitir o diretor da agência estatal de estatísticas, após a divulgação da última alta de inflação. Nesse tipo de cenário, a política monetária de Erdogan não toma parte na discussão heterodoxia vs. ortodoxia, somente ilustra as vontades de ditador que gostaria que a realidade se organizasse segundo sua cabeça.

    Da minha parte, entendo que o texto problematiza a solução de subir o juros para controlar a inflação, não porque isso não seja eficiente para controlar a inflação, mas porque o custo à classe trabalhadora numa economia destroçada será muito alto. O autor/a não propôs manter o juros como está, muito menos descer o juros, como faz o Erdogan.

    Talvez um próximo texto possa nos explicar o que deveríamos fazer nesse cenário atual.

  4. A questão de juros e inflação não se trata sequer de heterodoxia e ortodoxia.

    O que M. Major apresenta é o que os economistas ditos progressistas no Brasil batem na tecla desde sempre. tem que saber o que está gerando inflação para saber qual remédio deve ser dado. Mas aqui no Brasil como a banca manda e desmanda, tudo é sempre uma boa desculpa para aumentar os juros.
    A inflação brasileira não é gerada por demanda interna.

    Concordando com os principais motivos da inflação no Brasil apontados no artigo, a preocupação não deveria ser, portanto, aumentar juros. Vamos lá: reconstituir os estoques reguladores de alimentos (commodities), que foram desfeitos com o golpe de 2016 atendendo o interesse do agronegócio; acabar com o Preço de Paridade de Importação de petróleo, política essa também implementada pelo golpe de 2016 atendendo o interesse de acionistas privados da Petrobrás e de empresas de importação. Essas seriam algumas medidas para causas da inflação apresentadas no artigo.

    Obviamente essas medidas de combate à inflação batem de frente com interesses de grupos que sustentam o atual governo e o governo temer anterior.

    E a propósito, para quem comentou que o governo Bolsonaro visa organizar a economia assim ou assado… Realmente não sei onde que se pode enxergar Bolsonaro com algum projeto de organização de economia. Estamos num governo de pilhagem. Venda de ativos, transferencia de renda de baixo pra cima… Guedes organizador? Sequer no banco dele ele era bom gestor. Ele está lá para fazer negócios, privatizar, impor uma cartilha ultraneoliberal que se choca com a realidade. É tão ideólogo quando Olavo de Carvalho.

    Não sei como as pessoas fazem para enxergar um governo que pilha a Petrobrás, vendendo uma conjunto de refinarias integradas como se fossem independentes e criando um monopólio privado de distribuição, como um governo preocupado com condições gerais de produção. Muita fantasia. Para eles Eletrobrás e Petrobrás não são parte de condições gerais de produção, são ativos para serem vendidos para se lucrar em cima. A política de pilhagem significa alguns encherem o bolso agora deixando uma terra arrasada até mesmo para um desenvolvimento capitalista.

  5. Vamos lá!

    Bernardo, difícil comprar a situação econômica do Brasil com a da Turquia. Por lá, como nosso amigo Turco acima lembrou, vemos um desmonte da economia causado pelo presidente. A forçada queda dos juros, para além das inúmeras outras atrocidades, está gerando forte desvalorização cambial, que por sua vez, pressiona a inflação para cima.
    Eu não estou nem sugerindo corte de juros! Estou propondo que antes de decidir intervir é importante entender as causas inflacionárias.

    Acho que o Leo entendeu bem o ponto do artigo. Não estou inventando a roda aqui, a ideia é mostrar que o cenário é mais complexo do que essa solução dicotômica – sobem preços, sobe juros – que é apresentada como a única possível. Como ele mostra, existem outras saídas, de modo que a alta da Selic deve ser vista como uma decisão política que defende os interesses de certos grupos econômicos. Esses, por sua vez, estão confortáveis com os efeitos colaterais da alta dos juros para economia do país, uma vez que beneficiam deles.

    Por fim, Paul, vou novamente concordar com o Leo, não acho que o Bolsonaro esteja planejando nada tão arrojado. Ou se planeja, está longe de conseguir “criar um sistema de economia organizada, que lhes permitisse proceder a um arranque industrial sustentável”. Ainda mais com um parque industrial obsoleto e condições para investimento precarizadas pela alta dos juros.
    Em relação a Arrecadação, nada indica recuperação da demanda doméstica. Veja os destaques da apresentação da RFB do resultado de dezembro:
    1. Em 2020, por conta da pandemia, tivemos inúmeras isenções tributárias. Logo, na comparação de um ano com o outro, não surpreende a forte alta na arrecadação em 2021.
    2. Destaque especial para PIS/Cofins, com alta na arrecadação sobre combustíveis e importações.
    3. Destaque para arrecadação de IRRF-Capital, vindo de rendimentos de fundos de renda fixa.
    4. Destaque para arrecadação de IOF
    (https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/acesso-a-informacao/dados-abertos/receitadata/arrecadacao/relatorios-do-resultado-da-arrecadacao)

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