Por João Bernardo

O eixo deste breve ensaio é simples — a existência económica da classe trabalhadora não nos permite deduzir antecipadamente as modalidades da sua existência social. A posição da classe trabalhadora define-se no plano económico, mas a realidade social — ou a irrealidade — da classe trabalhadora define-se a partir dos materiais empíricos acumulados, dos germes e das ruínas. Não há nenhuma regra que nos permita passar a priori do económico para o sociológico. A passagem é sempre a posteriori e resulta de observações atentas.

Funcionando apenas em última instância, a determinação económica traça os limites em que pode realizar-se concretamente, mas no interior desses limites são inúmeras as formas de realização específicas. O estruturalismo desenvolveu uma metodologia adequada a esta perspectiva teórica, mas as suas raízes encontram-se mais longe, por exemplo quando Leibniz considerou que toda a possibilidade, enquanto possibilidade, tem já um grau de realidade, porque constitui uma «pretensão à existência». Desde que se inclua nos limites traçados por uma determinação em última instância, qualquer possibilidade goza de uma «pretensão à existência», e neste sentido ela é real.

Assim, a análise da classe trabalhadora no capitalismo deve ser dupla. É necessário, por um lado, definir o quadro geral determinado em última instância pelo sistema económico e, por outro lado, detectar as modalidades em que, de uma maneira ou outra, tanto num ápice como em longa duração, os trabalhadores se realizaram socialmente. Movida pelos ciclos da mais-valia relativa, a dinâmica do capitalismo determina alguns dos limites a que as suas formas sociais e culturais têm de obedecer; mas, dentro desses limites, a variedade é infindável. Não é uma tarefa simples. Por um lado, a economia capitalista deve ser apresentada com uma estrutura tal que, embora adequando-se a todas as modalidades de realização empírica conhecidas, estabeleça as fronteiras fora das quais seja impensável qualquer existência social de uma classe trabalhadora. Por outro lado, o estudo empírico, além de descrever a variedade de condições sociais dos trabalhadores, sucessivas ou simultâneas, deve explicar por que motivo algumas delas se afirmaram como dominantes e todas as outras foram abolidas. É imprescindível também uma imaginação capaz de conceber formas desconhecidas ou inexistentes, mas que possam gerar-se dentro daqueles limites, possam ter «pretensão à existência». Como Angela Carter escreveu num contexto muitíssimo diferente, «construindo constantemente hipóteses sobre um futuro que é irreversível». Uma historiografia do Sim fundamenta-se necessariamente numa historiografia do Não (aqui e aqui).

Nada disto é novo, embora pudesse ser esquecido, e convém recordar o teatro grego, Sófocles sobretudo, em que o coro anuncia o inelutável destino dos personagens, ditado pelos deuses, que são a determinação em última instância, enquanto os personagens actuam naquela ignorância a que chamamos liberdade. Mas Sófocles, tal como nós, só a posteriori podia conhecer a decisão dos deuses. Ora a História, para quem a vive, é feita por pessoas, ou grupos sociais, que agem na ignorância e, mesmo quando têm os olhos abertos, quem lhes garante que a paisagem que vêem é essa onde vivem?

Poderia ser aqui esclarecedora a comparação com o sistema económico que precedeu imediatamente o capitalismo na área geográfica onde este surgiu. Desde os começos do século V até ao final do século XVIII, o continente a que hoje se chama Europa obedeceu a um sistema económico que classifico como regime senhorial. Isto não impediu, porém, que ao longo do tempo a organização social assumisse aspectos muito variados, desenvolvendo não só culturas em franco contraste, mas gerando modos de pensamento e de comportamento que se sobrepunham aos anteriores ou mesmo os eliminavam. Era inevitável, então, que as lutas sociais e os grandes temas ideológicos que as moviam fossem também diferindo.

Desde os Bacaudae na primeira metade do século V e, alguns séculos mais tarde, a oscilação social em torno dos bosques e outras áreas incultas, consideradas como refúgio do paganismo ou abrigo de eremitas ou aproveitadas como oportunidade de desbravamento, até às grandes movimentações sociais heréticas, sobretudo entre o final do século XIII e os meados do século XVI, e finalmente os Diggers na Inglaterra de Cromwell; desde o extremo ascetismo e a apologia da pobreza mais rigorosa até ao sonho de melhorar a vida; desde as fugas e as migrações e as longas peregrinações em massa até à ambição de fundar num local fixo a Nova Jerusalém — quantas formas diferentes, que poucos contemporâneos, se é que algum, reconheceriam como decorrentes de um mesmo sistema económico! Apesar disso, uma única coisa estas modalidades sociais e culturais tinham em comum — todos elas cabiam no regime senhorial. Se não coubessem, ou nunca teriam chegado a existir ou teriam liquidado o regime senhorial e inaugurado um sistema económico novo.

No entanto, com certa frequência ideólogos revolucionários e teóricos das revoluções, nos séculos XIX e XX, tanto no Oriente como no mundo islâmico e no Ocidente, pretenderam encontrar em movimentos de contestação social ocorridos nos sistemas pré-capitalistas antecessores directos do socialismo ou, pelo menos, os seus anunciadores. Mas os regimes económicos eram muito diferentes e as sociedades também. E como qualquer movimento contra a ordem estabelecida depende, ainda que em negativo, dessa ordem, quando ela se altera a subversão passa a ser outra. Tudo o que pode haver em comum são palavras, que entretanto haviam modificado o sentido e as acepções. As confusões de linguagem eram — continuam a ser — a única base que torna possíveis aqueles ensaios trans-históricos. Quando um novo quadro económico se substitui ao anterior tudo se modifica, e o que de um resta para o outro — técnicas, ideias, termos — é inserido na nova estrutura e por ela assimilado e transformado. Ora, a partir do final do século XVIII, quando o capitalismo se gerou e se desenvolveu, surgiu também uma classe trabalhadora que nem económica nem socialmente correspondia aos explorados nos sistemas pré-capitalistas.

No começo do segundo terço do século XVI, para atemorizar a plebe e convencê-la da inutilidade das revoltas, as ossadas dos cabecilhas da insurreição de Münster, torturados e mortos, ficaram expostas e penduradas em três gaiolas, ou jaulas, e só foram removidas meio século depois. As gaiolas vazias ainda lá estão, inúteis agora, porque novas contestações substituíram as anteriores e as antigas técnicas de terror perderam a eficácia e foram remodeladas. É outro o sistema económico, e com ele mudaram os limites e as configurações do desenvolvimento social e das formas de luta.

Ao longo do século XVIII os intelectuais do Iluminismo não apresentavam a plebe como geradora das grandes utopias de remodelação social. Viam nela uma vítima, mas não um motor de transformações. Quando Simon-Nicolas-Henri Linguet — um exemplo entre tantos outros — escrevendo no último terço daquele século, considerou que os jornaleiros padeciam de uma situação mais miserável do que a dos escravos da Antiguidade ou dos servos medievais, porque não dispunham de senhores interessados em protegê-los e estavam divididos no mercado de trabalho perante patrões unidos, ele limitou-se a assinalar a dissolução do regime senhorial sem que lhe fosse possível antever a classe trabalhadora, tal como ela veio a constituir-se no capitalismo. Nenhum autor daquela época conseguiu pensar além do isolamento recíproco dos jornaleiros, opostos a uma elite coesa. Entretanto, ideólogos e políticos reformadores, movidos por um misto de filantropia e repressão, preocupavam-se com a vadiagem e a mendicidade resultantes da dissolução do antigo campesinato servil, e assim contribuíam para a formação de uma nova classe trabalhadora.

Com o aparecimento da nova classe trabalhadora, definida como uma formação específica do capitalismo, os arautos da remodelação social passaram a apresentar os trabalhadores não só como explorados, mas como portadores de um futuro — não tanto vítimas, mas motores da história. A existência real dos trabalhadores enquanto classe foi demonstrada pelos próprios trabalhadores à medida que progrediu o século XIX, e a Comuna de Paris constituiu o primeiro dos auges das novas formas de luta que haviam deixado de caber no regime senhorial.

No capitalismo, em todos os conflitos sociais que assumiram relevância histórica o fracasso dos trabalhadores resultou de uma degenerescência interna, que a derrota exterior só veio confirmar. Ora, esta degradação assume sempre a forma de uma fragmentação dos trabalhadores, de uma classe que deixa de funcionar como tal, e neste processo é essencial o papel dos gestores, não só porque se imiscuem entre os burgueses e os trabalhadores, diluindo aparentemente as fronteiras entre classes, mas também porque são gerados no interior da classe trabalhadora, contribuindo assim para a sua desagregação. A Comuna de Paris, todavia, foi liquidada demasiado cedo para que as suas contradições tivessem surtido um efeito terminal, e dela restam hoje sobretudo as ambiguidades e o mito.

A mitificação começou por se dever àqueles mesmos que antes se haviam distanciado da Comuna — Bakunin e Marx. Numa carta de 18 de Julho de 1870, Marx considerou que se ocorresse uma insurreição do operariado francês, isso seria uma «desgraça». E uma proclamação do conselho geral da Associação Internacional dos Trabalhadores, redigida por Marx e datada de 9 de Setembro de 1870, aconselhou o proletariado francês a acomodar-se às instituições burguesas e a procurar, através de meios legais, reforçar as suas organizações de classe: «Que calma e resolutamente aproveitem as liberdades republicanas para proceder metodicamente à sua própria organização de classe». Só numa carta endereçada a 17 de Abril de 1871, exactamente um mês após a efectivação da Comuna, Marx admitiu pela primeira vez claramente a oportunidade da revolução, embora já cinco dias antes, noutra carta, tivesse expressado simpatia pela iniciativa. A miopia de Bakunin foi igualmente deplorável, escrevendo numa carta de 2 de Setembro de 1870 que «já não podemos ter ilusões acerca de Paris». E justificou: «A França só poderá ser salva por uma sublevação imediata, generalizada, anárquica, de toda a população das cidades e dos campos […] Apelo a todos os municípios: que se organizem e se armem […] Que enviem delegados para um lugar qualquer, fora de Paris, para formar o Governo Provisório […] É necessário que uma grande cidade de província, Lyon ou Marselha, tome esta iniciativa». Um desistira da revolução, o outro desistira de Paris. Depois de, no final de Setembro de 1870, ter participado em Lyon numa ridícula e frustrada tentativa de insurreição, Bakunin confidenciou a um correligionário espanhol, numa carta datada de 23 de Outubro de 1870: «Tenho de me ir embora, porque não encontro aqui absolutamente nada para fazer […] Querido amigo, já não tenho nenhuma fé na revolução em França. Este povo não é, de modo nenhum, revolucionário». E, numa manifestação de poupança inesperada num anarquista boémio, Bakunin recomendou: «O melhor conselho que posso dar-te é que escrevas antes de mais para todos os nossos amigos de Madrid para que não venham a França, porque seria um gasto de dinheiro completamente inútil». (Os leitores encontram aqui as referências destas citações.) A Comuna deveu-se à iniciativa dos trabalhadores parisienses, sem qualquer inspiração ou incentivo dos célebres ideólogos, que depois se dedicaram a mitificar o que não tinham sabido prever.

A mitificação não cessou e degenerou em mistificação. A Comuna teve o mesmo destino dos santos no catolicismo, sempre invocados e raramente imitados. Com efeito, a rotatividade nos cargos directivos e a igualdade de remunerações entre os dirigentes e o resto da população consubstanciam precisamente aquilo que não fazem nem defendem os partidos de extrema-esquerda que hoje celebram a Comuna.

Entretanto, o crescimento industrial no último quarto do século XIX, necessitando de uma rápida ampliação da mão-de-obra nas fábricas, exigiu migrações massivas da agricultura para a indústria, tanto no interior de cada país como através dos mares. É frequentemente esquecido que, no capitalismo, foi o enorme aumento da produtividade na agricultura que permitiu a expansão da indústria e a aceleração da produtividade fabril. Com esse afluxo de população oriunda dos campos, o número de operários multiplicou-se, mas a sua diversidade interna ampliou-se na mesma proporção. E como a nova mão-de-obra não estava preparada para fazer funcionar as máquinas, os chefes de empresa depararam com um problema demasiado agudo e urgente para que a sua resolução pudesse ser deixada aos processos sociais comuns, por isso foi necessário alterar completamente o sistema de organização do pessoal. Os operários disciplinados nos Estados Unidos pelos métodos de Taylor, imigrantes provenientes da Sicília e do sul da península itálica e negros dos antigos estados escravistas americanos, ex-camponeses desenraizados e sem experiência da sociedade industrial, precisavam de um enquadramento exterior para se adequarem ao ritmo das máquinas, e foi o taylorismo quem o impôs.

Os partidos da Segunda Internacional foram a réplica política do taylorismo, fornecendo ao operariado um enquadramento disciplinar e proporcionando-lhe uma acção pedagógica, e o mesmo sucedeu com os sindicatos dessa época, que tentaram incutir uma coesão social a trabalhadores fragmentados e culturalmente divididos.

E de súbito ocorreu um hiato inesperado — a primeira guerra mundial.

Foi então que pela primeira vez no conjunto de países economicamente desenvolvidos os trabalhadores surgiram organizados como classe. Se a guerra procurava dividi-los, eles souberam mostrar a sua união. No Natal de 1914, ainda não haviam decorrido cinco meses desde o início do conflito, os soldados britânicos e alemães estabeleceram por iniciativa própria uma trégua para celebrarem o dia e, embora em menores proporções, o movimento propagou-se às trincheiras francesas. De então em diante, o impulso à fraternização nunca cessou, e de novo assumiu proporções significativas durante o Inverno de 1915-1916. Enquanto isto sucedia na frente ocidental, a leste, em Abril de 1916, os soldados de quatro regimentos russos estabeleceram uma trégua com tropas do Império Austro-Húngaro para festejarem em conjunto a Páscoa ortodoxa.

Entretanto, crescia em França o movimento de deserções e em Julho de 1917 um relatório do serviço de informações do exército referia a presença de dez mil desertores só na região parisiense. E no Canadá, em Outubro de 1917 e Janeiro de 1918, pediram dispensa mais de 90% dos mobilizados que deviam combater na frente francesa. Em 1918 calcula-se que o número de desertores atingisse na Alemanha mais de setecentos e cinquenta mil e em Setembro avaliava-se em quatrocentos mil o total de desertores do exército austro-húngaro. Mas foi no exército italiano que as deserções assumiram valores impressionantes, pois até ao final da guerra a quinta parte dos soldados havia abandonado as fileiras.

Até que em França o movimento atingiu dimensões revolucionárias entre Abril e Setembro de 1917, quando se propagou nas trincheiras uma onda de revolta que atingiu o auge em Maio e na primeira metade de Junho. Durante estas seis semanas amotinou-se a maior parte do exército francês, contando-se cinquenta e quatro divisões sublevadas, que elegeram representantes, hastearam bandeiras vermelhas e ameaçaram marchar sobre Paris para derrubar o governo. E em Julho de 1917 amotinaram-se as tropas francesas na frente de Salónica. Mesmo no âmbito do comando britânico, onde os soldados se mostravam geralmente mais respeitadores da hierarquia, ocorreu durante vários dias, em Setembro de 1917, um motim de australianos e neozelandeses. Também no Corpo Expedicionário Português, que dependia igualmente do comando britânico, a indisciplina, as fugas e as sublevações eram incessantes, a ponto de uma vez ter sido corrido a tiro o general comandante de divisão. E no outro extremo da Europa amotinaram-se em Fevereiro de 1918 algumas tropas gregas.

Talvez mais significativos ainda fossem os numerosos apelos dos amotinados à solidariedade dos milhares de operários em greve. Em França, o número de greves aumentou 220% de 1915 a 1916, aumentando mais de 340% a quantidade de participantes, e entre 1916 e 1917 as cifras correspondentes foram de cerca de 120% e 610%. Na Grã-Bretanha as greves de 1916 e 1917 tiveram profundas consequências, porque suscitaram a expansão e a generalização dos shop stewards, membros dos sindicatos eleitos no âmbito das unidades de produção e ligados mais à base operária do que à burocracia sindical.

Mas a sublevação que entre Abril e Setembro de 1917 agitara as tropas francesas tornou-se verdadeiramente revolucionária nos Impérios Centrais. De 1915 a 1916 o número de dias de trabalho perdidos por greve na Alemanha aumentou 500%, e aumentou 700% de 1916 a 1917, quando chegou a dois milhões. Em Berlim, as greves de Abril de 1917 mobilizaram entre duzentos mil e trezentos mil trabalhadores. Em Janeiro de 1918, poucos dias depois de ter terminado uma vaga de greves que, reivindicando a paz imediata, paralisara as duas capitais do Império Austro-Húngaro, começou em Berlim e estendeu-se a meia centena de outras cidades alemãs uma série de greves que mobilizou várias centenas de milhares de operários e foi acompanhada por manifestações contra a guerra. E tanto nas cidades alemãs como em Budapeste e Viena a agitação nas fábricas deu lugar à criação de conselhos operários. Pouco depois, em Maio de 1918, insurreccionaram-se na Hungria dois mil soldados, e greves violentas e manifestações contra a fome ocorreram em Viena e Budapeste em Junho de 1918. Entretanto, a marinha alemã revoltara-se no Verão de 1917 e em Fevereiro de 1918 ocorreu um motim em navios austro-húngaros, tendo um dos couraçados chegado a hastear a bandeira vermelha. E em Outubro de 1918, na frente do Piave, partes de duas divisões austro-húngaras amotinaram-se e negaram-se a contra-atacar. Noutra das Potências Centrais, a Bulgária, a linha de frente desintegrou-se completamente em Setembro de 1918. Finalmente, a revolta dos marinheiros da armada alemã do Báltico, no final de Outubro de 1918, estendeu-se rapidamente em Novembro por todo o país e sublevou os restantes soldados e os trabalhadores da indústria, dando início à Revolução dos Conselhos. Também a revolução iniciada em Março de 1919 na Hungria esteve na directa continuidade das manifestações contra a guerra, do mesmo modo que as esperanças que animaram o proletariado agrícola e industrial da Itália em 1919 e 1920, com a difusão das comissões de fábrica e os movimentos de ocupação de terras e empresas, constituíram o prolongamento imediato desta agitação social. Num posfácio, a insatisfação e as revoltas que tornaram inoperantes as tropas e os navios da Entente enviados para a Rússia durante a guerra civil, incluindo os soldados dos Estados Unidos que se recusaram a combater, só podem compreender-se como um prolongamento da agitação e das sublevações ocorridas durante a guerra mundial.

O que sucedeu de 1916 até 1921, ou até 1923 se fundarmos a cronologia nos acontecimentos na Alemanha, foi um processo revolucionário único, à escala europeia e com repercussões do outro lado do Atlântico e nos confins do Pacífico, animado por trabalhadores verdadeiramente unidos numa classe. Devia ser esta data, e não a da Comuna de 1871, a ser celebrada pelos anticapitalistas.

«Proletários de todo o mundo, uni-vos!» — mas o apelo só foi escutado uma vez. Depois, e até agora, nunca mais.

O Outubro de 1917 em Petrogrado foi um mero episódio desta revolução internacional. Na Rússia o movimento de hostilidade à guerra, que assumia dimensões crescentes desde Setembro de 1915, atingiu o auge no colapso da frente de combate após a revolução de Fevereiro de 1917. Celebrar a insurreição bolchevista, como se faz habitualmente, é esquecer, ou mesmo repudiar, um processo longo e muitíssimo mais vasto, que lhe conferiu fôlego e inspiração, e que consistiu numa revolução internacional da classe trabalhadora contra a guerra. Porém, com a assinatura do tratado de Brest-Litovsk entre o governo soviético e as autoridades políticas e militares das Potências Centrais, a revolução russa separou-se em Março de 1918 do movimento antibelicista internacional. O leninismo prosperou na contradição entre o internacionalismo e o nacionalismo e nunca os seus herdeiros conseguiram, ou sequer pretenderam, superar esta ambiguidade.

O bolchevismo atingiu o auge na grande experiência social de Stalin, que num triplo processo criou, em primeiro lugar, um novo proletariado agrícola. A colectivização da agricultura substituiu a produção familiar pela agro-indústria, convertendo os camponeses em assalariados do Estado e, graças às economias de escala e ao aumento da produtividade, libertou mão-de-obra para trabalhar na indústria. Deste modo, em segundo lugar, o stalinismo criou um novo proletariado fabril. Com efeito, a desorganização económica que se seguiu à tomada do poder pelos bolchevistas e se agravou durante a guerra civil desarticulou a indústria e levou a um declínio drástico o número de habitantes das cidades. Que paradoxo! Naquela revolução que fora feita em nome do proletariado, o proletariado desintegrara-se. Ora, com os planos quinquenais, ao mesmo tempo que proletarizava a população rural o stalinismo reconstituía e aumentava a mão-de-obra industrial. Esta reorganização social massiva, enchendo as novas fábricas com uma força-de-trabalho que até então só conhecera os campos e nunca tinha lidado com máquinas, tornou urgente a aplicação generalizada dos métodos tayloristas, impondo aos novos operários ritmos e sistemas que eles ignoravam. Além disso, no mesmo processo em que criara um novo campesinato e um novo operariado, o stalinismo, em terceiro lugar, criou também uma nova classe de gestores. A vaga repressiva que culminou nos Processos de Moscovo serviu para liquidar a tecnocracia menchevista e trotskista, substituindo-a graças à formação acelerada de engenheiros e técnicos a partir de operários promovidos. E assim um movimento da classe trabalhadora que se iniciara nas trincheiras, se estendera às fábricas e ultrapassara as fronteiras acabou convertido no seu oposto, uma sociedade pluriclassista que dentro dos limites de uma nação, a nova pátria soviética, juntou trabalhadores e gestores. Foi esta a base sólida que permitiu ao regime stalinista ser imune à crise económica mundial da década de 1930 e lhe conferiu durabilidade.

Ao mesmo tempo, mas por outra via, a revolta nas trincheiras convertia-se igualmente no seu oposto, plasmando-se em regimes fascistas que juntavam trabalhadores, gestores e burgueses e instauravam o pluriclassismo no quadro de uma nação ou de uma pretensa raça. Eu tenho definido o fascismo como o resultado de um cruzamento da extrema-direita com alguma extrema-esquerda, ou melhor, como o processo contínuo desse cruzamento, formando uma câmara de eco onde temas sociais da esquerda ressoam no nacionalismo ou racismo da direita. Estou precisamente a dizer isto quando afirmo, numa frase bastante citada, que o fascismo é uma revolta na ordem — a revolta da esquerda e a ordem da direita. Mas, então, ao mesmo tempo que foi um pluriclassismo, o fascismo implicou uma profunda divisão dos trabalhadores entre aqueles que serviram de base à formação do fascismo e aqueles que o combateram. É impossível estudar o fascismo sem analisar essa clivagem da classe trabalhadora, dilacerada entre campos sociais e políticos antagónicos.

Assim, o primeiro grande movimento dos trabalhadores enquanto classe social, que durante alguns anos abarcara o capitalismo desenvolvido daquela época, deu lugar ao fraccionamento social dos trabalhadores. Esta fractura no seio da classe culminou na segunda guerra mundial. Nas décadas seguintes alastrou-se a todo o mundo a formação da classe trabalhadora no quadro económico. E a sua existência enquanto classe social?

Numa perspectiva a longo prazo, a principal mudança ocorrida nos países mais desenvolvidos ao longo da década de 1960 foi o esgotamento do modelo taylorista. A percentagem da força de trabalho dedicada à agricultura tornara-se mínima e todo o operariado se modernizara, não necessitando já de ser submetido um ritmo imposto a partir do exterior. Com pleno conhecimento do meio em que laboravam, os trabalhadores estavam aptos a tomar iniciativas e resolver dificuldades, e a nova situação reflectiu-se nas lutas. Os sindicatos — que eram, do lado dos trabalhadores, um espelho do taylorismo — foram postos em causa pelas experiências autogestionárias e perderam relevância enquanto organizadores de lutas reivindicativas, passando a dedicar-se mais ao investimento de capitais. Ora, seria para os patrões um desperdício de mais-valia relativa se não aproveitassem as novas capacidades demonstradas pelo operariado quer nas iniciativas tomadas no processo de trabalho quer na aptidão para auto-organizar as lutas. Foi este o contexto social onde se difundiu o toyotismo, que em boa medida se fortaleceu mediante a recuperação e a assimilação das experiências autogestionárias. Assim, a organização das lutas pôde inspirar a reorganização capitalista dos processos de trabalho, o que contribuiu poderosamente para a fragmentação e a dispersão dos trabalhadores, característica do toyotismo.

Entretanto, na África, em três quartos de século a forma capitalista do colonialismo, implementada a partir do último quarto do século XIX, conseguira transformar em proletários assalariados massas populacionais que haviam sido camponeses mais ou menos independentes ou — o que hoje é comodamente esquecido — escravos dos potentados nativos. A partir do final da segunda guerra mundial a nova classe de trabalhadores africanos, moderna ou modernizada, recorrendo a pressões políticas e à luta armada, acabou confundindo a luta contra o capitalismo com a luta pela independência, o que de início era fácil, porque os capitalistas se identificavam com os colonos e praticamente não havia trabalhadores que não fossem os nativos. E assim, o que podia ter sido o gérmen de uma revolução mundial não foi. Entre os gestores e a burguesia gerados no interior dos movimentos independentistas africanos surgiu uma nova camada de multimilionários, suscitando modalidades de corrupção que, sem agilizarem a economia, pelo contrário lhe criam múltiplos obstáculos. Afinal, o desenvolvimento destes países, em vez de ser travado pelo imperialismo, é agora travado pelos herdeiros da independência.

Mas o que é sobretudo importante, quanto ao tema que aqui me ocupa, é que nos curtos dois séculos da sua existência o capitalismo tem-se plasmado em formas sociais e culturais tão díspares que, se não prosseguíssemos uma análise no plano económico e nos limitássemos à descrição empírica, decerto julgaríamos que essas formas não se incluíam na mesma História. Chegámos a uma curiosa situação em que a generalidade dos marxistas se alheia das diferenciações sociológicas e continua a falar de trabalhadores e de capitalistas como se só em alguns detalhes do vestuário e da linguagem diferissem do que haviam sido no começo do século XIX, enquanto os sociólogos imunes ao marxismo atentam apenas naqueles detalhes e julgam que eles podem variar sem critério, ignorando que obedecem a um sistema económico bem definido. De um lado as classes sociais são figuradas por marionetes, e o outro lado apresenta uma sociedade que age cegamente sem nunca encontrar uma regra de acção.

Este breve ensaio divide-se numa primeira parte, onde situo as raízes do problema, uma segunda parte, onde dou vários exemplos concretos, uma terceira parte, onde tento explicar alguns porquês e uma quarta parte, que deixará o leitor ainda mais furioso.

As ilustrações reproduzem obras de Otto Dix (1891-1969). Esta fotografia deve-se a August Sander (1876-1964), um grande artista deixou-nos o retrato de outro grande artista.

2 COMENTÁRIOS

  1. Interessante a referência a Simon-Nicolas-Henri Linguet. Não sabia dessa menção dele ao fato de que “os jornaleiros padeciam de uma situação mais miserável do que a dos escravos da Antiguidade ou dos servos medievais, porque não dispunham de senhores interessados em protegê-los e estavam divididos no mercado de trabalho perante patrões unidos”. Onde ele diz isso?

  2. Manolo,

    Linguet defendeu essa opinião ou na Théorie des lois civiles… ou nos Annales politiques, civiles et littéraires, mas eu encontrei-a num estudo de Albert Soboul, «Lumières, critique sociale et utopie pendant le XVIIIe siècle français», em Jacques Droz (org.) Histoire générale du socialisme, vol. I: Des origines à 1875, Paris: Presses Universitaires de France, 1972, págs. 168-169. Aliás, por causa de ideias como essa, Linguet foi acusado por alguns dos seus contemporâneos de defender a escravatura.

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