O território comunitário é reconhecido hoje como o mais seguro no estado de Guerrero, onde a redução da criminalidade é de cerca de 94%. Por Gisela Guevara.
Composta pelos povos tlapanecos, mixtecos, nahuas e mestiços do estado de Guerrero, no sul do México, a Polícia Comunitária se apresenta como um esforço organizativo de amplo alcance em que, em meio a um contexto social de marginalização e pobreza das comunidades, conseguiu se estabelecer como um referencial importante de luta, reivindicando o exercício da autonomia como uma forma de garantir a segurança no território comunitário.
A Polícia Comunitária surgiu em 1995 para resolver o problema da insegurança que existia na região da Chica Costa, estado de Guerrero, México. É uma organização que conseguiu expandir-se geograficamente à região serrana e tem atualmente cerca de sessenta e cinco comunidades que se somaram à organização.
O território comunitário, como é denominado por eles, é reconhecido hoje como o mais seguro no estado de Guerrero, onde a redução da criminalidade é de cerca de noventa e quatro por cento, o que serve como referência para medir a eficácia, não só do trabalho dos policiais comunitários, mas do conjunto da organização toda, incluindo suas comunidades, que conseguiu tornar-se um processo de luta contínua, que começa por reconhecer a pluralidade dos povos e o diálogo como uma prática fundamental para a resolução de problemas.
“A Justiça comunitária tem princípios”
Implementar um novo sistema de administração da justiça, assentado no princípio de “reeducação”, é um dos logros mais reconhecíveis da organização, que desde 1998 fornece justiça para suas comunidades através da Coordenadora Regional de Autoridades Comunitárias, a CRAC, um organismo criado para administrar a justiça comunitária com base num regulamento interno que respeita as tradições e costumes dos povos.
Fala-se de uma “justiça pública e coletiva”, onde não é uma pessoa com o título de juiz quem decide e passa sobre o direito à liberdade das pessoas, pelo contrário, a administração da justiça comporta “os olhos de toda a comunidade” que participa ativamente na tomada de decisões e na reabilitação dos que cometeram alguma falta.
“Nós investigamos antes de processar, tentamos conciliar antes da sentença e se propõe reeducar antes de punir, sem distinção de sexo, idade, religião ou grupo social.” Estes são os princípios básicos da prestação da justiça com base em critérios humanos e fundamentais que começam por olhar aqueles que tiveram alguma falta, não como criminosos, mas como pessoas que também fazem parte da comunidade.
O isolamento indefinido do sujeito não é uma prática que seja reconhecida no âmbito deste sistema de justiça, em que, pelo contrário, se faz do trabalho comunitário e do diálogo um mecanismo que serve para reintegrar o sujeito na comunidade, induzindo ele a partir destas práticas, a refletir sobre seu erro e reconhecer que não fez algo que apenas o prejudica individualmente, mas também afeta sua comunidade.
Os sucessos deste processo são significativos e, embora o crime seja considerado um problema potencial, o controle que o CRAC-PC tem sobre ele é reconhecível, embora dito sucesso esteja acompanhado também pelo assédio do Estado contra a organização comunitária, enviando sinais de advertência aos seus membros com mandatos de captura.
Por seu turno, os partidos políticos, apoiando este esforço estatal para enfraquecer a organização, e na disputa pelo poder, dividem as comunidades fazendo promessas de campanha, as quais não necessariamente tornam-se realidade, que se transformam em instrumentos de controle político sobre as pessoas, cuja pobreza torna-as mais vulneráveis perante essas práticas.
Junto a isso, somam-se também as tentativas do governo de enquadrar a CRAC-PC dentro da sua legalidade, propondo a sua adesão na polícia municipal no estado, oferecendo posições de liderança, com vista a uma incorporação que permita o controle da organização.
Em que contribui para o movimento nacional?
Para Valentim, conselheiro jurídico da organização, a contribuição da CRAC-PC para o movimento nacional é a recuperação da discussão de problemas comuns e a busca de soluções coletivas, ressaltando que é justamente o exercício de reunião e do diálogo o que ajudou a crescer a organização: “Se tiver um encontro durante todo o dia, não se deixa até que seja alcançado um acordo.”
A organização, disse ele, é algo que todos deveriam fazer, com o objetivo de unir esforços e abrir espaços para a abordagem e, assim, obter a identificação de tais processos comuns, que, além de proporcionar a força organizativa, também servem como mecanismo de auto-defesa.
“Muitos de nós que estamos no comando da organização temos mandados de prisão, por isso precisamos dos aliados de fora para ter mecanismos de denúncia e comunicação, e também buscar os apoios políticos que nós não temos.”
Atualmente, a CRAC-PC “é assumida como um projeto integral que vai além do policiamento comunitário”, que busca a auto-organização dos povos e sua participação em temas de educação, saúde, comunicação e comércio regional, sendo estes últimos os projetos que têm um impacto significativo sobre as comunidades pobres, onde a infra-estrutura não dá para satisfazer as necessidades dos povos. “Este é um processo de caráter comunitário que já ultrapassa em muito a meta original”.
A saúde, por exemplo, longe de ser um direito social que o Estado deve garantir, torna-se uma escolha dentro do leque de possibilidades do orçamento do governo federal, o qual, usando programas como o “Oportunidades”, visa resolver o problema programando visitas regulares dos médicos às comunidades, fazendo-os responsáveis pela vacinação de crianças, e atenção de doenças imediatas, “enchendo” as clínicas de drogas que por falta de conhecimento para a aplicação perdem sua utilidade. Como resultado, doenças comuns tornam-se casos graves de saúde por não serem atendidas, no caso da região montanhosa, pois exigem a transferência do doente em trajetos de pelo menos cinco horas por estrada extremamente irregular, em comunidades que na estação das chuvas são ainda mais afetadas.
Neste contexto as mulheres e as crianças são os setores mais vulneráveis da população indígena da montanha, que enfrenta problemas de altas taxas de desnutrição de seus filhos, e a maior taxa de mortalidade materna no mundo, de acordo com dados da UNICEF e do INEGI.
Na educação, o problema é traduzido numa política educacional muito restrita e limitada, cujo ponto de partida é não reconhecer a necessidade de desenvolver programas de estudo adequados ao tipo de educação que precisa a população indígena e rural de nosso país e, embora a educação básica tenha uma cobertura importante, torna-se uma simulação, desde que não existam reais possibilidades de continuar os estudos, pois a partir do nível secundário não há garantia de acesso, porque não existe a infra-estrutura necessária para atender os diferentes níveis de ensino.
Embora a falta de compromisso de alguns professores que deixam de frequentar a escola regularmente para ensinar suas aulas também seja um problema, esta situação, longe de ser ligada a casos particulares, tem a ver com uma política de Estado que não dá prioridade de acesso à educação como uma necessidade fundamental para a população em geral.
A agricultura, como principal atividade econômica, está no centro de uma crise global causada pelas mudanças climáticas que, no caso de comunidades indígenas e camponesas, têm um impacto direto sobre as culturas, que são afetadas pela falta de chuva, o que é outro agravante para a situação de pobreza extrema em que vivem os povos, cuja existência depende de produtos como o milho, a base de toda a alimentação.
Tudo isso se encaixa no abandono do governo que decide virar o rosto para as políticas públicas e simula uma “luta contra a pobreza”, com programas cuja contribuição se limita ao “apoio econômico”, que funciona mais como um “soporífero” para mitigar a situação de extrema pobreza em que vivem as comunidades.
Apesar deste difícil contexto, a CRAC-PC, nos seus quinze anos, avança de forma constante e hoje continua a ser uma organização forte e includente, guiada pela pluralidade de um processo gestado a partir dos povos indígenas e mestiços, que se organizaram para tomar a justiça nas suas mãos, que estava perdida há décadas para eles e continua para a grande maioria do país, com a existência de maus governos e um sistema capitalista que está deixando para os nossos povos morte e destruição.
Veja outras fontes sobre a experiência da polícia comunitária em Guerrero, México:
Isto sim pode ser chamado de “polícia comunitária”, e não as propostas estatais para uma polícia menos violenta, com policiais com cursos na área de humanas e recrutados nas regiões onde efetuam a repressão. O problema da criação destas organizações para além do Estado é que elas implicam na necessidade de uma organização muito maior do que para a efetivação de uma simples ação. P.e. estas pessoa que atuam na área de seguranças, elas precisam sobreviver, e isto tem que vir através de um salário ou de uma troca entre trabalho e bens necessários para a sobrevivência. Em ambos os casos há a necessidade de um movimento auto-suficiente (ou em vias de) por traz de tudo isso. Para isto, é necessário o acesso aos meios de produção, etc.
é mole?
Achei interessante a idéia, e já ouvi um bocado sobre o tema, mas, ainda tenho algumas dúvidas:
com base em quê a polícia comunitária organiza a vida jurídica da comunidade? .. por ser uma comunidade marginalizada, a policia adota princípios éticos próprios, alheios às determinações do Estado mexicano, ou existe uma organização de acordo com a legislação dita oficial. Ou ainda é uma mescla dos princípios e costumes locais com as determinações legais?
ao que me parece a polícia comunitária beira a informalidade e, num país com baixa incidência jurídica e pouco controle do Estado sobre os órgãos de poder, tais polícias correm o risco de se tornarem aparatos de opressão e exploração das próprias comunidades… talvez isso não tenha ocorrido no México, mas é um risco que se corre ao implantar-se tais modelos de polícia.
Essa próprios medida de pluralismo jurídico, ao meu ver, é em grande medida perigosa, afinal criam-se diversos polos, dotados de manifestações diversas de controle e juridicidade autônomos entre si… ou seja, o Estado perde totalmente o controle sobre tais comunidades que ordenam-se segundo seusprincípios… é uma medida em tanto quanto anárquica – não utilizando o termo pejorativamente.
Ao meu ver, o Estado deve absorver tais polícias e aproveitar a deixa para refundar o modelo do aparato policial mexicano…
porém, para além do modo de estrutra repressiva-policial, outras questões mais densas ainda pairam sobre a segurança pública dos países… sobretudo no campo legislativo.
Caro, Fábio: a regulação do uso da violência para fins de defesa sempre traz o risco de oprimir aqueles a quem se pretende defender, e não vejo como o monopólio do uso legítimo da violência pelo Estado (característica do Estado moderno) diminui tal risco. Ao contrário, a história mostra fartamente as arbitrariedades promovidas pelo braço repressor do aparelho de Estado, inclusive naqueles ditos “democráticos”. Uma das formas de diminuir o risco de opressão é diminuir a separação entre um corpo político e o seu braço armado.
Contextualizando a experiência da polícia comunitária em Guerrero, é preciso ter em mente que o Estado mexicano é altamente criminógeno (portanto, ilegal) e que o controle de vastas parcelas do territórios por narcotraficantes é endêmica, de maneira que a população tem sido levada a desenvolver os seus mecanismos de autodefesa. Desejar que estas experiências sejam absorvidas pelo Estado mexicano é o mesmo que desejar a volta do anterior estado de insegurança, e esperar uma refundação da polícia do mexicana é quase o mesmo do que esperar por uma revolução.
O pluralismo jurídico que é perigoso é aquele existente em sociedades heterônomas, como as nossas. Assim, nos marcos de uma sociedade autônoma (em que a formulação das leis e o seu juízo cabem aos próprios cidadãos, por meio de instituições que assegurem a sua participação bem informada), a escolha das normas estará de acordo com a vontade popular. Sempre haverá o risco de se escolherem leis injustas, pois a questão da justiça não é um assunto técnico. O importante é que a sociedade esteja em condições de responsabilizar pelas leis de cuja escolha ela participou diretamente. Em uma escala mais ampla do que a comunitária, a federação de comunidades autônomas pode perfeitamente estabelecer um código de princípios comuns, bem como instituições reguladoras e de mediação de conflitos que não se descolem do controle popular.
Ou seja, o Estado não apenas não é uma garantia de segurança, como é um aparelho historicamente opressor. Nesse sentido, experiências como a da polícia comunitária de Guerrero são pequenos demonstrativos de como pode ser uma sociedade sem Estado, sobretudo por ajudar a desfazer o mito da necessidade do Leviatã, sem o qual o homem seria um lobo do homem.
Concordo com você, Eduardo, quando diz que o Estado é um elemento eminentemente opressor, e acho tal opressão, em certa medida, necessária, mas minha maior questão é relacionada ao embasamento ético na qual se funda a tal polícia comunitária.. a opressão, a força, é elemento de última instância, de último grau… ate que ponto é uma boa idéia transferir esse monopólio da coerção para um grupo quase que informal?.
concordo também quando voce diz que o Estado comunmente é utilizado para fins impróprios, saindo do controle de qualquer controle jurídico e que no caso do méxico, onde a situação do aparato Estatal é crítica – não que no nosso país não seja; muito pelo contrário – elementos jurídicos plurais surgem quase que automaticamente..
a única coisa que eu ainda, e talvez nunca, acreditarei é na possibilidade de organização popular eficiente, além de achar uma piada a presunção de concordância da população para com ações de algum grupo paraestatal, tanto quanto é uma piada a presunção de concordância da população para com as decisões do Estado, apesar de ambos declararem-se legítimos e democráticos a priori (sem falar no fato de que as decisões ditas democráticas nem sempre, ou melhor, raramente, apresentam-se como as mais embasadas e eficientes); assim, vejo a polícia comunitária no méxico mais como uma mostra de ingerência do Estado do que como uma manifestação de organização social sólida e pretensa à eficiência técnica…
deixo claro que não sou contrário a existência da tal policia comunitária, assim como não sou contrário a existência do Estado… não sou nem um facista enrustido num site de esquerda, nem um anarquisra em território propício… pelo contrário, não emiti nem tenho efetivamente nehhum juizo de valor fixo sobre tais instituições…
pra falar a verdade, só queria agitar a página… rsrs
Mas, Eduardo, como assim, viver sem Leviatã, mas com polícia? Que tal isso de, em situações como essa de Guerrero, as pessoas justamente organizarem uma “polícia comunitária”? O que isso nos diz sobre tudo o que se teorizou sobre o Estado nos últimos séculos?