Por Thiago Canettieri
Este texto será publicado em partes nos próximos meses nesta coluna. Leia as partes I, II, IV, V, VI e VII.
CENA 2
Era alta madrugada. Setenta famílias estavam aglomeradas numa chácara alugada pelo movimento de moradia. Junto delas algumas dezenas de militantes e apoiadores. Estavam todos tensos. O cheiro de café forte tomava conta da cozinha onde duas mulheres negras preparavam uma canjica doce. Era julho e estava muito frio, numa noite sem nuvens de lua crescente. Cada família parecia querer se concentrar sozinha, mesmo que o espaço fosse escasso para isso.
O portão abriu e irrompeu um dos militantes: “O ônibus está chegando. Vamos preparar nossas coisas!”. Alguns minutos depois escuta-se o freio de ônibus. As famílias se organizavam numa fila indiana muito precária. Alguns homens ainda carregavam duas caminhonetes com rolos de lona, ferramentas e estacas de maneira. Dois carros saíram antes para ver o entorno do terreno. Demorou até o ônibus ser completamente carregado. Seriam duas viagens para levar todos da chácara até o terreno, numa viagem de cerca de sete minutos. Apesar do ônibus lotado, o silêncio era sepulcral, interrompido por um chiado no radiocomunicador. “Podem vir! Tudo limpo!” Agora escutava-se no ônibus algumas conversas, ou algumas rezas. E o motor do ônibus parecia preencher o silêncio que ainda restava. Para muitos ali parecia que a curta viagem de algumas centenas de metros demorara horas.
O ônibus parou bruscamente e a porta abriu. Um dos militantes do movimento desceu apressadamente e sinalizou para as caminhonetes. Na sequência todo o ônibus estava sendo esvaziado por pessoas que desciam as escadas o mais rápido que podiam. Homens que ainda estavam no ônibus eram destacados por um militante para irem até as caminhonetes ajudar no deslocamento dos materiais. O mato do terreno estava alto e a luz tímida da lua crescente não ajudava. Algumas luzes de lanterna indicavam onde cada grupo, previamente separado devia ir. Neste meio tempo, o ônibus já tinha ido e voltado com o restante das famílias.
Com as ferramentas em mãos, ao menos quatro grupos começaram a trabalhar. Com uma cavadeira boca de lobo cava-se um buraco de cerca de 1 metro de profundidade. Esse buraco é preenchido por uma estaca de cerca de 3 metros, sobrando dois para fora do solo. Quatro furos formam um quadrado que é envolto em lona. Em menos de uma hora já estavam com um fogareiro preparando mais uma rodada de café. Ao lado, construiu-se uma creche para as crianças, também em menos de uma hora. Agora, as equipes dos dois equipamentos coletivos se dispersam para construírem o máximo de barracas possíveis. As barracas para as famílias eram mais simples. Eram formadas por três furos em formato triangular e as estacas unidas pela lona.
Em cerca de duas horas e meia estavam construídas as duas estruturas coletivas, um banheiro improvisado e quase 40 barracas. O sol começava a despontar no horizonte e alguns vizinhos já olhavam das janelas a movimentação no lote que estava vago até o dia anterior. Poucos minutos depois a primeira viatura aportou na entrada do terreno, onde um militante e uma advogada popular já estavam esperando. Conversaram com a dupla de militares até a chegada do proprietário. Depois de mais alguns minutos mais quatro viaturas estavam estacionadas.
Enquanto isso, dentro do terreno o trabalho era incessante. Todos colaboravam na medida do possível. Manusear a cavadeira boca de lobo exigia um enorme preparo para ser eficiente. Quem não detinha a habilidade colaborava com as enxadas, limpando o terreno do mato alto que receberia as estacas para instalação das barracas.
Pouco antes do meio-dia apareceram quatro viaturas do batalhão de operações especiais. Os policiais desceram da viatura e começaram a se equipar com os instrumentos para dispersão de manifestações. Coletes e caneleiras, escudo, e cacetetes de madeira. Se perfilaram ao lado da entrada do terreno. Quase que ao mesmo tempo, um parlamentar de um partido de esquerda chegou para negociar com o coronel.
O almoço saiu. Era uma panela de arroz e outra de galinhada, distribuída em pratos de plástico. O trabalho foi interrompido momentaneamente, mas o terreno já estava suficientemente limpo a essa hora do dia para se perceber que se tratava do nascimento de uma nova ocupação.
A CONJUNTURA DA LUTA POR MORADIA NA RMBH
Em Belo Horizonte, desde os anos 1980 há uma tentativa de avançar na pauta da moradia por meios institucionais. O movimento dos favelados possuía importante protagonismo na capital mineira. Desde os anos 1960, organizados na Federação dos Trabalhadores Favelados, esse grupo luta por melhores condições de vida nas áreas periféricas da cidade. Se organizavam em núcleos territoriais chamados União de Defesa Coletiva, que foram fortemente reprimidos durante a ditadura militar. Outras grupos e agremiações surgiam do associativismo popular: Sociedade Pró-Melhoramentos, Comitês de Defesa Coletiva, Associações de Moradores. A progressiva abertura política do país levou a uma aproximação do PMDB com o associativismo civil e fortaleceu a luta pela volta à democracia. Na cena eleitoral de 1980, o PMDB já contava com o apoio desses movimentos[1]. Na campanha de 1982, o PMDB “formulou uma plataforma de governo com base na participação da população, organizada em Conselhos (conselhos municipais e setoriais)”[2]. Em algumas situações, houve um incentivo à formação de organizações com o propósito de promover a participação eleitoral, enquanto em outros casos, houve um reforço das conexões com aquelas já estabelecidas. Os líderes do PMDB que foram eleitos em 1982, Hélio Garcia para a prefeitura de Belo Horizonte e Tancredo Neves para o Estado de Minas Gerais, concentravam seus esforços em construir laços com as comunidades populares. (OLIVEIRA, 2009). Dessa maneira, algumas conquistas institucionais foram alcançadas. Os movimentos dos favelados influenciaram diretamente a criação de uma política municipal pioneira para a urbanização e regularização de favelas, o Profavela – Programa Municipal de Regularização de Favelas. No final dos anos 1980, surgiram diversos movimentos de ocupação e de loteamentos associativos sob a liderança do Padre Piggi. Diversos loteamentos públicos foram entregues nesses anos a partir das reivindicações desta população[3].
O acúmulo das lutas foi direcionado para a construção da candidatura de Patrus Ananias à prefeitura de Belo Horizonte. Entre 1993 e 1996, Patrus governou Belo Horizonte com especial atenção para a estruturação de políticas urbanas e habitacionais. Como esclarece Bedê[4] (2005), foi, nessa gestão, que se estruturaram princípios, prioridades, critérios, linhas de atuação e instrumentos a serem adotados, deixando para trás o caráter residual – e, muitas vezes, clientelista – da política urbana do passado. Criou-se a Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte (Urbel), órgão do governo responsável por executar a política habitacional – equivalente a uma secretária de habitação. Uma das primeiras presidentas do órgão foi uma liderança da Federação dos Favelados de Belo Horizonte, exemplificando a íntima relação que se estabelecia entre política institucional e a luta dos bairros. Com isso, o governo pretendia “desestimular as ocupações”[5] a partir da ampliação da produção habitacional, adotando novos critérios e procedimentos para atender as famílias beneficiárias.
Contudo, o final do mandato de Patrus significou um giro na gestão municipal. Seus sucessores, o primeiro também do Partido dos Trabalhadores e o segundo eleito com seu apoio, acabou jogando o compromisso com os setores populares periféricos para escanteio. A gestão urbana seguiria a partir daí o receituário neoliberal. Ocorreu, desta maneira, uma mudança das políticas participativas em direção a concepções market friendly[6]. Dessa forma, fermentou-se enorme insatisfação com os horizontes da política institucional voltada para as camadas populares em Belo Horizonte. Começaram a se fortalecer assim novos coletivos militantes e novos movimentos sociais que retomaram a estratégia das ocupações. Dessa maneira, os “novos movimentos sociais”, em especial das ocupações urbanas em Belo Horizonte, começaram a constituir uma nova “base social”. A pressão por moradia continua muito grande e a política habitacional aquém da capacidade de garantir casa para todos que necessitavam.
NOTAS
[1] OLIVEIRA, Samuel. 2009. O movimento de favelas de Belo Horizonte e as representações do passado (1960-1980). Revista Temporalidades, v.1, n.1.
[2] SOMARRIBA, Maria das Mercês; VALADARES, Maria Gezica; AFONSO, Mariza. 1984. Lutas urbanas em Belo Horizonte. Petrópolis: Vozes, p.10-11.
[3] FREITAS, Luiz Fernando. 2015. Do Profavela à Izidora: a luta pelo direito à cidade em Belo Horizonte. Dissertação. Mestrado em Direito. Belo Horizonte: UFMG.
[4] BEDE, Monica. Trajetória da formulação e implementação da política habitacional de Belo Horizonte na gestão da Frente BH Popular (1993-1996). Dissertação. Mestrado em Geografia. Belo Horizonte: UFMG.
[5] Ibidem, p.222.
[6] PAOLINELLI, Marina; CANETTIERI, Thiago. 2019. Dez anos de ocupações organizadas em Belo Horizonte: radicalizando a luta pela moradia e articulando ativismos contra o urbanismo neoliberal. Cadernos Metrópole, v.21, n.46.