Por Jan Cenek
Leia aqui a parte 3.
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Pensava na mãe, que cumpria luto numa cidadezinha distante. Nascida para trabalhar, aquela mulher poderia ter sido uma formiga, como as que vivem nas cozinhas. A mãe da arquiteta passou a vida em casa. Consolava-lhe pensar que a mãe não era infeliz, ainda que não fosse feliz, porque não foi educada para nenhuma das duas coisas. Não teve opções, vivia para manter o lar, o que fez por toda a vida, inclusive depois da morte do marido. Se pudesse, a arquiteta abraçaria a mãe, aquela mulher formiga, e a levaria para viajar. Mas tinha uma certeza: jamais seria como a mãe. A arquiteta queria viver o que a mãe não viveu.
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Foi tocado pela brisa da noite. Olhou para o céu, havia nuvens que bailavam sobre a lua, num striptease celeste. Apanhou um cigarro no bolso da camisa, segurou-o entre o indicador e o médio apontados para o alto, apoiou o polegar na bochecha, como fazia sempre, e tragou. Soltou a fumaça na direção das nuvens. “Eu não sou daqui!” – pensou o poeta. Era como se tivesse terra nas mãos, como se fosse de terra. Homerinho teve vontade de desaparecer para se reintegrar, queria apodrecer para se espalhar.
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O menino passava as manhãs na escola e as tardes com a empregada, e gostava mais destas do que daquelas. A empregada passava as manhãs sozinha e as tardes com o menino, e gostava mais destas do que daquelas. Divertiam-se. Ela cantava canções tristes. Contava histórias que ele não ouvia na escola. O menino gostava das histórias, pedia que repetisse, perguntava, gostava de perguntar. E assim as histórias e a vida iam mudando, e as tardes iam passando. Um dia, no meio de uma história, ele perguntou por que ela não tinha filhos. A imagem do filho único linchado numa rua cheia de prédios e sombras ressurgiu para a empregada, que cantou uma canção triste.
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– Meu filho faz natação, luta judô e vai pra escola.
– O meu engraxa sapato, cuida de carro e cheira cola.
(Anotações encontradas na gaveta do poeta Homerinho. Estavam num guardanapo que foi grampeado sobre uma notícia de jornal. A matéria informava sobre o linchamento de um jovem no centro de São Paulo.)
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Era garoto. Acordava no meio da noite. Ouvia sons vindos do quarto dos pais: barulho de corpos, gemidos, palavras doloridas (como se os pais não quisessem acordá-lo). Depois a cama rangia por minutos e o pai, ou a mãe, se levantava e ia ao banheiro (ele não sabia quem dos dois). Achava que o pai fazia mal para a mãe. Queria defender a mãe, mas tinha medo: colocava o travesseiro sobre a cabeça e se escondia até adormecer. Quando acordava a mãe já havia saído, trabalhava como doméstica e entrava no primeiro horário.
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Era adolescente. Às vezes, no meio da noite, acordava com sons que vinham do quarto dos pais. Ficava com medo e excitado. Eram gemidos de dor e gozo misturados ao ranger da cama. Tentava resistir, mas era inútil. Levava a mão ao sexo e se masturbava com força, desesperadamente. Era a única maneira de adormecer e evitar os sons que vinham do quarto dos pais.
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Era empregada doméstica. Chegou aos cinquenta anos e, como um computador, travou. Começou a repetir a mesma pergunta: “pra onde vai a merda que essa gente caga?” Fez o trabalho doméstico normalmente, mas não dizia nada a não ser “pra onde vai a merda que essa gente caga?” Encasquetou. Limpava o apartamento que tinha sala, quartos, closet, banheiros, sala de jantar, lavanderia, cozinha. Às vezes ia até a sacada, olhava para os edifícios vizinhos, segurava o queixo com a mão e perguntava balançando a cabeça: “pra onde vai a merda que essa gente caga?” Durante o almoço da família, o patrão comentou sobre a ignorância e a vadiagem do povo brasileiro que, segundo ele, explicavam o atraso do país. A empregada doméstica largou a vassoura e foi até a sala de jantar, segurou o queixo com a mão, balançou a cabeça e indagou: “pra onde vai a merda que essa gente caga?” O patrão e a patroa ficaram sem entender. O filho do casal – que cresceu junto com a empregada – se afastou e cantou uma canção triste.
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– Papai, você gostava de morar na barriga da vovó?
– Não sei, não lembro como era. E você, filha, gostava de morar na barriga da mamãe?
– Gostava, mas não tinha espaço pra brincar.
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No velório da grávida, as palavras faltaram. No fundo do silêncio havia espanto e condenação. Pular do topo do prédio com um filho na barriga, que atitude covarde – pensavam os presentes, com exceção dos pais dela.
A mãe tomou calmante e dormiu. O pai lembrou de uma conversa que tivera com a filha:
– Papai, você gostava de morar na barriga da vovó?
– Não sei, não lembro como era. E você, filha, gostava de morar na barriga da mamãe?
– Gostava, mas não tinha espaço pra brincar.
O pai imaginava a filha bebê, sorrindo e brincando dentro da barriga da mãe, como se ela não coubesse no mundo, como se ela fosse maior que o mundo, como se o mundo fosse pequeno demais para a filha.
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Homerinho pôs café na xícara. Sentou e pensou. E se não fosse atrapalhado? E se acreditasse nas coisas? E se casasse? E se tivesse filhos? E se mudasse para o campo? Seria torturado pelo barulho dos cascos dos cavalos? Seria o barulho dos cascos dos cavalos tão repugnante quanto o barulho dos carros? Poderia ser outro homem? Não poderia. “Eu não sou daqui!” – pensou. Gostava da frase. “Como cão cagando e cavando calçada de concreto” – disse em voz alta. Gostava da imagem e da aliteração. Sentia-se “como um cão”: um cão cavando por princípio, um cão raspando a pata no concreto, um cão separado da terra. “Eu não sou daqui!” – repetiu para si mesmo e pensou no último poema. Começar a escrever o último poema era começar a deixar a vida. Caminhando, passo por passo, construiu seu caminho. Não tinha como voltar. Tinha que ser como seria.
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Profissionalmente era autônomo, empreendia, ou, em outros termos: fazia bicos. Espiritualmente era eclético. Politicamente era anarquista, dizia que almejava a destruição do Estado. Mas no amor era neoliberal: queria o máximo de prazer para o corpo, a flexibilização das relações, o amor intermitente, o sexo sem carteira assinada. Foi, sobretudo, inconclusão. Enxergava o ato sexual como relação de poder, puxão no cabelo, submissão. Práticas que condenava, mas executava. Achava tênue a linha que separa a relação sexual da relação de poder, não entendia por que o proibido é prazeroso. Considerava-se um irresponsável emocional, alguém que levava o mal ao próximo (foi amante da mulher do melhor amigo). No fim da vida passou a frequentar a Igreja católica (sem deixar de ser amante da mulher do melhor amigo). Olhando sua história de ponta a ponta, pode-se dizer que foi anarcristão.
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Era administradora de empresas e divorciada. Não teve filhos, mas tinha um cão. Passeava com o animal de segunda a segunda, de manhã e à noite. Frequentava petshops, comprava xampus e coletores de fezes para o cão. Recolhia delicadamente as fezes do animal. Gostava de costurar. Passava o tempo livre costurando. Quando não estava trabalhando, estava costurando ou com cão, ou costurando para o cão. Preparava enfeites e roupas para o animal, chegou a costurar uma gravata colorida para o bichinho. Antes dos passeios, vestia o cão carinhosamente. Mas às vezes olhava para bichinho e chorava, acariciava o animal e chorava, chorava copiosamente.
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Evitava aquela rua. Ficou anos sem passar por ali (ia apenas do pequeno quarto em que dormia para o boteco que mantinha e vice-versa). Mais que a rua, o problema dele era a casa 315. Quando chegaram em São Paulo passaram por pensões antes de se estabelecerem naquela casa. As primeiras lembranças dele estavam na casa 315: o cheiro verde dos temperos que a mãe cultivava, os palavrões engraçados que o pai dizia, as irmãs correndo no quintal, os bichos que cresceram com ele naquela casa. Quando viu um terreno vazio onde ficava a casa 315, foi como se tivessem podado as raízes dele.
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Largado pela mulher, largou o emprego (era administrador de empresas). Comprou o bar que frequentava. Envelheceu no balcão do boteco, no centro de São Paulo. Tirava o sustento do pequeno bar. Abria antes do almoço, fechava depois do jantar: de segunda a segunda. Passava os dias atrás do balcão. Vendia cachaça, cerveja, salgados e fichas da máquina de música para homens comuns, como ele próprio. Sentia-se tão igual àqueles homens que às vezes não cobrava. Ia do pequeno quarto em que dormia para o boteco, e deste para aquele, diariamente. A vida fora do trabalho era tão igual à vida no trabalho que pouco diferenciava uma da outra. Quase não falava de si, não tinha muito para dizer. Mas às vezes, sem saber, alguém comprava fichas e colocava uma canção antiga para tocar. Nesses dias – apenas nesses dias – ele tomava um trago. Nunca disse nada a ninguém nem ninguém nunca associou uma coisa com a outra: mas todo amor tem uma canção, uma canção para cada amor.
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O menino perdeu os pais e as pernas num acidente de carro. Por isso foi morar com os avós. Passava a maior parte do tempo sentado na calçada, quase não brincava. Aquele menino encantava a vizinhança. Ouvia muito, falava pouco. Ganhava doces das velhas, escutava as mentiras dos velhos. O menino gostava quando passava o caminhão de lixo, acenava com carinho para os lixeiros que passavam correndo. Ia para a escola. Não reclamava. Mas não fazia as lições e não prestava atenção nas aulas. Aos que perguntavam o que ele queria ser quando crescesse, o menino respondia sem hesitar: lixeiro!
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Homerinho e o menino que não tinha pernas brincavam de cavaleiro e escudeiro. Sentados na calçada, viajavam por prados e penhas, por charcos e chapadas, por grutas e abismos: combatendo gigantes, protegendo donzelas, desfazendo agravos. Ora um era o cavaleiro, ora o outro. Transformavam carros, cães e bêbados em gigantes. Gostavam de transformar homens embrigados em gigantes. O poeta e o menino se divertiam com os bêbados. Mas bom mesmo era transformar o avô do menino em gigante, o velho se irritava e disparava: “vaffanculo”, “ma che cazzo” …
Homerinho contava para o menino as graciosas aventuras de Dom Quixote e Sancho Pança: a paixão do primeiro pela formosa Dulcinéia del Toboso; a busca do segundo por uma ilha; as cutiladas que Quixote dera no tonel de vinho, pensando ser um gigante; as arremetidas contra moinhos de vento; a bacia de barbeiro confundida com o Elmo de Mambrino; as vendas confundidas com castelos; as sovas que um e outro sofriam; os terríveis encantamentos que enfrentavam. O poeta contava, o menino ouvia.
O menino gostava de brincar com o poeta. O poeta queria sair pelo mundo com o menino.
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Ainda menina, ficou órfã e foi mandada para o convento. Aprendeu a ler, a escrever, a costurar e a rezar. Participava do coro e ajudava na cozinha. Assistia missas, cantava e comungava. Diziam que era santa. Quase não saía. Mas, se tinha tempo livre, gostava de espiar o dia passando pela janela. Quando cresceu foi ajudar no asilo.
Foi no tempo em que morreram as velhinhas mais idosas e mais tristes. Virou suspeita de assassinato. No julgamento esclareceu que ajudou as senhoras a realizar o último desejo: morrer.
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Quando a névoa fria vinha da serra. Quando a noite descia e os pássaros se abrigavam na copa das árvores. Depois que a mãe, o pai, as filhas e o filho encerravam o trabalho com o dia ganho, a família se recolhia e se reunia na cozinha para jantar e se aquecer. Pai e mãe se falavam em italiano. Eventualmente ele disparava algum “vaffanculo”, ou “ma che cazzo”. Ela exigia silêncio e ligava o rádio. O pai mal entendia o idioma, mas não se importava. O locutor transmitia mensagens e saudações aos ouvintes. Pai, mãe, filho e filhas eram felizes à noite. Queriam mandar mensagens e saudações, mas não tinham nem parentes nem amigos no novo país.
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Era teimoso e durão, mas bom. Chegou ao Brasil com vinte e poucos anos, estava com setenta e alguns. Ganhou a vida trabalhando duro. Teve filho, filhas, netos e empregos precários. Cinquenta anos depois, reviu o irmão, que veio visitá-lo. Recebeu o irmão gesticulando e gritando: “ma che cazzo fate qui?” – como se cinquenta anos de afastamento não fossem suficientes para justificar uma visita.
Para os brasileiros, em italianês, repetia sempre que só se arrependia de uma coisa: ter vindo para o Brasil, que, segundo ele, era um país de merda, muito diferente da Itália, que era uma grande nação. Cinquenta anos depois, quando reviu o irmão, disse, em brasiliano, que só se arrependia de uma coisa: não ter saído antes da Itália, que, segundo ele, era um país de merda, muito diferente do Brasil, que era uma grande nação.
Gostava de contrariar, mas era bom, contrariava apenas as pessoas que amava.
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o velho na praça
reclama:
o tempo não passa
(Poema de Homerinho provavelmente inspirado e dedicado ao velho italiano que gostava de contrariar as pessoas que amava.)
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A arquiteta era bela, culta e independente. Morava sozinha num apartamento confortável. Falava cinco idiomas. Conhecia cinco continentes. Gostava de cinema, arte, literatura e viagens. Encantava os homens, teve muitos homens: com uns fez amor, com outros fez amor e amizade. Com estes, gostava de ir ao cinema e, principalmente, de viajar. Não casou, não teve filhos e não se arrependeu. Evitava o assunto, mas, quando perguntavam e insistiam, ela explicava que, entre filhos e viagens, preferia estas.
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Tinha quarenta e cinco anos de idade e vinte e dois de banco. Estava gordo, grisalho e cansado. Mas era feliz. Tinha filhas, esposa e sogra. Nas horas vagas, levava a família para jantar no shopping e assistia as apresentações de balé das filhas. Não imaginava que faria o que fez. No trabalho, quando ouvia xingos [insultos], pensava nas filhas e se calava. Queria garantir o estudo delas, para que não precisassem se humilhar como ele. Mas numa manhã ficou sozinho no caixa da agência bancária. Trabalhou duro para vencer a fila, que crescia. Teve que ouvir que era “lerdo”. Respirou fundo, pensou nas filhas e continuou atendendo. Mas quando lhe atiraram um maço de contas e disseram “anda logo, gordinho” – explodiu. Subiu na mesa, chutou as contas, desatou o nó da gravata, tirou o cinto. Abaixou a calça e a cueca. Começou a dançar. Com o braço esquerdo, segurava e comprimia a barriga; com a mão direita, girava o pênis em sentido horário. Queria decolar com o pintocóptero. Parecia um garoto brincando. Foi demitido. Virou caminhoneiro. Conheceu o país.
Leia aqui a parte 5.
As obras que ilustram o texto são da autoria de Edward Hopper (1882-1967).
Quem lê essas histórias não consegue se afastar do sentimento de desolação que as habitam e as ligam umas às outras. Mas, sem ser ou sem querer ser piegas, parece que há uma pulsão vital por trás dessas linhas tortas da vida insinuando que viver é mais que simplesmente existir pelo negativo das vidas que se vão sem ter sido. Insinuações do Homerinho, o fracasso cômico que deveria ficar.