Por Kaya Lazarini
Atendendo ao convite da arquiteta e amiga Isadora Guerreiro, e a partir de uma sugestão sua contida no artigo Terra trabalho e política, este texto procurará olhar para os conflitos no campo, debatendo sobre a permanência da tomada de terras como base para relações de produção e exploração predatórias. Seguindo a sua sugestão, analisaremos uma série de normativas, incluindo a Lei de REURB 13.465/2017, e suas consequências sobre as terras rurais, com especial atenção no que diz respeito à regularização de tomadas de terras da União por grileiros, principalmente na Amazônia. Por fim, corroborando com a ideia de que gestão e domínio (propriedade) são centrais para o contexto político dos territórios, abordaremos algumas experiências dos Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil, e suas formas de produção e gestão do território, na qual a preservação é elemento central para garantir a existência daquela comunidade, que tem seu modo de vida intrinsecamente vinculado à terra que habitam.
A proposta do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, de criar um Ministério dos Povos Originários, pode cumprir um importante papel ao reparar violações históricas contra estas populações, ao mesmo tempo que, ao propor políticas fundiárias – que são a base das reivindicações dos povos originários e tradicionais – tensiona questões estruturais no contexto da sociedade brasileira. A perspectiva de parte dessas comunidades é que seus territórios sejam titulados e/ou demarcados de maneira coletiva e não parcelados e individualizados em nome de cada família, o que possibilitaria a gestão territorial também coletiva. Em função desse modelo de manejo, que alia propriedade coletiva e gestão dos territórios a cargo de seus moradores, a criação deste Ministério e a consequente demarcação e destinação das terras aos povos que ali habitam atuaria não apenas no sentido da reparação de direitos fundamentais, mas também no sentido da preservação ambiental, agenda urgente frente à situação de colapso ambiental mundial.
Essa medida se torna ainda mais urgente se avaliarmos os resultados dos últimos quatro anos de gestão federal em relação à demarcação e titulação de terras e preservação do meio ambiente. O atual presidente da República, em abril de 2017, disse que “não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola”, enquanto em outra ocasião classificou o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) como “grupo terrorista”. Efetivamente, desde que assumiu o poder, Jair Bolsonaro realizou sucessivos boicotes à questão dos povos da floresta, e o resultado é que, nos últimos três anos (2019-2021), foram expedidos títulos para apenas 12 territórios, considerando titulações decretadas pelos Estados e pela União. A razão dessa política foi declarada na mesma situação em 2017, quando Bolsonaro afirmou que as reservas indígenas e quilombolas “atrapalhavam a economia”: “Onde tem uma terra indígena, tem uma riqueza embaixo dela.”
Para além dos últimos 4 anos, é permanente a disputa em relação aos povos tradicionais e está ligada à terra que ocupam, tanto em relação à presença de “recursos” nessas áreas – água, minérios, madeira -, quanto às características e potenciais para agricultura, principalmente a monocultura da soja, sendo alvo frequente de grileiros, garimpeiros, madeireiros, fazendeiros, entre outros. Neste sentido, os conflitos no campo aumentaram e se qualificaram durante o último governo. Milícias rurais formadas por policiais e jagunços atuam com violência, a mando de empresas e latifundiários, contra as comunidades, recriam formas e instrumentos para legitimar sua posse frente ao estado, e movimentam altas quantias de recursos para desmatar e privatizar terras públicas, vendendo-as, em seguida, por valores exorbitantes. O estado do Pará foi o que mais sofreu com as queimadas e, consequentemente, com a grilagem de terras, sendo os Povos e Comunidades Tradicionais os primeiros a serem violentamente atingidos, com suas terras invadidas, desmatadas, loteadas, suas casas incendiadas, roças destruídas e comunidades violadas. São, mais uma vez, expropriados.
A permanente re-edição da Lei de Terras
Não é apenas a lei que produz a ilegalidade e a injustiça, mas também a ilegalidade e a injustiça produzem a lei. James Holston, Cidadania Insurgente (2013).
A Lei de Terras inaugurou a entrada da estrutura fundiária do Brasil na era moderna, já que assegurava a concentração, estruturava o latifúndio e garantia a formação da mão de obra “livre” para o trabalho nas lavouras. A Lei anistiou os posseiros de terras “devolutas”, criando instrumentos para legalizar as invasões e produzindo a figura do grileiro. James Holston (2013, p. 188) afirma que “[…] a Lei de 1850 iniciou uma era de fraudes fundiárias sem precedentes.” O autor narra que técnicas de manipulação foram sendo permanentemente aprimoradas, buscando disfarçar terras invadidas com um véu de legalidade. De fato, desde a artesanal gaveta com grilos que conferiam ao papel o aspecto envelhecido, até a sofisticação das tecnologias de geoprocessamento, a atuação do Estado no sentido de facilitar a apropriação ilícita das terras pela elite agrária nacional é permanente (IANNI, 1979; TORRES, 2012).
Mesmo os governos progressistas foram marcados por instrumentos legais que promoveram sucessivas anistias a ocupantes ilegais de terras da União, favorecendo a grilagem e o aumento dos conflitos no campo, enquanto, em paralelo, os registros, demarcações e titulações de terras indígenas e territórios quilombolas, respectivamente, foram reduzidos constantemente. Em relação aos últimos 4 anos, a Comissão de Meio Ambiente do Senado aprovou um Relatório analisando o impacto da política fundiária da gestão de Jair Bolsonaro sobre os níveis do desmatamento ilegal na Amazônia. De acordo com o documento,
Conforme dados do sistema PRODES/INPE, é possível observar aumento gradual e progressivo nas taxas de desmatamento no bioma a partir deste período, particularmente em terras públicas, onde o desmatamento tem sido resultado direto da grilagem para fins de especulação fundiária. (SENADO FEDERAL, 2022)
A agenda fundiária do governo federal, desde 2005, foi marcada pela destinação de terras públicas à privatização. Em relação aos marcos regulatórios e legais, as Medidas Provisórias 255/2005, MP 422/2008, MP 458/2009, MP 759/2016 e MP 910/2019 foram progressivamente consolidando a lógica de atuação do Estado: primeiro, elas são enquadradas como medidas de “regularização fundiária”, portanto travestem-se de instrumentos normativos que buscam “regularizar” terras que estão “irregulares” (não ilegais); em segundo lugar, todas têm como função a flexibilização das regras de alienação de terras públicas da União em favor de particulares; por fim, também têm em comum como ação prioritária a Amazônia Legal, região que concentra a maior parte das terras públicas não destinadas no país, seguramente, mais do que 80 milhões de hectares (TORRES, 2012). Estas normativas fazem parte, portanto, de uma série de medidas que buscam legitimar a posse de terra e implementar a propriedade privada como suposta forma segura de relação com a terra (TORRES; CUNHA; GUERRERO, 2020).
O poder pessoal e oligárquico e a prática do clientelismo seriam ainda fortes suportes da legitimidade política do Brasil. As oligarquias submetem a seu controle o jogo político do Estado, obrigado a formar alianças políticas tradicionais e a realizar concessões ao clientelismo político para governar. A troca de favores como obrigação moral – sem vínculo contratual, baseada em doações materiais e retribuições políticas – associa patrimônio e poder, fortalece a “cultura de apropriação do público pelo privado” e engendra “tortuosos mecanismos de acumulação da riqueza. (MARTINS, 1994, p. 30; 38).
Na prática, o que as MPs e legislações subsequentes fizeram foi criar condições privilegiadas para que grileiros regularizassem as terras invadidas, por um lado, aumentando progressivamente a área máxima que poderia ser alienada (de 100 hectares em 2005, passando para 1500 em 2008), por outro lado, criando condições para que o ocupante não fosse morador (poderia ser assalariado), como fez em 2009 a MP 458. Esta MP, inclusive, convertida em Lei 11.952/2009, foi o instrumento que criou o Programa Terra Legal, que dispunha de medidas para acelerar os procedimentos para regularização de terras públicas na Amazônia Legal, e reduziu o tempo de proibição da venda da terra de 10 para 3 anos, ficando conhecida como “MP da grilagem”, pois foi interpretada como uma forma de legalizar a apropriação ilegal de terras públicas, situação inédita desde a Lei de Terras.
Por sua vez, a Medida Provisória 759/2016 – amplamente debatida e criticada no campo urbano – realizou uma série de mudanças na Lei 11.952/2009, ou Programa Terra Legal, como a sua abrangência, que passou a ser em todo o território nacional, além da ampliação do limite das áreas ocupadas que poderiam ser regularizadas, de 1500 para 2500 hectares, bem como a ampliação do prazo de ocupação da terra de 2003 para 2008.
No âmbito específico da regularização fundiária rural, a Lei de REURB colaborou com um dos maiores processos de perda de patrimônio público da história do Brasil, já que diminuiu os preços, que já eram baixos, para a alienação dessas terras, além de promover o aumento do quadro de concentração de terras. A Lei ampliou para 2011 o prazo da ocupação da terra, que aumenta progressivamente conforme podemos notar.
Por fim, a MP 910/2019 ampliou consideravelmente o público que poderia regularizar suas terras para ocupantes até 5 de maio de 2014, sendo que o texto anterior referia-se a ocupações até julho de 2008. Ademais, aumentou de quatro para quinze módulos fiscais (unidade de medida territorial rural que varia localmente) o limite de terras que poderiam ser regularizadas, além de flexibilizar a averiguação dos requisitos que passa a ser feita por meio de declaração do ocupante, não exigindo outras documentações para a comprovação da legítima ocupação da terra.
De forma complementar aos marcos normativos, outro instrumento é fundamental na composição da engrenagem da grilagem de terras. O Cadastro Ambiental Rural (CAR), instituído pelo polêmico Novo Código Florestal (2012), registro público eletrônico obrigatório para imóveis rurais que tem como função “integrar as informações ambientais referentes à situação das áreas de preservação permanente (APP), das áreas de reserva legal, das florestas e dos remanescentes de vegetação nativa, das áreas de uso restrito e das áreas consolidadas das propriedades e posses rurais do país”. Com o tempo, no entanto, acabou se transformando numa maneira “oficial” de “registrar” – auto declaradamente – uma terra junto a um órgão Federal, favorecendo e ampliando a grilagem. Moreira (2016) considera o CAR um importante instrumento de grilagem de terra, já que permite ao grileiro revestir-se de posseiro e migrar da ilegalidade à irregularidade.
O mais recente programa para desburocratizar e acelerar os processos de “regularização fundiária” é o “Titula Brasil”. Lançado em 2 de dezembro de 2020, o programa terceiriza aos municípios as atribuições de regularização fundiária de áreas da União. Apelidado como “Invade Brasil”, aprofunda o desmonte do INCRA ao mesmo tempo que relega aos municípios legislar sobre terras da União.
De acordo com pesquisadores da USP, sintetizando e somando a legalização jurídica e nacional da grilagem entre 2009 e 2020 chega-se a 190 milhões de hectares. São 67 milhões do Programa Terra Legal, implementado por Lula em 2009, mais 60 milhões de “regularização fundiária” de Temer em 2017 e mais 65 milhões de hectares do governo Bolsonaro. Combina-se, assim, um movimento onde a lei cria a grilagem, enquanto a grilagem modifica a lei, para que em seguida a lei facilite a grilagem, fazendo com que a grilagem passe a moldar a lei. Legislação e modo de produção (da mercadoria terra que passa a ser vendida) são mobilizados para a formação da propriedade privada individual, que no caso do Brasil agrário domina a estrutura latifundiária. Em relação à sua dimensão, menos de 1% das propriedades rurais no Brasil tem tamanho superior a mil hectares. No entanto, essas propriedades representam 45% da área ocupada por estabelecimentos rurais (OXFAM, 2019). Não obstante, a pesquisa da Oxfam também apontou a desigualdade de gênero na questão fundiária brasileira, onde os homens são proprietários de 87,3% dos estabelecimentos, representando 94,5% das áreas rurais.
Propriedade coletiva, autonomia e autogestão
Em outra ponta, na contramão da mercantilização, as formas coletivas de propriedade representadas pelas comunidades em territórios quilombolas, terras indígenas, e praticantes de formas de uso comum da terra são exemplos contemporâneos de organizações sociais, fundiárias e produtivas que questionam a hegemonia da propriedade privada individual e atuam ativamente na proteção e reprodução das matas, das águas e da vida nos territórios que habitam.
[…] a propriedade coletiva (correspondendo, por exemplo, aos quilombolas), a posse permanente (correspondendo, por exemplo aos indígenas), o uso comum temporário, mas repetido em cada safra (correspondendo, por exemplo às quebradeiras de coco babaçu), o “uso coletivo” (correspondendo, por exemplo aos faxinalenses), o uso comum e aberto dos recursos hídricos e outras concessões de uso, como o comodato (correspondendo, por exemplo às reivindicações ciganas), e as sobreposições de territórios tradicionais com unidades de preservação ambiental (pomeranos, quilombolas, indígenas e outros) (ALMEIDA, 2006, p. 60-61).
É importante destacar que a investigação e análise das formas como as comunidades tradicionais se relacionam com o território não se trata, em nossa perspectiva, de um “retorno à natureza” em sua forma entendida como “primitiva”. Ao contrário, pois por meio do reconhecimento de que existem experiências contemporâneas nas quais a dimensão da importância da terra para seus habitantes é central, pode-se observar outras e novas relações sociais, alternativas ao trabalho precarizado urbano, que é fruto da despossessão generalizada. Assim, não estamos abordando um retorno ao primitivo pois, justamente, o que destacamos é um conjunto de práticas e vivências compreendidas enquanto uma rede múltipla, com muitas variedades, formas, e pluralidades, que atua no sentido de “trabalhar e viver em comum”.
Entre os Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil, encontram-se os quilombos. Estima-se que existam mais de 6 mil comunidades quilombolas, e, ainda que estejam sendo realizadas pela primeira vez perguntas sobre o “ser quilombola” no Censo, a população deve ultrapassar um milhão de habitantes. A SEPPIR (Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial) estima como população quilombola no Brasil cerca de 214.000 famílias. Em relação à questão fundiária, as comunidades quilombolas ocupam cerca de 30 milhões de hectares do território nacional.
De um ponto de vista da regularização desses territórios, segundo dados do INCRA (2022), foram emitidos 179 títulos a 266 comunidades quilombolas entre 1995 e 2022, abarcando 17 mil famílias em pouco mais de 1 milhão de hectares. Significa que menos de 10% das famílias, 5% das comunidades e 3% das terras quilombolas estão efetivamente reconhecidas e tituladas pelo estado brasileiro. Ainda segundo o INCRA, são 1.796 processos de regularização em tramitação. Em resumo, apenas cerca de 5% dos quilombos brasileiros são territórios oficialmente reconhecidos.
Segundo levantamento da Organização Terra de Direitos, com base em informações do Incra, a destinação de recursos públicos para a titulação de territórios quilombolas sofreu uma queda de mais de 97% nos últimos cinco anos. Já em relação à demarcação de terras indígenas, de acordo com o Observatório das Eleições 2022, a média de tempo para a conclusão dos processos, desde sua fase inicial, que consiste no estabelecimento de um grupo de peritos para a identificação do território, até o seu final, quando da inscrição da terra no Serviço de Patrimônio da União, é de 15 anos, em média. Eles indicam que são vários os casos de demarcações que chegam a 20 ou 30 anos para serem concluídas. Neste período, os territórios permanecem vulneráveis a grileiros, que invadem, cercam, georreferenciam, emitem o CAR, desmatam e vendem áreas inteiras. Quais condições engendram os processos de luta por reconhecimento dos espaços comuns por dentro da institucionalidade, inclusive reivindicando a segurança jurídica? Será que esses processos de luta podem abrir espaços de experimentações e potencialidades de insurgências ou contra-hegemônicas ainda hoje?
Em relação à terra, essas formas são diversas, não estão sob um “guarda-chuva” juridicamente aberto o possível para permitir variadas composições em seu interior, como poderíamos pensar sobre a noção de propriedade coletiva. São múltiplas composições normativas, compreensões sobre o território e seus direitos (e deveres), mas em comum essas formas representam possibilidades contemporâneas de perspectiva decolonial, integradas com a natureza e com a sua preservação como elemento central. Representam a possibilidade concreta do exercício da autogestão do território, estabelecendo as próprias regras, criando medidas de resistência e proteção.
Para terminar, vamos lembrar que há pouco tempo os povos tradicionais da Amazônia entraram em conflito com Lula, Dilma e o PT em protesto à construção de Belo Monte, que geraria energia a ser vendida aos Estados Unidos, e causou grandes estragos em comunidades e territórios inteiros. Embora tenhamos perspectivas de construção com a possibilidade de criação do Ministério dos Povos e Comunidades Tradicionais, não esquecemos que os governos de Lula e Dilma demarcaram pouco para os povos originários. Também foi durante estes governos que as Medidas Provisórias citadas foram editadas – embora, como mostramos neste texto, seja uma permanência na estrutura fundiária independente dos governos, e a intensificação das medidas de “regularização fundiária” nos governos Temer-Bolsonaro tenha sido avassaladora.
Maristella Svampa nos dá pistas sobre esta permanência, ao afirmar que, no século XXI, a América Latina migrou do Consenso de Washington, estruturado sobre a valorização financeira e políticas de privatizações, para o Consenso das Commodities, baseado na extração e exportação de bens primários. Reafirmando acriticamente o caráter de “sociedades exportadoras de natureza”, como apontou Fernando Coronil, característico desde a colonização, o que entende-se por desenvolvimento – e que de fato elevou as taxas de crescimento no início desse século – é um modelo extrativista em grande escala, reiterando o padrão colonial, construído enquanto consenso político – diferente do neoliberalismo, governos de esquerda e direita adotaram o novo consenso, cuja consequência é o “impacto socioambiental mayor y explosión generalizada de la conflictividad, [que] aparecen como rasgos inherentes a dicho estilo de desarrollo.”
BIBLIOGRAFIA
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