Por Thiago Canettieri

Este texto será publicado em partes nos próximos meses nesta coluna. Leia as partes I, II, III, IV, V e VII.

 

CENA 5

Numa das principais avenidas da cidade, o dia amanheceu com uma enorme bandeira estendida na fachada de um prédio. Sob o fundo vermelho, era possível ler as palavras: “OCUPA TUDO!”, escrita em estilo pixação. O movimento havia tomado um prédio.

Foi uma tremenda novidade para as lutas sociais urbanas um movimento social de moradia ocupar um prédio, em especial, naquele lugar, naquela dimensão. Em menos de 24 horas um oficial de justiça apareceu com uma ordem de despejo, entretanto, ela não foi executada. Se a polícia parecia dominar o know-how dos despejos em terrenos periféricos, onde o aparato policial era mobilizado massivamente para retirar as famílias, um despejo num prédio teria que ser muito diferente. A entrada, controlada pelos ocupantes, limitava o acesso da Polícia Militar ao prédio. A porta estava barricada. Uma ação, como a que ocorreu no Hotel Cambridge, em São Paulo, certamente seria uma catástrofe que recairia sob os ombros do  governador petista.

Na estrutura vertical, o movimento tentou reproduzir as ações que, num terreno, pareciam funcionar: uma horta comunitária foi estruturada num vão do prédio. Uma cozinha coletiva foi colocada para funcionar na área de uma antiga copa no edifício. Em uma das salas do térreo, uma creche.

De um lado, a estrutura do prédio permitiu aos ocupantes queimarem uma das etapas mais precárias de uma ocupação: a lona e a autoconstrução. De outro, o prédio de caráter comercial, não estava preparado para receber as 200 famílias que ocupavam. Andares que antes eram ocupados por baias de escritórios foram transformados em dormitórios improvisados, separados por lençóis. Os banheiros eram insuficientes. Por conta do abandono anterior, o elevador não funcionava, o que limitava em muito o acesso. O prédio tinha 20 andares, mas apenas os 8 primeiros eram ocupados. O mutirão de autoconstrução não ocorreu, mas foi necessário muito trabalho coletivo para acomodar todas as famílias e seus pertences, ainda que escassos, pelos andares.

O discurso do movimento, que ganhava espaço no debate público a cada dia que a ocupação resistia, ressaltava o “direito ao centro”. Famílias que historicamente viveram nas periferias metropolitanas, em condições de precariedade e com acesso diminuto aos bens e serviços da cidade, podiam agora usufruir da infraestrutura instalada do centro. Maior oferta de ônibus, serviços de saúde, comércio. Uma das moradoras, uma senhora negra com mais de 70 anos, dizia com frequência: “Antes eu tomava dois ônibus para fazer minha hemodiálise aqui no centro. Agora eu consigo ir a pé, em 15 minutinhos”.

Ainda que a ocupação do centro seja um ato político importante, alguns relatos indicavam outras razões combinadas. Uma das lideranças desta ocupação afirmou que estava difícil conseguir mobilizar para ocupar os terrenos vagos nas periferias: “de um lado, a violência policial; de outro, a crise econômica” – afinal, autoconstruir em alvenaria, para ficar na ocupação era muito caro. As famílias periféricas não contavam com recursos disponíveis para esse empreendimento. Desta maneira, ocupar um prédio abandonado no centro serviria como uma possibilidade de apropriarem da estrutura construída do prédio.

 

OCUPAR O CENTRO

Ocupar o centro da cidade é uma demanda antiga dos movimentos. Afinal, as periferias são territórios com baixa densidade de infraestrutura e de serviços que reproduzem as várias espoliações que os pobres urbanos convivem rotineiramente. No centro, o tempo que é despendido no transporte é consideravelmente reduzido – o tempo médio das viagens intermunicipais na Região Metropolitana de Belo Horizonte chega a quase 2 horas.

A periferização é entendido, já há algum tempo, como a expressão espacial da segregação social. O alto custo da terra urbana dotada de infraestrutura, pois é limitada, empurra as classes populares para as periferias: os terrenos “que sobram”[1].

Em adição, nos centros urbanos a vacância imobiliária, isto é, os prédios vazios, são recorrentes. A indústria da construção civil teve, ao longo da primeira década do século XXI, um amplo crescimento, que produziu vários imóveis. Mas esses imóveis não eram voltados para atender as necessidades de moradia ou de reprodução das famílias – foram tratados como ativos financeiros. Desta maneira, a manutenção da propriedade, esperando por uma valorização futura, pode muito bem ocorrer com as construções vazias (pois especular é o valor de uso da propriedade de imóvel na era da financeirização[2]). A discrepância entre moradias desocupadas e a carência habitacional crônica é uma realidade que clama por uma análise crítica e profunda. As raízes desse problema residem, em grande parte, na própria natureza capitalista da produção de moradias[3].

As necessidades habitacionais das populações de baixa renda, muitas vezes, sequer se configuram como “demandas” no contexto do mercado imobiliário capitalista. Sua condição socioeconômica as torna invisíveis.

Com dados preliminares do Censo Demográfico de 2022, ficou perceptível o problema em Belo Horizonte. Atualmente, a capital mineira tem mais de 108 mil domicílios permanentemente não ocupados. Se considerar os cálculos da agência metropolitana, em toda a RMBH (Belo Horizonte mais 33 outros municípios) o déficit habitacional está em cerca de 180 mil unidades. Ou seja, os imóveis vagos apenas em Belo Horizonte correspondem a cerca de 60% de todo o déficit habitacional na periferia metropolitana.

Ao ocuparem edifícios ociosos em áreas centrais, os movimentos de moradia amplificam a visibilidade do problema da moradia inadequada. Trazem à tona a realidade de milhares de famílias que vivem em condições precárias, muitas vezes em áreas periféricas ou em moradias insalubres. Embora provisórias, as ocupações garantem abrigo para famílias que, de outra forma, estariam em situação de rua ou em moradias extremamente precárias. Essa medida paliativa, ainda que limitada, oferece um mínimo de dignidade e segurança para os moradores.

Embora tenha sido uma “novidade” no contexto de Belo Horizonte, os movimentos sociais de São Paulo e Rio de Janeiro já adotam essa estratégia  há tempos. Barbosa[4] estima que, entre 1994 e 2014, cerca de 200 ocupações de edifícios ociosos foram organizadas por movimentos de moradia na região central de São Paulo. O último levantamento das ocupações para fins de moradia na área central do Rio de Janeiro realizado em 2023 identificou 69 ocupações abrigando cerca de 2.500 famílias[5].

A dimensão do movimento de ocupações em Belo Horizonte foi bem menor. Neste momento, entre 2017 e 2019, foram apenas 3 ocupações maiores: Zezéu Ribeiro e Norma Lúcia, Carolina Maria de Jesus e Vicentão[6].

Entretanto, apesar da diferença de escala, as dificuldades encontradas são semelhantes. A ocupação vertical de um prédio numa área central é muito mais sujeita ao controle do Estado. A ligação de água e luz não é passível de fazer gato. Em uma das ocupações, puxaram a viação de um letreiro luminoso de ponto de ônibus que garantia um conjunto de funções mínimas no saguão do prédio, como carregar celular e lanternas para a noite. A água era escassa e, mesmo para funções básicas, como descargas, era levada escada a cima por baldes. Os prédios, com estrutura comercial, não estavam adaptados para a moradia. 200 famílias ocupavam os 4 primeiros andares, onde, em cada andar, estavam disponíveis apenas dois banheiros. Muitos moradores tomavam banho e lavavam roupas na casa de parentes e amigos. Durante os primeiros meses, o movimento chegou a pagar a ida de caminhão-tanque, que enchiam caixas d’água improvisadas no saguão, viabilizando atividades cotidianas, como preparo de comida, lavagem de louça, ou higiene pessoal entre outras coisas.

Vários conflitos emergem dessa condição. A vida no centro – apesar de facilitar um tanto de coisas – implicava numa forma de organização do cotidiano comunitário bastante conflituosa. Gerenciar a portaria, os espaços de convívios, a divisão dos “apartamentos” feita com lençóis, a gestão dos poucos banheiros disponíveis, tudo isso reduzia a construção do movimento a uma atividade de síndicos de um prédio. O processo de organização e pactuação para a convivência no espaço era sempre cheio de rusgas que escalaram rapidamente.

Notas

[1] Ermínia Maricato. 1996. Metrópole na periferia do capitalismo: ilegalidade, desigualdade e violência. São Paulo: Hucitec.

[2] Raquel Rolnik. 2015. Guerra de lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo.

[3] Ana Paula Maciel & Ana Paula Baltazar. 2011. Família sem casa e casas sem família: o caso da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Cadernos Metrópole, v.13, n.26.

[4] Benedito Roberto Barbosa. Protagonismo dos movimentos de moradia no centro de São Paulo: trajetória, lutas e influências nas políticas habitacionais. Dissertação de Mestrado em Planejamento e Gestão do Território: Universidade Federal do ABC, 2014.

[5] Bruna Ribeiro; Bruno Frazão; Orlando Santos Júnior &  Tarcyla Fidalgo. Panorama das Ocupações na Área Central do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Observatório das Metrópoles, 2024.

[6] A Kasa Invisível é uma ocupação na região central que possui uma natureza organizativa bem diferente dos movimentos que tratamos aqui. No contexto da pandemia de Covid-19, várias ocupações de pessoas que viviam em situação de rua ocorreram, no entanto, de modo mais disperso e silencioso. Boa parte desses materiais (que iremos retomar mais à frente) estão presentes no livro de Renato Baruq. 2024. Casa encantada: um retrato da luta por moradia em Belo Horizonte. São Paulo: Glac Edições.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here