Há problemas ideológicos, estratégicos e materiais que a esquerda independente da África do Sul não conseguiu resolver, como a divisão entre as várias correntes e tradições da esquerda. Estes desafios não são novos ou exclusivos; muitos esquerdistas da América Latina e da Ásia falam de oportunidades semelhantes no contexto desta crise e das profundas barreiras que tornam difícil garantir avanços decisivos. Por Patrick Bond [*]
4. Implicações estratégicas para a resistência social e o “direito à cidade”
Que implicações terá a conjugação da recessão com relações de poder relativamente estáveis e a continuidade das medidas económicas? Os protestos sociais precisam de ser intensificados e ampliados para forçar concessões que permitam refazer o ambiente urbano da África do Sul. Como refere Harvey (2009), “O meu raciocínio é que, se esta crise é basicamente uma crise da urbanização, então a solução deveria uma urbanização de cariz diferente e é aí que a luta pelo direito à cidade se torna crucial, porque temos oportunidade para fazer algo diferente”.
Uma das primeiras estratégias é, contudo, defensiva. Ainda nos lembramos da anterior fase de descida do ciclo de Kuznets, cerca de 15 anos de sobe-e-desce dos preços imobiliários na África do Sul. As perdas resultantes deram lugar, no começo dos anos 1990, ao “boicote dos pagamentos das prestações hipotecárias” nos bairros negros da África do Sul, em cuja origem esteve a concessão de 200.000 empréstimos hipotecários a negros para quem se tratasse de um primeiro empréstimo, no final da década de 1980, quando as restrições urbanas do apartheid foram liberalizadas. A longa recessão de 1989 a 1993 deixou 500.000 desempregados recentes, e suas famílias, na impossibilidade de pagarem as suas habitações. Esse facto, por sua vez, contribuiu para a recusa colectiva de pagamento das prestações hipotecárias até que fossem aceites certas reivindicações. A partir da greve do complexo automóvel da Volkswagen em Uitenhage, no Cabo Oriental, a táctica alastrou em 1990 para a região de Joanesburgo, como consequência de dois factores: a má qualidade das construções (para o que os compradores não tinham outro recurso senão recusarem-se a pagar as prestações) e a subida das taxas de juro de 12,5% (-6% em termos reais) em 1988 para 21% (+7% em termos reais) no final de 1989, o que, na maioria dos casos, duplicava as prestações a pagar mensalmente (Bond 2000).
Em resultado dessa resistência as execuções hipotecárias [o arresto das habitações] não puderam ser concretizadas devido à recusa dos inadimplentes (apoiados pelas comunidades) em abandonarem os seus lares e, em Setembro de 1992, a situação de risco do principal financiador (US$700 milhões) dos empréstimos à habitação fez com que as acções da sua companhia holding (Nedcor) na Bolsa de Joanesburgo perdessem numa só semana 20% do seu valor (a somar a um prejuízo de US$150 milhões), no seguimento da ameaça de boicote às prestações por parte da organização cívica nacional. A nível local, se um banco se fizesse acompanhar pelas autoridades para arrestar as habitações e expulsar os habitantes inadimplentes, não era raro acontecer que algum comité de activistas vizinhos incendiasse a casa antes que os novos proprietários completassem a compra e para lá se mudassem. Esta resistência, por sua vez, permitiu às associações cívicas tanto locais como nacionais obterem concessões por parte dos bancos (Mayekiso 1996).
No entanto há poucas relações entre os movimentos cívicos que no início dos anos 1990 usaram com êxito aquelas tácticas micro-Polanyanas e a geração de “novos movimentos sociais” dos anos 2000, que se reorientaram para a desmercadorização da água e da electricidade por meio de ligações ilegais (Desai 2002). Estas diferenças mostram em parte que as mobilizações do final dos anos 2000 se deveram pouco ao sector da habitação formal, e em vez disso do encarecimento dos serviços ou da remoção pela força de bairros de lata [favelas]. Mesmo assim, podem extrair-se do recente surto de activismo social ensinamentos de grande alcance para a resistência às implicações da crise capitalista mundial, não só na África do Sul mas também noutros países.
Os ensinamentos provêm das estratégias de desglobalização e desmercadorização usadas para conseguir bens essenciais, como mostrou, na África do Sul, a nível nacional a Campanha de Acção por Tratamentos [campanha a favor dos infectados com SIDA/AIDS] ou em Joanesburgo o Fórum Antiprivatizações, que conseguiram, respectivamente, medicamentos antiretrovirais necessários no combate à SIDA/AIDS e o fornecimento público de água (Bond 2006). Os medicamentos são agora fabricados em África – em Joanesburgo, Kampala, Harare, etc. – e como medicamentos genéricos, não de marca, em geral fornecidos gratuitamente, um grande avanço em relação aos US$15.000 dólares por paciente e por ano em medicamentos de marca na década anterior (medicamentos consumidos, na África do Sul, por meio milhão de pessoas).
Em Joanesburgo a água é agora produzida e distribuída por serviços públicos (a companhia Suez foi mandada de volta para Paris depois de, entre 2001 e 2006 e sob contínuos protestos, se ter encarregado da gestão municipal da água). Em Abril de 2008 um importante processo constitucional no Supremo Tribunal teve como resultado a duplicação do volume da água gratuita, que passou para 50 litros por pessoa e por dia, e a proibição da cobrança antecipada do consumo de água (Bond e Dugard 2008). Mas o Tribunal Constitucional inverteu esta decisão em Setembro de 2009, alegando que não competia aos juízes deliberar sobre regulamentações menores, o que levou os activistas a recorrerem às ligações ilegais quando necessário (Coalition Against Water Privatization 2009).
A capacidade dos movimentos sociais nos campos da saúde, da água e da habitação [moradia] para conseguirem concessões importantes dos tribunais do Estado capitalista num contexto de crise é altamente contestada e terá consequências nas futuras estratégias do movimento, nos meses vindouros. Huchzermeyer (2009, 3-4) considera que “a Constituição estabelece a igualdade no direito à cidade”. No entanto,
«Só em 2000 é que a Carta dos Direitos foi invocada, no Tribunal Constitucional, pela comunidade urbana marginalizada e ofendida (representada por Irene Grootboom [activista do direito à habitação]). No que foi acolhido como um importante precedente jurisprudencial, o Tribunal interferiu no âmbito do Executivo, ordenando ao ministro da Habitação que corrigisse a sua política habitacional no sentido de cuidar melhor dos que vivem em condições intoleráveis. Foram precisos mais 4 anos para serem adoptadas mudanças de orientação na política habitacional. Foram acrescentados ao Código de Habitação nacional os Artigos 12 e 13: Habitação em Circunstâncias de Emergência e Melhoramento dos Bairros Informais. Nos 5 anos seguintes, essas novas orientações não foram convenientemente implementadas ou sequer o foram de todo. Continuaram as violações desnecessárias e as comunidades marginalizadas tiveram de recorrer aos tribunais. Todavia, o panorama alterou-se substancialmente. O caso Grootboom limitara-se a uma comunidade isolada, com uma rede de apoio pouco consistente baseada no Legal Resources Center [Centro de Recursos Legais], que a apoiou no tribunal, mas os casos da actualidade chegam até ao Tribunal Constitucional através de movimentos sociais, tais como o Landless People’s Movement [Movimento do Povo Sem-Terra], o Inner City Tenant Forum [Fórum dos Inquilinos Urbanos], o Abahlali base Mjondolo [movimento ligado aos bairros de lata, ou favelas], o Anti-Privatization Forum [Fórum Antiprivatizações] e a Anti-Eviction Campaign [Campanha Antidespejos]. Esses movimentos coordenam-se, trocam experiências e empenham-se nos combates legais uns dos outros».
Huchzermeyer (2009, 4) sugere que esta estratégia vem colmatar «uma lacuna no pensamento de esquerda sobre as cidades (lacuna que advém da ideologia marxista de que nada interessa a não ser a revolução)» e que o movimento pelo “Direito à Cidade” articulado por Henry Lefebvre e David Harvey deveria incluir os avanços marginais conseguidos em tribunal: «Neste sentido, a Reforma Urbana é um empenho pragmático em mudanças graduais, mas radicais, que visam uma das bases enquanto alicerce da igualdade de direitos». Afinal, «três componentes do direito à cidade – igualdade de participação nas decisões, igualdade no acesso e no uso da cidade e igualdade no acesso aos serviços básicos – foram invocadas perante o Tribunal Constitucional por uma aliança entre movimentos sociais de base e uma rede de simpatia da classe média» (muito embora) «esta linguagem esteja sendo rapidamente usurpada pelas correntes dominantes nas Nações Unidas, na ONU-Habitat, nas ONGs, nos think tanks, nas consultadorias, etc., dela fazendo uma moda verbal em que o conceito de autonomia de base e de convergência de esforços é completamente esquecido»).
Os críticos, por seu lado, apontam para os processos opostos no caso da água e consideram ser necessário fazer algo para além da retórica dos direitos humanos, alegando que, segundo a tradição da Crítica Legal Académica, esse discurso dos direitos só é útil conjuntural e contingentemente (como nos casos citados por Huchzermeyer) (Brand 2005, Madlingozi 2007, Pieterse 2007). Além disso, os limites da democracia capitalista neoliberal ficam por vezes à vista quando as lutas entre os movimentos sociais de base e o Estado têm de ser decididas levando em conta os custos da reprodução da força de trabalho. Então, se uma exigência feita ao Estado para conceder mais apoios financeiros ao povo trabalhador colide com as prerrogativas do capital (e dos ricos), é de esperar que ela seja rejeitada; ia nesse mesmo sentido a crítica de Rod Burgess (1978) a uma versão anterior e relativamente pouco ambiciosa da Reforma Urbana (a habitação autopromovida de John Turner), por considerar que ela vinha ao encontro do processo pelo qual o capital fazia baixar os custos de reprodução da força de trabalho, em vez de se lhe opor. Talvez seja ainda cedo para avaliar se as vitórias judiciais dos movimentos sociais dos medicamentos para a SIDA/AIDS e do acesso à habitação são um padrão duradouro que reifica o discurso dos direitos, ou se é mais típica a derrota do movimento pelo direito à água no Soweto. Os cépticos perante o discurso dos direitos sugerem, em vez disso, uma estratégia da “Utilidade Pública” [“Commons” strategy, termo que evoca os baldios de uso comum] que promova a partilha dos recursos e a confiscação das redes de água e de electricidade em épocas de crise (Bakker 2007, Desai 2002, Bond 2009, Naidoo 2009, Ngwane 2009).
Para os sul-africanos que lutam por uma sociedade, uma economia e uma cidade diferentes, o desafio é conseguir combinar uma atitude humilde derivada dos avanços limitados que os movimentos sociais conseguiram até agora (em muitos casos marcados por derrotas piores do que é costume) com a ambição de altos voos à escala da crise sistémica e da grandeza dos protestos sociais. Retrospectivamente, é fácil constatar que a esquerda independente – movimentos sociais urbanos radicais, movimento dos sem-terra, ambientalistas sérios e intelligentsia de esquerda – atingiu o seu ponto máximo demasiado cedo, nos desfiles impressionantes contra a Conferência Mundial contra o Racismo, em Durban, em 2001, e a Cimeira Mundial para o Desenvolvimento Sustentável, em Joanesbusgo, em 2002. Os protestos de 2003 contra os EUA e o Reino Unido por causa da guerra do Iraque também foram impressionantes. Mas, se olharmos para trás, embora em cada caso se tenha conseguido ultrapassar a Aliança [a plataforma tripartida da esquerda tradicional no poder: ANC, PC e central sindical], a dura realidade é que a fraqueza da organização local fora das três maiores cidades – além das intermináveis divisões internas nas comunidades, nos sindicatos e na esquerda ambientalista – facilitou um constante declínio nos anos subsequentes.
A ironia é que o recente surto de protestos “tipo pipoca” – rebentando subitamente em todas as direcções mas parando rapidamente – mostra como é necessário o tipo de organização que outrora resultou tão bem em zonas de Joanesburgo, de Durban e da Cidade do Cabo. Os movimentos urbanos radicais não conseguiram um salto qualitativo que lhes permitisse de facto organizar os milhares de “protestos de serviços públicos”, de greves sindicais, de revoltas de estudantes e de oposições ambientalistas dos últimos anos, ou pelo menos juntar-se a eles. Até agora, os organizadores e a intelligentsia da esquerda independente têm sido incapazes de injectar uma análise estrutural nas narrativas de protesto e de ajudarem a estruturar em rede esses descontentamentos.
Além disso, há problemas ideológicos, estratégicos e materiais que a esquerda independente da África do Sul não conseguiu resolver, como a divisão entre as correntes autonomista e socialista, e a falta de respeito mútuo entre as várias tradições da esquerda, incluindo o trotskismo, o anarquismo, a Consciência Negra e o feminismo. Uma abordagem sintetizadora continua a parecer impossível em 2010. Exceptuando uma campanha contra o empréstimo do Banco Mundial à Eskom (US$3,75 mil milhões [bilhões]), que une os vermelhos (incluindo sindicatos e comunidade) e os verdes contra a privatização da electricidade, as enormes subidas de preços (230% em quatro anos) e os danos climáticos, não se vislumbram convergências estratégicas. Exemplo de uma questão estratégica que pode dividir os movimentos sociais urbanos mais importantes é saber se se devem apresentar candidatos às eleições. Outro problema é que a esquerda independente apenas confia nas poucas fontes radicais de recolha de fundos, em vez de seguir a tradição dos sindicatos de recolher fundos dos seus próprios membros (a propensão dos eleitores alemães para votarem no Die Linke pode ter bastante influência na esquerda sul-africana).
O mais certo é que o próximo salto qualitativo venha a ser dado quando os sindicatos esquerdistas e os membros mais sérios do Partido Comunista da África do Sul se aliarem à esquerda independente. A grande questão será quando é que a Cosatu [central sindical] vai chegar aos limites do seu projecto dentro da Aliança. Muitos (incluindo eu próprio) tinham previsto que os conflitos de 2007 iriam correr muito mal aos sindicalistas e aos comunistas, mas provou-se que não tínhamos razão. Talvez não haja, em todo o mundo anglófono, um movimento sindical nacional melhor do que a Cosatu, por isso aquele erro tem de ser rapidamente corrigido. Por alturas de Março de 2010, depois de um decepcionante discurso de Zuma sobre o estado da Nação, a que se seguiu um discurso orçamental reaccionário que abriu caminho a um mercado de trabalho em dois níveis [formal e informal] (caracterizado pela odiosa subcontratação e terceirização) e que manteve uma política monetária ortodoxa, o momento de ajustar contas parece estar bem mais próximo. Talvez ele se dê em torno da aliança de Zuma com a sua juventude desbocada, liderada por Julius Malema, cujo talento de obter acesso a contratos estatais tresanda a corrupção.
Estes desafios não são especialmente novos nem exclusivos; muitos esquerdistas da América Latina e da Ásia falam de oportunidades semelhantes no contexto desta crise e dos grandes obstáculos que tornam difícil garantir avanços decisivos. Mas será talvez nas intensas confrontações durante a crise capitalista na África do Sul que poderemos em breve ver, como em meados da década de 1980 e no início dos anos 2000, o ressurgimento do mais impressionante movimento social urbano do mundo. E, se tal não acontecer, poderemos constatar um acentuado agravamento das condições de vida, numa África do Sul pós-apartheid com maior desigualdade económica, com um ambiente mais insustentável e com mais razões para fomentar as expectativas movidas pela cólera das bases do que durante o próprio apartheid.
[*] Patrick Bond dirige o Center for Civil Society http://www.ukzn.ac.za/ccs/ na Universidade de KwaZulu-Natal em Durban e é activista de movimentos da comunidade, do ambiente e do trabalho.
Artigo inédito em inglês, tradução do Passa Palavra.
Referências
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Bond, P. (2000) Cities of gold, townships of coal. Africa World Press, Trenton.
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Madlingozi, T. (2007) Good victim, bad victim: Apartheid’s beneficiaries, victims and the struggle for social justice, in W.le Roux and K.van Marle (eds). Law, memory and the legacy of apartheid: Ten years after AZAPO v President of South Africa. Pretoria: University of Pretoria Press.
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