Por João Bernardo
No começo de Paludes, André Gide inventou um personagem que lhe pergunta: «“Ah, estás a trabalhar?” Respondi: “Estou a escrever Paludes”. — “Isso é o quê?” — “É um livro”. — “Para mim?” — “Não”. — “Muito erudito?…” — “Enfadonho”. — “Então, porque é que o escreves?” — “Se não fosse eu, quem o escreveria?”»
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Depois de ter lido num livro que os russos seriam de origem mongol, Karl Marx escreveu em 24 de Junho de 1865 numa carta ao seu amigo Friedrich Engels: «Eles não são eslavos, em suma, não pertencem à raça indo-germânica, são intrusos que é necessário repelir para além do Dniepre!» Não foi um desabafo ocasional, nem os russos seriam mais bem tratados se fossem considerados eslavos.
Desde que começaram a colaborar na época das revoluções de 1848 e 1849 nos Estados alemães e no Império Austro-Húngaro, Engels e Marx nunca deixaram de verberar os eslavos. A revolução europeia, considerada o prelúdio de uma revolução mundial, foi sistematicamente anunciada pelos dois amigos na perspectiva de uma guerra dos radicais da Europa ocidental, sobretudo os alemães, contra a autocracia russa. «Logo que ocorra uma insurreição vitoriosa do proletariado francês», anunciou Engels num artigo de 13 de Janeiro de 1849, «os austro-alemães e os magiares libertar-se-ão e procederão a uma sangrenta vingança contra os bárbaros eslavos. A guerra generalizada que rapidamente se desencadeará há-de reduzir a pó essa liga particularista dos eslavos e há-de apagar até o nome de todas essas pequenas nações obstinadas. A próxima guerra mundial não só fará desaparecer do globo terrestre as classes e as dinastias reaccionárias, mas igualmente povos reaccionários inteiros. E também isto será um progresso». As perspectivas de Marx foram as mesmas, e expostas com igual veemência, a tal ponto que num livro publicado em 1857, História Diplomática Secreta do Século XVIII, ele reduziu as disputas entre as potências europeias à perversa e nociva habilidade da corte russa. E em 1890 Engels adoptou uma concepção idêntica no seu ensaio A Política Externa do Czarismo Russo.
Entre os povos eslavos, apenas os polacos beneficiaram da clemência de Marx e de Engels. «De todas as nações e pequenos grupos étnicos da Áustria», afirmou Engels no já citado artigo de 13 de Janeiro de 1849, «só três foram portadores de progresso e tiveram uma intervenção activa na história, mantendo a sua vitalidade: os alemães, os polacos e os magiares. Por isso são agora revolucionários. Todas as outras tribos e todos os outros povos, grandes e pequenos, têm como principal missão perecer na tempestade revolucionária mundial. Por isso são contra-revolucionários». E no mês seguinte ele insistiu que «polaco e revolucionário se tornaram sinónimos». Noutros trechos Engels foi igualmente explícito, por exemplo quando escreveu: «Os eslavos — voltamos a lembrar que excluímos aqui sistematicamente os polacos — foram sempre obrigatoriamente os principais instrumentos da contra-revolução». Também Marx insistiu no carácter excepcional da Polónia, e tanto para ele como para Engels uma guerra europeia contra o Império Russo dever-se-ia à luta dos polacos pela independência, provocando, com a derrota da Rússia, o colapso do czarismo. Para assinalar esta estratégia basta recordar que a Associação Internacional dos Trabalhadores, apesar do seu nome, foi fundada por ocasião de uma reunião de operários franceses e ingleses em apoio à luta nacional dos polacos, e Engels e Marx persistiram na tentativa de mobilizar o operariado para uma guerra contra a Rússia, que consideravam como uma condição prévia da emancipação social. Especialmente elucidativo é o discurso em que Marx expôs amplamente o seu anti-eslavismo numa sessão organizada em Londres, em Janeiro de 1867, pelo Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores e pela Sociedade dos Operários Polacos. Aliás, foi nesta perspectiva que Marx e Engels analisaram a guerra franco-prussiana de 1870-1871 e a Comuna de Paris. Em suma, o carácter excepcional da Polónia entre os eslavos e a sua luta pela independência nacional eram apresentados por Marx e por Engels como a condição da emancipação do proletariado europeu.
Esta confusão da luta entre classes com o confronto entre nações, assente na hostilidade aos eslavos, suscitou dúvidas e oposições. É significativo que o primeiro partido socialista polaco — o Partido Social-Revolucionário do Proletariado, fundado em 1882, destruído pela polícia quatro anos mais tarde e reconstituído em 1888, embora por pouco tempo — rejeitasse o nacionalismo e a luta pela independência, dando a prioridade à luta de classes interna e ao internacionalismo do proletariado. Apesar disso, numa carta de 7 de Fevereiro de 1882, Engels insistiu em afirmar que os socialistas polacos deviam «colocar a libertação do seu país na primeira linha do seu programa» e que «a independência é a base de qualquer acção internacional comum». Entretanto, os marxistas russos mostravam-se insatisfeitos com uma perspectiva que os obrigaria a esperar pela guerra de independência da Polónia para obterem condições de lutar pelo socialismo no seu país, e em Fevereiro de 1881 Vera Zassulitch escreveu a Marx, inquirindo se as colectividades rurais eslavas poderiam servir de base para o socialismo. Marx hesitou ao longo de três ou quatro rascunhos do que poderia ter sido uma longa carta, e uma indecisão semelhante observara-se já num artigo publicado por Engels em Abril de 1875. Afinal, Marx optou por enviar a Vera Zassulitch uma resposta breve e evasiva. Só em 1882, no prefácio da segunda edição russa do Manifesto Comunista, Marx e Engels alteraram parcialmente a sua posição e admitiram que uma revolução iniciada na Rússia poderia desencadear uma revolução proletária no Ocidente, e neste caso o campesinato russo poderia encontrar no quadro das colectividades rurais eslavas o «ponto de partida de um processo de desenvolvimento comunista».
Mas as tergiversações tardias não resolveram o problema, e a insatisfação com o anti-eslavismo de Marx e de Engels continuou mesmo entre os seus mais próximos seguidores, a tal ponto que uma das filhas de Marx, ao reeditar em 1899 a História Diplomática Secreta do Século XVIII, decidiu suprimir-lhe algumas passagens. Pouco interessado em meias-medidas, Stalin suprimiu o livro completa e definitivamente, assim como proibiu em 1934 a circulação de A Política Externa do Czarismo Russo, apesar de este ensaio de Engels contar já desde 1890 com uma tradução russa. E hoje todos os marxistas, para não se sentirem incomodados, viram os olhos para o outro lado, fingindo que esses textos não existem.
Ora, a questão tem implicações muito graves, porque naquela hostilidade de Marx e de Engels contra os eslavos — exceptuando os polacos — não devemos ver apenas a aversão a um povo e a submissão estratégica da luta da classe trabalhadora a uma guerra de independência nacional. Quaisquer que sejam as nações ou os povos classificados como contra-revolucionários, a passagem da luta de classes para a geopolítica ou, mais exactamente, a concepção da própria luta de classes como um confronto geopolítico, que Marx e Engels nunca abandonaram nas suas análises concretas e na estratégia prática que propunham, tem persistido até aos nossos dias entre os marxistas.
Porém, mais importante ainda, e verdadeiramente decisivo, é a classificação dos povos consoante critérios que deveriam ser exclusivos das classes sociais. A revolução europeia, recordando os termos tantas vezes empregues pelos dois amigos, seria a luta entre «nações revolucionárias» e nações «contra-revolucionárias». Este deslizar do social para o nacional, ou mesmo o étnico, tornou-se explícito na época das revoluções de 1848 e 1849 e depois disso nunca se interrompeu. Não poderia ser maior a confusão entre a dicotomia classe revolucionária / classes contra-revolucionárias e nações revolucionárias / nações contra-revolucionárias.
Poucos anos depois e do outro lado do mundo, o socialista japonês Kita Ikki, contrariando a posição dominante no seu partido, apoiou a guerra de 1904-1905 contra a Rússia. Afinal, não tinham Engels e Marx defendido que a Rússia era o principal obstáculo às revoluções proletárias e que uma derrota militar levaria ao derrube da autocracia? A História foi perversa e conferiu ao Japão o lugar que os dois amigos haviam reservado para a Polónia, mas o resultado foi o mesmo e a derrota do czarismo em 1905 levou a profundas remodelações políticas no império russo. Na sua primeira obra, publicada em 1906, Kita defendeu que aquela guerra «não fora travada para satisfazer as ambições dos militares nem o desejo de lucro dos capitalistas», mas correspondera a um verdadeiro impulso popular. Ao mesmo tempo que, de acordo com os interesses do expansionismo nipónico, Kita defendia uma luta contra a penetração das potências ocidentais na Ásia, ele defendia também uma campanha de esclarecimento da população japonesa que levasse à nacionalização da propriedade fundiária e do capital. De então em diante, estes dois eixos nunca deixaram de orientar Kita nos seus trabalhos teóricos e na sua acção política prática.
Num livro escrito em 1919, embora publicado só quatro anos mais tarde, Kita propôs a confiscação das maiores fortunas e a nacionalização dos maiores bancos e das maiores empresas industriais, bem como a apreensão das maiores propriedades fundiárias, enquanto no âmbito laboral defendeu a distribuição aos assalariados do sector privado de metade dos lucros líquidos das empresas e a concessão de um bónus semestral aos empregados do sector nacionalizado, além de limites à jornada de trabalho e vários outros tipos de protecção dos trabalhadores. E ao mesmo tempo que propôs a participação dos trabalhadores na gestão das empresas, Kita defendeu o aumento da intervenção do Estado na vida económica, quer regulamentando as relações de trabalho e a produção quer planificando o conjunto da actividade produtiva.
Esta espécie de socialismo militar, ou talvez mesmo militarismo socialista, esclarece-se quando conhecemos a argumentação com que Kita o sustentou na sua obra de 1906, estabelecendo uma analogia entre o confronto de classes no interior das fronteiras nacionais e o conflito de Estados no âmbito mundial. Kita recorreu à mesma lógica que Marx e Engels haviam empregue ao transitarem da dicotomia entre a classe revolucionária e as classes contra-revolucionárias para a que oporia as nações revolucionárias às nações contra-revolucionárias. Só que os primeiros foram os fundadores do marxismo, enquanto Kita, nas palavras de Maruyama Masao — um dos mais brilhantes estudiosos do fascismo, que todos deveriam ler como um clássico do assunto — foi «o fundador do fascismo japonês». Afinal, situando-se na ala radical desse fascismo, Kita contou-se entre os dezoito condenados à morte depois da tentativa de insurreição militar de Fevereiro de 1936, cuja derrota assegurou o triunfo à ala conservadora do fascismo nipónico.
Muito antes da sua execução, porém, no livro publicado em 1923, Kita expusera de uma maneira ainda mais explícita os fundamentos do seu programa político e económico. «Tal como no interior de uma nação se trava a luta de classes pelo reajuste das desigualdades, também a guerra entre nações por uma causa nobre há-de resolver as actuais desigualdades injustas», escreveu ele, e argumentou. «Os socialistas ocidentais entram em contradição ao admitirem que o proletariado tem o direito de recorrer à luta de classes dentro do país e ao condenarem simultaneamente como militarismo e agressão a guerra travada pelas nações proletárias». Ora, haverá uma grande diferença entre as «nações revolucionárias» e as «nações proletárias»? No plano semântico são idênticas, mas não no plano político, porque as «nações revolucionárias» continuam a ser evocadas pelos marxistas, enquanto a expressão «nações proletárias» foi cunhada por fascistas e resume em duas palavras tudo o que o fascismo representa.
«Há nações que estão numa situação de inferioridade relativamente a outras, tal como há classes que estão numa situação de inferioridade relativamente a outras classes. A Itália é uma nação proletária; basta a emigração para o demonstrar. A Itália é a proletária do mundo», escreveu Enrico Corradini em Outubro de 1910. Foi entre 1908 e 1910, praticamente ao mesmo tempo que Kita no Japão, que em Itália o escritor, ensaísta e político Corradini começou a apresentar o seu país como uma «nação proletária». Mas enquanto Kita se situara originariamente na esquerda socialista e a partir daí fundara o fascismo nipónico, Corradini era uma das figuras marcantes da direita nacionalista e nesse âmbito concebeu o fascismo italiano, extraindo as conclusões práticas do conceito de «nação proletária» quando apelou para a indispensável junção com os sindicalistas revolucionários e orientou neste sentido os nacionalistas que o seguiam, uma convergência tanto mais fácil quanto os sindicalistas revolucionários italianos estavam já a evoluir nessa direcção. «Por favor, não percam de vista os sindicalistas», avisara Corradini em Abril de 1909. Vindo da direita, Corradini estendeu a mão à extrema-esquerda, enquanto Kita, vindo da esquerda, estendeu a mão à extrema-direita, e assim, na rede que teceram e na interacção entre ambos delimitaram o campo do fascismo. Até na sua topografia política originária o fascismo se revelou como cruzamento, ou convergência, entre os extremos do leque. Nos dois lados do mundo, ficaram assim fundados os alicerces do fascismo.
Se o fascismo é uma revolta na ordem, como defini no início de um longo livro, a «nação proletária» consubstancia a contraditoriedade íntima desse processo — a revolta social do proletariado ecoando na ordem da nação, de modo a gerar-se um novo terreno político, caracterizado por um radicalismo introduzido na direita e um conservadorismo absorvido pela esquerda. Ao mesmo tempo que o proletariado servia para renovar a nação, a nação servia para incutir ordem ao proletariado. A revolta na ordem consiste, afinal, na utilização dos processos revolucionários para substituir drasticamente com novas pessoas as antigas elites, usando a revolta para revigorar a ordem e reforçá-la. Era isto mesmo a «nação proletária» — ponto de partida do fascismo e seu conceito central.
Onde ficamos, então, entre a «nação revolucionária» de Engels e de Marx e a «nação proletária» de Kita e de Corradini?
Passado meio século que parecera uma eternidade, passados os fascismos e a segunda guerra mundial, o reputado economista sueco Gunnar Myrdal, que seria aliás galardoado com o Prémio Nobel, fora ministro num governo socialista do seu país e desempenhara funções de responsabilidade na ONU, lançou um apelo — «Nações proletárias do mundo, uni-vos!». A oratória do Manifesto Comunista estava preenchida com os termos do fascismo. E um intelectual brasileiro de enorme envergadura, Mário Pedrosa, militante que foi um dos introdutores do trotskismo no seu país, mencionou «um proletariado total constituído da soma das nações pobres» e sentiu-se à-vontade para incitar «os proletariados específicos dos grandes países industrializados» a fazerem «aliança com as nações proletárias». Tudo estava fundido, ou confundido. E que se transitasse tão facilmente entre a «nação revolucionária» e a «nação proletária», a história contemporânea fica contida neste deslize.
Em seguida, na segunda parte veremos como a luta internacional do proletariado desarticulou as nações e o que sucedeu depois. Na terceira parte veremos como a guerra mundial de 1939-1945 fundou a consolidação geopolítica das «nações proletárias». Na quarta parte veremos uma nova vaga de internacionalização das lutas e quais os seus resultados. Na quinta parte veremos como a ecologia dinamiza duplamente o processo gerador do fascismo. Na sexta parte veremos como os identitarismos transportaram o fascismo clássico para um contexto geopolítico transnacional. Na sétima e última parte veremos as transformações internas sofridas pela classe trabalhadora e a crise terminal dos marxistas.
Referências
A carta de Marx de 24 de Junho de 1865 encontra-se citada em Léon Poliakov, Le Mythe Aryen. Essai sur les Sources du Racisme et des Nationalismes, Paris: Calmann-Lévy,1971, pág. 252. O artigo de Engels de 13 de Janeiro de 1849 está antologiado em Paul W. Blackstock e Bert F. Hoselitz (orgs.) The Russian Menace to Europe, by Karl Marx and Friedrich Engels, Glencoe: The Free Press, 1952, págs. 59-67 e em Roger Dangeville (org.) Marx et Engels. Écrits Militaires. Violence et Constitution des États Européens Modernes, Paris: L’Herne, 1970, págs. 225-239; as passagens citadas encontram-se também transcritas em Roman Rosdolsky, Friedrich Engels y el Problema de los Pueblos “Sin Historia”. La Questión de las Nacionalidades en la Revolución de 1848-1849 a la Luz de la “Neue Rheinische Zeitung”, México: Pasado y Presente, 1980, págs. 31 n. 73, 80 e 126. A frase de Engels num artigo de Fevereiro de 1849 encontra-se em Paul W. Blackstock et al., op.cit., págs. 83-84. A passagem de Engels citada em seguida vem em Roman Rosdolsky, op. cit., págs. 100-101. A carta de Engels de 7 de Fevereiro de 1882 encontra-se Paul W. Blackstock et al., op.cit., pág. 117. O trecho do prefácio de Marx e Engels a uma edição russa do Manifesto Comunista vem citado em Paul W. Blackstock et al., op.cit., pág. 228.
A citação da obra de Kita publicada em 1906 encontra-se em George M. Wilson, Radical Nationalist in Japan: Kita Ikki, 1883-1937, Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1969, pág. 35. A frase de Maruyama acerca de Kita vem mencionada em Richard Storry, The Double Patriots. A Study of Japanese Nationalism, Londres: Chatto and Windus, 1957, pág. 37. As passagens da obra de Kita publicada em 1923 estão citadas em Richard Storry, op. cit., pág. 38.
O texto de Corradini de Outubro de 1910 vem citado em Zeev Sternhell, Mario Sznajder e Maia Asheri, The Birth of Fascist Ideology. From Cultural Rebellion to Political Revolution, Princeton, Nova Jersey: Princeton University Press, 1994, pág. 164. O apelo de Corradini em Abril de 1909 encontra-se em Pierre Milza, Mussolini, [Paris]: Fayard, 1999 pág. 107.
O apelo de Gunnar Myrdal foi reproduzido em Mário Pedrosa, A Opção Imperialista, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966, pág. 308. As passagens citadas de Mário Pedrosa encontram-se em id., op. cit., págs. 528-529 n. 1 (sub. orig.).
As ilustrações reproduzem obras de Victor Vasarely (1906-1997).






JB, podemos usar essas premissas logicas e fatuais, dentro do conceito de “sul global” ?
Aqui no Brasil a queda de braço para ver quem fica com a camisa amarela, foi novamente impusionada pelas taxações dos EUA e creio se repetir em outros paises… e o buraco vai so aumentando.
Gio,
A minha resposta em três letras é: Sim. Com mais palavras, é a terceira parte deste Manifesto.
Jean Pierre Faye cita a frase do teórico racista e místico Lanz von Liebenfelz “Eles queriam a luta de classes. Ele teram o combate de raças até a castração” como desenvolvimento da quimera narrativa de se utilizar fraseologias da invasão e da conquista aplicadas a luta de classes.
O exemplo do Japão é interessante, se o fascismo japonês tem como pai alguém na ala esquerda o anti-niponismo mais ferrenho também teve fortes bases na esquerda, como exemplo da Frente Armada Leste Asiática Anti-Japonesa, que justificou o grande número de vítimas civis nas explosões de fábricas da Mitisubishi com o argumento de que todo japonês seria um colonialista, o fato de tal frente ser formada por japoneses faz lembrar parte da esquerda atual dada a auto-flagelação.
(https://throwoutyourbooks.wordpress.com/2014/08/30/east-asia-anti-japan-armed-front-mitsubishi-bombing/)
Prezado João Bernardo,
Neste labirinto dos fascismos, como fica o “Make America Great Again”? E, no caso norte americano, como fica o estado estrito e o estado amplo com as políticas alfandegárias que, ao menos aparentemente, limitam a internacionalização dos capitalistas?
Toni,
A História não se repete, cria-se de novo e em formas novas. Por isso, quem julga que conhece as respostas antes de saber as perguntas está morto para a vida. A actual administração Trump serve, ou devia servir, para abrir os olhos e ver as novidades. É certo que em parte o MAGA se aproxima das formas clássicas de fascismo, na utilização dos mecanismos democráticos para a instauração de um poder ditatorial, na utilização de milícias e no lugar atribuído aos ecológicos. Mas mesmo aqui, embora herdando as antigas questões, devemos fazer-lhes novas perguntas. Quanto ao resto, e que é talvez o principal, a ruptura da globalização económica em conjunto com a desarticulação da geopolítica instituída depois da segunda guerra mundial e o novo tipo de relações estabelecido entre o governo e as empresas, o Estado Restrito e o Estado Amplo, tudo isto exige novas perguntas. Este Manifesto será uma tentativa, ainda incipiente, de contribuir para um novo olhar e para outras perguntas.
João Bernardo, sempre bom ler você tocando nas feridas. Concordo com a sua leitura do marxismo das forças produtivas e o marxismo das relações de produção, o que me parece o desenvolvimento de uma contradição inerente do próprio pensamento de Marx – ora as forças produtivas e os Estados, ora o movimento real dos trabalhadores. E aí é possível situar o aceno de Marx à comuna de paris e ao seu federalismo ao mesmo tempo que posteriormente sentava o sarrafo e pedia expulsão dos anarquistas – e o guerra civil em frança deve ser entendido nessa dinâmica de síntese de posições da AIT. As cartas de marx à vera são muito interessantes, e como você bem notou é interessante que de uma primeira longa carta Marx tenha escrito varias outras posteriores, cada vez menores e mais enxutas, pra tratar a questão. Lendo as cartas, me parece que marx acabava se aproximando mais da visão dos populistas russos do que o que sustentado pelos bolcheviques. O que essas reduções no conteúdo significam? Marx estava em contradição? Havia chegado em um momento que notou que tava falando de mais e se contradizendo, anulando escritos anteriores, e aí a opção por falar pouco? Essas cartas representam de fato uma inflexão do cara? Vale reivindicar essas cartas hoje como uma crítica ao etapismo e à uma perspectiva mais libertária do próprio marx? Vale fazer essa leitura também com guerra civil em frança?
Joao Bernardo transformou a si mesmo no arauto da “crise terminal do marxismo”. Se há mesmo essa crise e se existe alguém que a representa, este é sem dúvida João Bernardo.
Caro João Bernardo,
Aproveito e também te faço uma pergunta, seguindo um pouco o raciocínio de PPensando: é possível afirmar que esse anti-eslavismo de Marx e Engels teve origem em suas visões sobre o desenvolvimento das forças produtivas? Quer dizer, por acreditarem que a revolução proletária só teria êxito num país desenvolvido industrialmente, condenaram a Rússia e os eslavos por manterem relações praticamente senhoriais ainda no século XIX? Pois é isso que está por trás dos escritos onde eles defendem a tomada da Califórnia pelos EUA, não? Aliás, em teu Marx Crítico de Marx, como mencionou PPensando, falas dessa ambiguidade entre o Marx das forças produtivas e o Marx das relações sociais de produção.
PPensando e Cícero Dião,
Não respondi ao primeiro comentador porque interpretei a sua intervenção como considerações formuladas no estilo de dúvidas e, aliás, interpretaria do mesmo modo este último comentário. Penso que Marx e também Engels tinham menos certezas do que as têm os discípulos. O caso da correspondência com Vera Zassulitch é elucidativo, porque Marx escreveu três ou quatro longos rascunhos, procurando delimitar o problema e dar-lhe uma resposta, pondo afinal esses papéis de lado e optando por uma carta tão anódina que foi esquecida por quem a recebeu. Só mais de um ano depois ele e Engels conseguiram aproximar-se de uma conclusão, tão pouco concludente que deixou novas dúvidas. As mesmas oscilações e contradições sofreram os dois amigos a propósito da guerra franco-prussiana e da Comuna de Paris. Convém sempre recordar que as doutrinas não são formuladas pelos mestres mas pelos discípulos, que para isso talham os mestres a seu gosto. E por aqui chegamos à questão do anti-eslavismo e aos aplausos de Engels à expansão yankee contra o México, num artigo que segue de muito perto o jornal dos partidários do manifest destiny. Podemos interpretar tudo isso como expressões de uma preferência pelas forças produtivas materiais relativamente às relações sociais de produção? Ou seria apenas um reflexo das ideias sobre o choque de culturas, tão difundidas pelo romantismo alemão? Ou ambas as coisas, uma potenciando a outra? E os problemas multiplicam-se, porque os historiadores ou quaisquer outros teóricos da sociedade referem-se obrigatoriamente ao passado, próximo ou longínquo, e, mesmo que julguem referir-se ao presente, estão a reflectir sobre aquelas partes do passado que sobrevivem no presente. Ora, o presente, cada presente, é um emaranhado de possibilidades, e umas efectivam-se e outras não, e é à luz das experiências que na prática se efectivaram que nós interpretamos os textos dos autores que nos precederam. O pior é quando as pessoas os lêem para encontrar respostas e não para formular perguntas. Então, deixo os pontos de interrogação.