Há muitas ideias feitas, espalhadas e arreigadas sobre estas campanhas. A quem as viveu, cabe tão só testemunhar o que se passou. Por Manuela de Freitas
Nem tudo o que luz é oiro. Mas só com luz se pode distinguir.
Saíam de Lisboa, em carros do exército, os militares do MFA [Movimento das Forças Armadas] e os actores. Chegavam à cidade e instalavam-se todos no quartel, onde ficavam durante uma a duas semanas. Dali partiam diariamente para as várias vilas e aldeias da zona onde se realizavam as sessões. Montavam o palco e preparavam a sala. Depois iam pelo povoado, chamando as pessoas, com quem, no café, nas ruas, conversavam e as convidavam para o encontro dessa noite. Não se sabia quais as vedetas que mais atraíam a atenção das populações: se os protagonistas do teatro, se os protagonistas da Revolução dos Cravos.
Quando a peça acabava, estabelecia-se o debate. O público começava por falar com os actores sobre o espectáculo e, a propósito dele, os militares explicavam quem eram e o que estavam ali a fazer: depois de terem libertado Portugal do fascismo, queriam saber o que era preciso fazer para reconstruir o país e melhorar a vida das pessoas. E ali ficavam a responder a perguntas, a tomar notas, a ouvir as queixas, as esperanças, as dúvidas, os medos: “Construam-nos um cemitério porque o mais perto é a 20 quilómetros e, no inverno, quando levamos um de nós a enterrar, morrem mais dois ou três pelo caminho”. “Precisamos de uma ponte”. “Uma estrada dava muito jeito”. “Façam escolas para podermos aprender a ler”. “O que é que vão fazer aos patrões?”. “Limparam mesmo os fascistas todos?”. “E vocês, que ainda por cima têm armas, como é que nos garantem que não vão fazer pior?”.
Altas horas voltavam, actores e militares, para o quartel. E, no dia seguinte, iam fazer o mesmo noutra vila ou aldeia próxima.
Assim foi na primeira campanha (Beira Alta), na segunda (Douro) e na terceira (Trás-os-Montes) ao longo de 1974 e nos princípios de 1975.
Os MFAs fizeram o cemitério, a estrada, a ponte. Mas, a pouco e pouco – confrontados com a pesada herança de 48 anos de fascismo, com o atraso, as carências, a situação social, o caciquismo – esvaía-se-lhes o ânimo voluntarista e emergia uma frustrante consciência da sua total ausência de preparação política. A generosa energia dos “salvadores” dava lugar à apreensão e ao pessimismo dos “responsáveis pelo cumprimento das promessas de Abril”. Confessavam começar a perceber que só com espingardas não conseguiriam levar a bom termo a difícil tarefa – que o povo deles esperava porque a ela se tinham comprometido – de construir um país novo. Seria, por isso, necessário apoiarem-se em quem tinha competência e experiência dessas coisas. Embora com algumas reservas, só o PCP [Partido Comunista Português] lhes parecia estar em condições de os ajudar, porque era a única força de esquerda com uma poderosa organização e uma sólida formação política.
E assim, progressivamente, se assistiu à invasão e ao controle, pelo PCP, da 5ª Divisão (instância das Forças Armadas encarregue das Campanhas de Dinamização Cultural).
Aquele grupo de actores começou a tornar-se incómodo e desajustado às circunstâncias. Porque não aceitou que lhe censurassem os textos do programa; porque se recusou a fazer o espectáculo em condições que considerava atentatórias da qualidade e da boa recepção por parte do público; porque, nos debates, assumiu posições contrárias aos agora mentores do povo e porque, obviamente, não simpatizava com o PCP… voltou para Lisboa a meio da quarta campanha (Minho). E nunca mais foi solicitado para participar em nenhuma, se é que as houve.
Seguiu-se uma afincada e habilmente programada descredibilização, política e cultural, do que tinham sido as Campanhas de Dinamização: “os militares do MFA andaram pelo país a catequizar o povo, a colonizá-lo politicamente, acolitados por um grupelho de Lisboa que, em total desrespeito pela identidade cultural própria das comunidades, lhes impingia produtos artisticos que elas recusavam porque lhes eram totalmente alheios”.
Esta versão dos acontecimentos foi sendo repetida ao longo dos anos pelos militantes do PCP, em toda a parte e por todas as formas, ora com argumentos culturais ora com argumentos políticos, conforme a quem se dirigiam. E assim – encontrando na má-fé, no sectarismo, na inveja ou na simples ignorância, o terreno propício para criar raízes – esta foi a verdade sobre as campanhas que ficou para a história.
É dificil encontrar quem não a repita ainda hoje. Francisco Martins Rodrigues (um dos mais prestigiados e influentes mentores da esquerda), na pág. 23 do seu livro O Comunismo que aí vem (Abrente Editora, 2004), escreve: «Na realidade, as comissões do “poder popular” que mais tarde vieram a reunir sob a presidência benévola dos oficiais, vinham na linha de continuidade das campanhas de “dinamização cultural”, que tinham percorrido a província, a explicar às populações o que era bom para elas. Eram uma reminiscência sublimada da “acção psico-social” em África.» [artigo que fora antes publicado no nº 1 da revista Política Operária, Setembro-Outubro de 1985].
Se, nos bastidores daquela experência, havia intenções e vontades ocultas e o que se passou no terreno foi afinal um desvio indesejado que escapou ao controle dos seus promotores, espera-se que historiadores credíveis o revelem, documentadamente.
Se, apesar das boas intenções dos intervenientes, aquela não foi a melhor forma político-cultural de fazer as coisas, espera-se que políticos e ideólogos credíveis a critiquem e, analisando-a, tirem conclusões para o futuro.
A quem a viveu, cabe tão-só testemunhar o que se passou.
Um testemunho pessoal…
As pessoas são capazes de interagir, com mais ou menos tecnologia de permeio, se tiverem vontade para isso e se estiverem convencidas de que são capazes. Se eu vivesse numa zona sem saneamento básico, tentava organizar com outras um movimento de base, popular, em assembleias, para reivindicar junto do município o investimento e obra há muito devidos.
É uma ilusão de urbanos, com muitas complicações na cabeça, pensar que os que vivem em meios rurais ou em meios com menos tecnologias estão incapazes de se auto-organizar.
Devemos evitar o paternalismo, o elitismo implícito que vem à tona, muitas vezes (até inconscientemente, claro) quando se usam expressões como «consciencialização», «estratégia de consciencialização».
Se o 25A e o que se seguiu servem para algo, será para não cairmos nos mesmos erros. Ora, a meu ver, uma mentalidade muito predominante nos meios da esquerda «revolucionária» (?) dessa época, era de que eram precisas campanhas de dinamização cultural para «justificar» e fazer avançar a revolução de Abril, para trazer «esclarecimento» a esse povo inculto, a esse povo analfabeto, etc. Ora, eu participei nessa época num grupo de estudantes composto por pessoas sem uma filiação partidária (pelo menos, óbvia e ostensiva) e com diversidade de vistas, na animação cultural junto de crianças de um dos maiores bairros de lata que havia então junto de Lisboa, o Bairro da Bela Vista, na estrada de circunvalação. Foi uma experiência enriquecedora, com os jovens do bairro a auto-criarem uma peça de teatro e representá-la, a construírem instrumentos musicais com canas, madeira, plásticos, latas, etc…. Depois, tive outra experiência enriquecedora no bairro da Boavista (em 77-78) onde havia problemas sociais muito agudos mas não se tinha ainda transformado em «supermercado» da droga, como depois aconteceu. Aí, as aulas de alfabetização na Soc. Rec. Mus. Verdi tiveram dificuldade em avançar, pois havia a concorrência da telenovela, que mantinha as senhoras afastadas, não havendo possibilidade prática de se obter uma diferenciação de horários das sessões que agradasse a todos/as.
Em ambas as situações, com o sucesso e limitações inerentes, o que ao fim e ao cabo se afigurou mais importante foi a capacidade de auto-empossamento, de auto-organização como determinantes para que o projecto avance. Em nenhum caso nós tivemos sensação de sermos considerados «não desejáveis» pelas pessoas de classe manifestamente diferente da nossa. A nossa atitude não era paternalista, não íamos lá para vender a «banha da cobra» dos partidos, o que tornou rapidamente muito fluida a comunicação recíproca (e também uma boa dinâmica interna, no grupo de dinamização cultural). Mas, em Portugal, essas experiências inovadoras do ponto de vista social, que foram da ordem dos muitos milhares e tiveram provavelmente milhões de pessoas envolvidas, foram varridas com a instalação da partidocracia como queria o Mário Soares e os poderes que o tinham projectado como líder do regime (desde o SPD alemão, até aos grandes grupos multinacionais com sede nos EUA, financiadores das campanhas e dos operacionais da CIA, até uma burguesia nacional ligada à maçonaria, etc…): Soares queria fazer de Portugal uma «partidocracia» e conseguiu. Disse-o muito claramente, na altura. Isso não chocou muita gente, agradou até aos que pensavam que o partido deles seria capaz de derrubar o poder PS: estavam enganados. Mas, sem dúvida, caso tivessem conseguido o «golpe» (legal ou ilegal, violento ou pacífico, isso não importa para aqui), o desfecho seria ainda mais sombrio que o que tivemos, possivelmente: uma espécie de Cuba do ocidente europeu seria uma miséria, um factor de desestabilização para a ordem mundial de então, que acabaria com certeza numa invasão e banho de sangue. Lembremos que Brejnev se opôs a isso (verão de 75).
Portanto, «comemorar Abril» sem criticar os erros dos que abriram (e fecharam) as sendas que potencialmente poderiam conduzir à emancipação, auto-empossamento do povo explorado, dos proletários e camponeses, é trair a memória desses dias maravilhosos, mais uma vez.
Infelizmente, a linguagem é um poderoso instrumento que permite esclarecer o pensamento; porém, também serve propósitos menos claros. É com belas palavras que se «passa a esponja» sobre os crimes do fascismo/colonialismo, sobre as conivências óbvias do capital e da igreja com estes crimes. É com belas palavras «revolucionárias» que se pretende fazer esquecer o papel nada luzente que os diversos protagonistas ditos «revolucionários» tiveram, num processo…numa História com 35 anos.
É tempo de fazermos a História do instante, compreender que face à voragem da nossa era, a História tem de ser escrita quase ao mesmo tempo que o acontecimento ocorre; o que coloca o problema do recuo e a da perspectiva para analisar os eventos, além da dificuldade de efectuar investigação exaustiva das fontes, num espaço de tempo muito curto.
A nós não deveria interessar-nos muito o «daqui a 100 anos». Deveríamos estar centrados no aqui e agora; deveríamos começar por fazer um debate presencial, com quem quisesse e com uma certa periodicidade, com todos/as as/os que estivessem disponíveis para uma participação construtiva e responsável. O pior que há no «activismo» deste país é o cabotinismo, a falta de seriedade, de propósito, de coerência entre o discurso e a prática. Trata-se de fazer um debate para a acção e não um debate EM VEZ DE acção.
Se nos identificamos com o campo da esquerda libertária e anti-autoritária, sabemos que isso corresponde a um modo de acção, muito mais do que uma ideologia.
Manuel Baptista
É sempre de louvar este tipo de informação, a beleza da História é a dar-nos a possibilidade de a viver ou olhar nas suas mais variadas perspectivas. Aqui, a única coisa que lastimo é o uso abusivo de imagens, sem que as mesmas tenham a referência ao autor ou à proveniência da instituição de onde provêm. Neste caso estamos perante algumas imagens da autoria de Alfredo Cunha. Acho lamentável que não se faça justiça à autoria de documentos como o são as imagens, estas não devem ser encaradas como “cromos da bola” mas sim como documentos de época, tão válidos e importantes como todos os outros.
Maria de Lurdes Baptista
Cara Maria de Lurdes Baptista,
Agradecemos esta sua crítica. Já inserimos as legendas de autoria nas fotografias que são do Alfredo Cunha.
O Colectivo Passa Palavra.
eu fiz as campanhas de dinamizaçao e tenho alguma fotos da maio nordeste
EU TAMBEM FIZ ESSAS CAMPANHAS ESTIVE DESDE BRAGANÇA,MACEDO DE CAVALEIROS ALFANDEGA DA FE MOGADOURO ETEC.GOSTAVA DE CONTATAR OS MEUS COLEGAS QUE LA ESTIVERAM SE FOSSE POSSIVEL!! O MEU NOME DE GUERRA LIMPO!!ABRAÇOS!!PARA TODOS DIGAM ALGUMA COISA SE POSSIVEL PARA O MEU E-MAIL
ANTONIO MANUEL FERREIRA SE FOSSE POSSIVEL GOSTAVA DE VER ESSAS FOTOS PODES ENVIAR PARA O MEU E-MAIL!!!!ABRAÇOS!!!