Por Isadora de Andrade Guerreiro

 

A elucidação recente do assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes no Rio de Janeiro expôs uma trama de interesses que se articula diretamente com a produção do espaço urbano periférico e popular. Não é uma trama exatamente nova, mas sua emergência no debate público traz à tona elementos que vale a pena comentar brevemente, pois indicam continuidades entre antigos esquemas e novos personagens e contexto – cuja articulação com outras situações urbanas brasileiras são centrais para a compreensão não apenas da produção do espaço, mas da conjuntura política atual.

No caso, Marielle – cuja participação na CPI das milícias de 2008 já indica seu contato com o tema e com tais personagens há muito tempo – teria sido assassinada por estar interferindo no esquema de loteamentos realizados por milícias na Zona Oeste carioca. Tal esquema se daria através da ação clandestina de operadores de mercado que articulavam grilagem, loteamento e comercialização de terras não passíveis de urbanização, com o poder público, responsável por se omitir da fiscalização da invasão de terra e, depois, dar legalidade ao empreendimento através do instrumento de regularização fundiária – que, particularmente no RJ, passava pela Câmara de Vereadores caso a caso, numa clara dinâmica clientelista, pois tais decisões deveriam ser colocadas em andamento pelo poder executivo dentro de planos unificados de gestão urbana. Os negócios não terminam com a venda dos lotes, pois todos os novos bairros assim produzidos são controlados pelo grupo e, portanto, desde a infraestrutura – que também se articula com o poder público e companhias de água e energia – até os serviços urbanos prestados depois são privados e monopolizados por eles. No RJ, tal esquema foi denominado de “miliciano”, pela relação orgânica entre grupos armados clandestinos e o poder público, incluindo aí a ação policial, que privatiza o uso da força.

Certamente não se pode dizer que tal esquema aparece da mesma maneira em outros lugares do país, por isso a precisão dos termos importa. No entanto, vários elementos aparecem fragmentados e recontextualizados para as relações de poder e de produção urbana periférica de cada cidade. O clientelismo é endógeno no país, sendo a prática que conforma a maior parte dos legislativos municipais – e que caracteriza a forma política do chamado “centrão”, que domina a política brasileira independente da coloração do partido do poder. É o fiador geral de todos os partidos. E o clientelismo tem largas raízes na produção do espaço urbano, atravessando a formalidade e a informalidade – o que muda, talvez, seja a forma e o grau de violência mobilizada na gestão de territórios e populações.

Lúcio Kowarick, quando cunhou o termo “espoliação urbana”, na década de 1970, articulou a falta de acesso aos equipamentos e serviços urbanos da população trabalhadora – uma camada a mais na dimensão da exploração presente nas relações de trabalho que, portanto, dilapidava ainda mais seu salário e tempo de reprodução social – à dinâmica política autoritária do país. Ou seja, manter a população sem organização política autônoma produzia uma forma de poder que não era autoritária apenas na discricionariedade da violência, mas também na formação de cidadãos dependentes da relação privada de troca – acesso à cidade por votos. Manter a precariedade do espaço urbano da classe trabalhadora faz parte da sua formação periférica – caracterizada por baixos salários – mas também de um esquema político que se reproduz de maneira autoritária e violenta.

O que é novo nesse esquema tão estrutural de articulação da política eleitoral e da produção de espaço urbano no Brasil? Há dois elementos que me parecem novos, trazidos por um período democrático que construiu a cidadania, perversamente, como acesso aos direitos pelo mercado. Primeiramente, o aparecimento de um extrativismo rentista em territórios que não são mais de pobreza, embora permaneçam precários; e, em segundo lugar, a mobilização política da organização comunitária autônoma, do discurso político da esquerda e efetivamente dos instrumentos de democratização do espaço urbano – como a regularização fundiária, no caso, mas não só ela. Tais elementos novos rearticulam velhos e novos agentes (como os operadores de mercados ilegais e as igrejas evangélicas e sua teoria da prosperidade); e também hierarquias espaciais, que também embaralham sentidos políticos: o centro, como local de produção da riqueza e das relações de poder associadas a ela, passam a ser territórios periféricos e precários. Eles também passam a expulsar população, alterando padrões históricos de segregação.

Em relação ao extrativismo, já alertei sobre o fenômeno de densificação e verticalização das favelas, promovido por um mercado imobiliário popular pujante no qual circula muito dinheiro – seja aquele vinculado ao aumento generalizado da renda entre os mais pobres, mas também a proliferação de recursos públicos na forma de auxílios e investimentos diretos, o maior acesso ao crédito, além do empreendedorismo popular e crescimento de mercados legais e ilegais. Não estamos mais falando de uma periferia das “faltas” – narrativa instrumental do mercado filantrópico empresarial. O mercado imobiliário acaba recebendo os recursos acumulados nesses anos de crescimento, e temos assistido ao fenômeno da incorporação imobiliária para renda dentro de territórios antes autoconstruídos. E, para que sua existência seja possível, é necessária muita articulação entre forças locais (muitas vezes com ameaça de e/ou uso da violência armada) e agentes públicos (principalmente por omissão, mas também por direcionamento discricionário de recursos para a valorização de determinadas áreas). São relações parecidas com aquelas milicianas cariocas, mas que se conformam de maneira diferente em cada cidade, de acordo com a forma precedente de produção dos espaços e das relações de poder locais.

Essa relação extrativista com o território periférico é nova não na sua existência pontual (aluguel de cômodos, por exemplo), mas na disputa por hegemonia das formas de produção e apropriação do espaço periférico que têm ocorrido atualmente. Ela tem disputado a construção física de espaços pouco densos (e, portanto, de famílias que não prosperaram), espaços comuns e espaços verdes, mas também disputado a maioria de representantes em espaços comunitários deliberativos, com a presença de seus interesses econômicos em detrimento daqueles comunitários ou relacionados à direitos. Se tais territórios antes participavam da reprodução do capital apenas como reserva de força de trabalho e rebaixamento salarial, hoje alteraram tal lugar. Na era do empreendedorismo, fazem parte da formação de propriedades para a extração de rendas (seja de parte do salário, seja dos auxílios e investimentos públicos, do sistema de crédito ou da circulação de dinheiro em mercados legais e ilegais).

Segundo Verónica Gago e Sandro Mezzadra:

 

“Essa cidade, que aparece formatada pelo dinamismo urbano das periferias, também é diferente da cidade gentrificada que, em outros momentos, é vinculada à renda extrativa quando se fala em ‘extrativismo urbano’ (Massuh 2014, 55-60). Nesse sentido, as lógicas extrativistas se cruzam com o governo dos pobres, produzindo violência e criando formas híbridas com as mesmas lógicas e retóricas de inclusão propostas pelo discurso da cidadania. Essa perspectiva leva a uma leitura dos novos conflitos sociais que permite mapear o entrelaçamento do agronegócio, das finanças, das economias ilegais (das drogas ao contrabando) e dos subsídios estatais, de acordo com lógicas que são complementares e concorrentes. Essas lógicas também nos permitem escapar da imagem de vítima que tende a ser enfatizada pela narrativa da despossessão” (Gago, V.; Mezzadra, S. A Critique of the Extractive Operations of Capital: Toward an Expanded Concept of Extractivism. Rethinking Marxism, 29:4, p.580. Tradução livre. Disponível em: https://doi.org/10.1080/08935696.2017.1417087).

 

Esta nova visão de extrativismo urbano se articula, portanto, com a gestão da precariedade como foco das relações de poder – uma tecnologia clientelista renovada, portanto. Não se trata mais de não circular dinheiro (e a ação pública ser entendida como dádiva), mas dele não permanecer no território, sendo constantemente sugado para atores externos a ele. É uma terceira camada depois da exploração, espoliação e agora (neo)extrativismo urbano.

Tais novas lógicas extrativas rearticulam as relações de poder de maneira transescalar: o território periférico e popular não está mais desconectado da circulação de riqueza e da falta de direitos. E daí o segundo elemento de novidade: a violência política não vem de um governo autoritário ditatorial de direita, mas da mobilização dos direitos de cidadania e de seus instrumentos de democratização da cidade. Não se trata, portanto, de proibir associações de moradores, mas de instrumentaliza-las; não de remoção de população sem atendimento, mas de mobilização de recursos públicos para atendimento discricionário; não de falta de acesso a equipamentos e serviços, mas de disputas sobre seu monopólio; não da falta de participação, mas da gestão e controle da participação, e por aí vai.

Essa dinâmica corrói profundamente o sentido do sujeito de direitos cunhado na redemocratização, e toda a estrutura institucional e de poder local associada a ele. Há 20 anos atrás Evelina Dagnino escreveu um texto [1],

 

“cuja premissa [era] o reconhecimento da disputa simbólica como constitutiva de toda disputa política, explora[ndo] os contornos de uma crise discursiva, que parece atravessar as experiências contemporâneas de construção democrática no Brasil e na América Latina. Essa crise discursiva resulta de uma confluência perversa entre, de um lado, o projeto neoliberal que se instala em nossos países ao longo das últimas décadas e, de outro, um projeto democratizante, participativo, que emerge a partir das crises dos regimes autoritários e dos diferentes esforços nacionais de aprofundamento democrático”.

 

Segunda ela, tal “confluência perversa” alteraria os significados de três noções fundantes na  redemocratização: a “Sociedade civil” estaria passando por um processo de “onguização” empresarial, inclusive dos movimentos sociais; a noção de “Participação” passaria a se dar com perspectiva privatista e individualista, apoiando-se no terreno da moral e se despolitizando, tornando-se gestão; e a “Cidadania” como “invenção de novos formatos para a política e para a sociedade, afirmando a capacidade propositiva desses novos sujeitos” se transformaria numa “sedutora conexão entre cidadania e mercado”, onde “tornar-se cidadão passa a significar a integração individual ao mercado, como consumidor e como produtor”.

Se há 20 anos esse diagnóstico era preciso e o que ocorreu depois foi consequência do aprofundamento desse cenário, seria importante entender em que momento estamos. Porque não basta mais falar da crise dos movimentos sociais, da gestão da participação e do avanço do mercado como lógica de sociabilidade e de organização política. Precisamos entender o significado atual de certa subsunção real das formas organizativas populares e autônomas à forma mercadoria – não em qualquer lugar, mas na nossa formação social. Pois pior do que a onguização dos movimentos sociais é a perda do sentido da luta por algo coletivo e universal e normalização do acesso à cidade pela mercadoria; pior do que a gestão de população pelo alto, é o acordo entre os de baixo em torno da gestão da precariedade; e pior do que a integração pelo consumo, é a integração pela violência – nossa etapa atual. A que ponto chegamos? E qual é o significado real da generalização do mercado para as classes populares? Parece que a resposta é um individualismo desesperado, a precariedade permanente e a violência como mediação das relações sociais e políticas.

 

Notas:

[1] Dagnino, Evelina. Construção democrática, neoliberalismo e participação: os dilemas da confluência perversa. Política e Sociedade, n.5, 2004.

 

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