Por João Bernardo
Os vizinhos dizem que as zangas eram frequentes — violência doméstica, chamam-lhe eles — os gritos, as pancadas. Ela rompia, ia embora, regressava, a mulher dela abraçava-a, acolhia-a, beijavam-se, amavam-se, para de novo a mulher bater na mulher, e sempre as lutas alimentavam o amor. «Voltaste, ainda bem que voltaste», mas o amor gerava o ciúme e outras zangas. Valeria a pena?
Voltaste, ainda bem que voltaste.
As saudades que eu sentia não podes avaliar.
Voltaste, e à minha vida vazia
Voltou aquela alegria que só tu lhe podes dar.
Voltaste, ainda bem que voltaste.
Embora saiba que vou sofrer o que já sofri,
Cansei, cansei de chorar sozinha,
Antes mentiras contigo do que verdades sem ti.
Voltaste, que coisa mais singular,
Eu quase não sei cantar se tu não estás a meu lado.
Voltaste, já não me queixo nem grito,
És o verso mais bonito deste meu fado acabado.
Voltaste, ainda bem que voltaste.
O passado é passado, para quê lembrar agora!
Voltaste, quero lá saber da vida!
Quando dormes a meu lado, a vida dorme lá fora.
Maria da Fé canta Voltaste, com letra e música de Joaquim Pimentel.
Nas guitarras estão José Pracana e José Nunes
e nas violas José Inácio e Pedro Leal.
«Antes mentiras contigo / Do que verdades sem ti». E de cada vez que ela voltava era maior o amor, e tanto maior quanto a sua mulher sabia já que ela iria de novo partir, para de novo voltar. Mas que importa? «Quando dormes a meu lado / A vida dorme lá fora». Esta espiral crescente de ciúme e desejo romper-se-ia? Rompeu-se um dia, como noutro tempo e noutra cidade se rompera o amor entre a Emília da fábrica de cigarros e o marujo gingão.
João Villaret renovou em Portugal a arte de dizer, transfigurou-a. Mais tarde, José Carlos Ary dos Santos escancarou as portas que Villaret abrira, e outros passaram por elas, como Mário Viegas, por exemplo. Não posso aqui poupar uma reminiscência pessoal. Em 1962 realizou-se uma sessão na Sociedade Nacional de Belas Artes, espectáculo único, para evitar o pedido de autorização que a censura inevitavelmente recusaria, e à porta fechada, para evitar que a polícia política estivesse na rua a identificar quem assistia e a actualizar as fichas. Uma sessão, como outras, anunciada de boca em boca, no meio circunscrito da resistência antifascista. José Carlos Ary dos Santos, acompanhado pelo quinteto do Hot Clube, declamou A Confissão de Lúcio, longa narrativa em prosa de Mário de Sá-Carneiro, um dos poetas do Orfeu. Nunca esquecerei essa sessão. Eu tinha dezasseis anos, estava na idade em que tudo marca. Durante muito tempo, décadas, não voltei à Confissão de Lúcio, e o que aquela narrativa me deixara na memória não havia sido o decadentismo simbolista fin de siècle, mas só a avassaladora sensualidade, a homossexualidade como um desdobramento do próprio corpo, o seu reflexo. «Se eu fosse mulher, nunca me deixaria possuir pela carne dos homens — tristonha, seca, amarela: sem brilho e sem luz… Sim! num entusiasmo espasmódico, sou todo admiração, todo ternura, pelas grandes debochadas que só emaranham os corpos de mármore com outros iguais aos seus», e a voz de Ary dos Santos expandia-se, enchia a grande sala com a luxúria capaz de tudo invadir, de tudo destruir. «E de toda a sua carne, em penumbra azul, emanava um aroma denso a crime». Naquela noite ouvi A Confissão de Lúcio como se fosse um fado, fado com jazz.
Mas que importa a lembrança do que já só existe na minha memória? Morreu Ary, morreram os músicos do Hot Clube, será que ainda sobrevive alguém que lá estivesse? É a pulsão do amor que interessa aqui, um amor levado ao auge pela ruptura que gera o desespero, o antigo amor da Emília cigarreira e o desta outra mulher dos nossos dias. Melhor do que ninguém, Villaret transmitiu esse amor, na proeza de falar o fado.
Fado triste, / Fado negro das vielas, / Onde a noite quando passa / Leva mais tempo a passar. / Ouve-se a voz, / Voz inspirada de uma raça / Que mundo em fora nos levou / Pelo azul do mar. / Se o fado se canta e chora, / Também se pode falar.
Mãos doloridas na guitarra / Que desgarra dor bizarra, / Mãos insofridas, mãos plangentes, / Mãos frementes e impacientes, / Mãos desoladas e sombrias, / Desgraçadas, doentias / Quando há traição, ciúme e morte / E um coração a bater forte.
Uma história bem singela: / Bairro antigo, uma viela, / Um marinheiro gingão / E a Emília cigarreira, / Que ainda tinha mais virtude / Que a própria Rosa Maria / No dia da procissão / Da Senhora da Saúde.
Os beijos que ele lhe dava / Trazia-os ele de longe, / Trazia-os ele do mar, / Eram bravios e salgados. / E ao regressar à tardinha / O mulherio tagarela / De todo o bairro de Alfama / Cochichava em segredinhos / Que os sapatos dele e dela / Dormiam muito juntinhos / Debaixo da mesma cama.
Pela janela da Emília / Entrava a lua. / E a guitarra / À esquina de uma rua gemia, / Dolente, a soluçar. / E lá em casa:
Mãos amorosas na guitarra / Que desgarra dor bizarra, / Mãos frementes de desejo, / Impacientes como um beijo, / Mãos de fado, de pecado, / A guitarra a afagar / Como um corpo de mulher / Para o despir e para o beijar.
Mas um dia, / Mas um dia santo Deus, ele não veio. / Ela espera olhando a lua, meu Deus, / Que sofrer aquele! / O luar bate nas casas, / O luar bate na rua, / Mas não marca, mas não marca a sombra dele. / Procurou como doida / E ao voltar de uma esquina / Viu ele acompanhado / Com outra ao lado, de braço dado, / Gingão, feliz, rufião, / Um ar fadista e bizarro, / Um cravo atrás da orelha / E preso à boca vermelha / O que resta de um cigarro. / Lume e cinza na viela. / Ela vê, que homem aquele, / O lume no peito dela, / A cinza no olhar dele.
E então… / e o ciúme chegou como lume / Queimou, o seu peito a sangrar. / Foi como vento que veio / Labareda atear, a fogueira aumentar. / Foi a visão infernal, / A imagem do mal que no bairro surgiu. / Foi um amor que jurou, / Que jurou e mentiu. / Ah! Corre em vertigem num grito / Direita ao maldito que a há-de perder. / Puxa a navalha. Canalha! / Não há quem te valha, / Tu tens de morrer! / Há alarido na viela, / Que mulher aquela, / Que paixão a sua! / E cai um corpo sangrando / Nas pedras da rua.
Mãos carinhosas, generosas, / Que não conhecem o rancor, / Mãos que o fado compreendem / E entendem sua dor, / Mãos que não mentem / Quando sentem / Outras mãos para acarinhar, / Mãos que brigam, que castigam, / Mas que sabem perdoar.
E pouco a pouco o amor regressou, / Como lume queimou / Essas bocas febris. / Foi um amor que voltou / E a desgraça trocou / Para ser mais feliz. / Foi uma luz renascida, / Um sonho, uma vida / De novo a surgir. / Foi um amor que voltou, / Que voltou a sorrir.
Ah! Há gargalhadas no ar/ E o sol a vibrar / Tem gritos de cor. / Há alegria na viela / E em cada janela / Renasce uma flor. / Veio o perdão e depois / Felizes os dois / Lá vão lado a lado. / E digam lá se pode ou não / Falar-se o fado.
João Villaret declama Fado falado, poema de Aníbal Nazaré, António Porto
e Nelson de Barros.
Ignoro quem está na guitarra e na viola.
Mas as navalhadas desferidas no bairro lisboeta da Alfama pela Emília cigarreira não foram mortais, as desculpas e o perdão puderam converter-se num renovar do ciclo «e pouco a pouco o amor regressou / como lume queimou / essas bocas febris». Não sucedeu isto na cidade do Porto, onde a mulher que pela última vez se fora embora exigiu o divórcio, e a sua ex-mulher, definitivamente abandonada, às seis e meia da manhã de 13 de Março de 2021 a matou com doze facadas no peito, nas costas, nos braços e no pescoço. «E cai um corpo sangrando / Nas pedras da rua». Em seguida, com a roupa ensanguentada, caminhou até ao posto de polícia mais próximo, para se entregar. No passado dia 9 de Fevereiro um tribunal condenou-a a dezoito anos de prisão.
O que irá suceder àquele enorme amor numa cadeia feminina, para mais com o prestígio que os crimes de sangue conferem no meio prisional? Inevitavelmente, ela despertará novos interesses, apenas carnais, e tantos mais quanto, ao se afogar neles, esquecerá o outro amor, o verdadeiro, agora impossível. A cadeia não são só os muros e as janelas com barras, é a rotina interna que anestesia o espírito e debilita a vontade. A assassina terá um bom comportamento, cumprirá metade da pena, ou menos, daqui a oito anos estará em liberdade. Mas já não será a mesma. A paixão que a movera, se apossara dela e a fizera viver como aquilo que ela fora, desfez-se e jamais se reconstituirá. Do «amor, ciúme / cinzas e lume / dor e pecado» restarão só as cinzas. E frias. Tal como Lúcio recorda no final da Confissão, depois de ter expiado o seu crime com dez anos de cárcere, «acho-me tranquilo — sem desejos, sem esperanças. Não me preocupa o futuro. O meu passado, ao revê-lo, surge-me como o passado de um outro». Em liberdade e sem nada que a mova senão o hábito dos dias, aquela mulher mal se lembrará de ter sido outra pessoa e pensará, como Maria Teresa de Noronha, «sinto saudade imensa / de saudade já não ter».
Cansada de ter saudade
Tudo fiz para esquecer
E hoje tenho saudade
De saudade já não ter.
Sem força para suportar
A minha fatalidade
Ajoelhei a rezar
Cansada de ter saudade.
Roguei a Deus dar-me a sorte
Esta vida até morrer
Essa saudade de morte
Tudo fiz para esquecer.
Foi minha prece atendida
Por Deus na sua bondade.
Como estou arrependida
E hoje tenho saudade.
Castigo para quem não pensa
Quem não sabe o que é sofrer,
Pois sinto saudade imensa
De saudade já não ter.
Maria Teresa de Noronha canta Saudade das saudades, letra de António de Bragança,
com música de José António Sabrosa.
Acompanha o conjunto de guitarras de Raul Nery.
A vida é isso para quem, como aquela mulher do Porto, ousou viver. Para quem ousou amar e matar de tanto amar. E todas estas histórias, antes de praticadas, estão já narradas nos fados, como se eles fossem cartas em que viessem inscritos os destinos. Por isso são fados de vidas fadadas.
Há sete meses que este artigo está publicado e até agora não houve nenhum comentário. Neste caso, recusar que o amor sirva de desculpa para o crime não seria pôr em causa uma relação lésbica? Mas defender a relação lésbica não seria desculpar o crime? Perante as contradições, é mais prudente o silêncio. Mas imaginem que, sob o mesmo título, eu falava de um homem que matara a mulher por quem estava apaixonado, será que não choveriam comentários? Os lugares-comuns são mais fáceis do que as contradições.
isso aí dá um tratado psicanalítico, amigo.
Descontada a lacanagem, remanesce o fado tropical…