Por Esra’a Al Shafei e Falastine Saleh

Hoje, excepcionalmente, por motivo de força maior, não publicaremos a coluna de Cuidados Digitais. Por essa razão, traduzimos o texto abaixo, que discute a ligação entre as tecnologias de vigilância utilizadas por Israel contra os palestinos com o mercado global de tecnologias de vigilância. O texto discute ainda o papel da inteligência artificial na expansão desse mercado. Por tais razões, acreditamos que será de grande interesse para nossos leitores. Passa Palavra.

Divulgar, denunciar e trabalhar ativamente contra a proliferação e normalização das tecnologias de vigilância é crucial para proteger os direitos humanos em todo o mundo. No Projeto Tor, sabemos que é através da conscientização e da ação coletiva que poderemos criar e apoiar tecnologias que preservem a privacidade e protejam as pessoas da opressão e da supremacia da vigilância. É igualmente importante responsabilizar empresas e identificar as fontes e os facilitadores das tecnologias de vigilância, especialmente agora que vemos estas tecnologias serem utilizadas no genocídio em curso em Gaza.

Este texto analisa o impacto das tecnologias de vigilância israelenses na Palestina, ilustrando como seu uso localizado pode ter amplas repercussões, que abrem caminho à adoção e à aceitação generalizada dessas práticas opressivas.

Precisamos cada vez mais de uma oposição global ao uso da tecnologia para a opressão. Os trabalhadores do setor de tecnologia e a comunidade internacional em geral priorizar a integridade em detrimento do lucro, para proteger a privacidade e evitar os efeitos negativos da vigilância generalizada em nossas vidas. E é ainda mais urgente abordar tais questões à luz da crescente procura de soluções de vigilância aperfeiçoadas e exacerbadas pela IA.

Vigilância e opressão globais

Os exemplos abaixo demonstram a alarmante sofisticação do capitalismo da vigilância e sua presença cada vez mais global. Também mostram como as empresas israelenses de spyware e vigilância escapam ao escrutínio público mudando de nome e abrindo novas sedes em outros países, ao passo que uma rede de empresas de capital de risco facilita suas operações e as ajuda a evitar a tão necessária responsabilização.

  • A Elbit Systems é uma das principais exportadoras de tecnologia militar de Israel, especializada em várias tecnologias avançadas de vigilância, utilizadas de maneira assustadora em operações espaciais, aéreas, marítimas e terrestres. Seus sistemas de vigilância, drones e outras ferramentas de alta tecnologia, que são utilizados para assegurar a ocupação violenta da Palestina e o apartheid, são muito procurados em todo o mundo.
  • Estas tecnologias de vigilância generalizada não se restringem à Palestina, embora comecem por lá.
  • Desde pelo menos 2014, a Elbit Systems tem utilizado estas ferramentas na fronteira sul dos EUA, bem como nos Emirados Árabes Unidos e no Reino Unido. Alguns destes contratos foram firmados através de uma subsidiária da Elbit Systems of America chamada Kollsman Inc., que está envolvida na controversa morte de um funcionário durante uma viagem de trabalho à Arábia Saudita.
  • Estas redes de relações são fortalecidas através de empresas de capital de risco. Os Emirados Árabes Unidos investiram pelo menos 100 milhões de dólares em empresas de capital de risco israelenses, o que não surpreende, já que são um cliente de longa data de suas ferramentas de espionagem. Uma empresa israelense, por exemplo, está por trás do sistema de vigilância em massa de Abu Dhabi, por meio de contrato de 600 milhões de dólares. Dubai também canaliza tecnologias de vigilância israelenses para países árabes através de uma empresa local chamada Black Wall Global, que é dirigida por veteranos do serviço secreto israelense.
  • Em negócios estruturados de maneira semelhante, empresas israelenses como a IntuView firmaram contratos com a Arábia Saudita para a prestação de serviços que incluem a análise de dados de cidadãos sauditas. Seu conselho consultivo é composto por um antigo chefe da Mossad e um antigo diretor da CIA.
  • A tecnologia está ficando cada vez mais avançada e atrativa para governos autoritários. Israel, com a ajuda de empresas americanas, está empregando robôs equipados com inúmeros sensores e câmeras para vigiar edifícios e espaços abertos.
  • Sistemas baseados em IA, como “O Evangelho”, consistem, em grande medida, em imagens de drones, dados de vigilância, comunicações interceptadas e informações extraídas do monitoramento de movimentos e padrões de comportamento de indivíduos e grandes grupos para fornecer alvos para bombardeios.
  • De forma similar, Israel vem usando a inteligência artificial, através do software “Lavender”, para detectar alvos para assassinato com pouca supervisão humana, através de informações recolhidas através do monitoramento em massa dos residentes de Gaza. O relatório destaca o fato de muitos destes ataques resultarem na morte em massa de civis e famílias inteiras, muitas vezes em suas próprias casas.
  • Os spywares sempre foram um negócio altamente lucrativo e são cada vez mais relevantes em Israel. O Citizen Lab passou anos revelando softwares de espionagem sofisticados, de empresas israelenses como a NSO, que possui contratos com governos com um longo histórico de repressão a dissidentes, prisões, assassinatos e monitoramento de organizações da sociedade civil, incluindo a Arábia Saudita, o Bahrein e os Emirados Árabes Unidos. Estes governos normalizam as relações com Israel, em grande medida, para terem acesso a essas tecnologias, que depois utilizam para oprimir seus próprios cidadãos.
  • A Voyager Labs, sediada em Israel, comercializou e vendeu ferramentas de vigilância que foram utilizadas para traçar perfis e intimidar jornalistas e ativistas, inclusive pela inteligência do Exército colombiano. Recentemente, mudaram sua sede para os EUA para continuar a desenvolver essas ferramentas com uma equipe de “investigadores de IA de primeiro nível”.
  • A empresa israelense-americana Verint, cujos produtos incluem câmeras de vigilância e softwares de análise para monitorar e analisar grandes conjuntos de dados de voz e vídeo, vendeu sua tecnologia a regimes repressivos no Azerbaijão, Indonésia, Sudão do Sul, Uzbequistão e Cazaquistão. Entre os usos dessas ferramentas estão a repressão violenta à comunidade LGBTQ+ e a ativistas de direitos humanos.
  • Estas empresas não operam sozinhas. Quando estão sob escrutínio público, criam novas empresas, muitas vezes com a ajuda de empresas de capital de risco que são suas cúmplices. A Verint, por exemplo, criou uma empresa chamada Cognyte para dar continuidade a seus empreendimentos, o que, segundo um advogado israelense especializado em direitos humanos, constitui “cumplicidade com crimes contra a humanidade”. Um fundo de cobertura sediado em Nova York, Edenbrook Capital, está entre seus maiores acionistas.
  • Outro exemplo, mais recente, é a Dream Security, do antigo diretor executivo da Pegasus Software. Seu último empreendimento se deu através de um contrato firmado junto com a empresa de capital de risco Group 11, sediada em Los Angeles. Isto demonstra um preocupante ciclo de evasão.
  • A Corsight, uma empresa israelense, tem utilizado o reconhecimento facial e o Google Photos para a vigilância em massa da população palestina, sem seu conhecimento ou consentimento. Até o presente momento, a Google recusou-se a se manifestar, apesar de proibir que sua tecnologia seja utilizada para causar “danos imediatos”. Para além da flagrante violação de privacidade, a tecnologia comete erros na identificação das pessoas, pondo em risco suas vidas. A empresa canadense-israelense de capital de risco, AWZ ventures, é um dos seus principais investidores. Suas ferramentas também são utilizadas pelo Departamento de Segurança Interna dos EUA para reconhecimento facial.
  • A AnyVision, uma empresa israelense com presença internacional, está por trás do software de “vigilância tática avançada” utilizado para controlar os movimentos dos palestinos. Seu diretor executivo é um antigo parceiro operacional do departamento de investimentos da SoftBank, que ajudou a angariar fundos para a empresa, juntamente com a Eldridge, uma holding americana com sede no Connecticut. Poucos meses depois de ser revelado que seus sistemas de vigilância estavam sendo usados em escolas nos EUA, a empresa mudou seu nome para Oosto e retomou as atividades.
  • Um dos exemplos mais significativos destas colaborações continua a ser a Palantir, que continua firmando grandes contratos com o governo do Reino Unido e várias agências dos EUA, mais recentemente com o exército dos EUA num sistema de mira guiado por IA, e que irá, uma vez mais, fornecer seus produtos de vigilância a Israel numa nova “parceria estratégica”.
  • Há previsões de que o mercado global de “Tecnologias de Segurança de Fronteira” ultrapasse os 70 bilhões de dólares em 2027, contra 48 bilhões de dólares em 2022. O crescimento significativo deste mercado é atribuído, em parte, à crescente adoção de torres de vigilância integradas por IA, possibilitada por empresas israelenses que testam tecnologias repressivas contra os palestinos. Isso permite que Israel aperfeiçoe e demonstre a eficácia de seus produtos em cenários reais, tornando-os mais apelativos para compradores internacionais, que, novamente, são frequentemente regimes igualmente opressivos com um terrível histórico em matéria de direitos humanos.

Como demonstrado acima, estas tecnologias, inicialmente usadas para impor a ocupação violenta, o apartheid e o genocídio, encontraram um mercado global lucrativo, que se estende para muito além dos limites da Palestina. Antony Loewenstein, autor de The Palestine Laboratory (O Laboratório da Palestina), relata ao Tor: “Desde 7 de outubro de 2023, Israel vem testando novas armas em Gaza, incluindo drones, quadricópteros, ferramentas de reconhecimento facial e tecnologia de vigilância. O objetivo não é apenas matar palestinos indiscriminadamente em Gaza, mas vender estas armas de guerra a um mercado global. A guerra com recurso à IA é um atrativo fundamental para o Estado israelense e seus parceiros do setor privado. O que começa na Palestina nunca fica lá”.

Criar uma cultura de responsabilização

A exportação de sistemas militares por Israel põe em evidência o trajeto perturbador das tecnologias de vigilância, de sua utilização na Palestina ao mercado mundial, com uma tendência alarmante de normalização de graves violações de direitos humanos cometidas no processo de criação e teste dessas tecnologias. A cumplicidade de empresas de capital de risco na proliferação destas tecnologias põe em evidência a intrincada teia de interesses que dá prioridade ao poder e ao lucro em detrimento dos direitos humanos mais básicos.

Este é um lembrete do fato de que lutar contra a vigilância que nos cerca a todos é uma responsabilidade global. É necessário que haja um apelo imediato à ação, para que os trabalhadores do setor de tecnologia, empresas, organizações da sociedade civil e a comunidade global mantenham seu compromisso com os direitos humanos e a privacidade. Temos de responsabilizar as empresas, dissecar e expor as origens das tecnologias de vigilância e resistir à sua normalização.

Aplaudimos as empresas e organizações da sociedade civil que aderiram à campanha No Tech For Apartheid, incluindo os muitos que arriscaram seus empregos, e exortamos outras a juntarem-se a este esforço crucial. Na medida em que muitos trabalhadores do setor de tecnologia possuem carteiras de investimento, recomendamos que alinhem seus investimentos com seus valores. Esta é uma ferramenta gratuita que pode ser utilizada para garantir que você não esteja investindo em empresas fabricantes de armas, ocupações ilegais, apartheid, genocídio e militarização de fronteiras, que utilizam da vigilância para cometer crimes de guerra.

Traduzido pelo Passa Palavra. Publicado originalmente aqui. As obras que ilustram o artigo são da autoria de Otto Dix (1891-1969).

1 COMENTÁRIO

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here