Por Leo Vinícius
Há quatro anos Cesare Battisti é preso político no Brasil. Sua situação espelha o limite que se pode atingir com a esquerda (com ou sem aspas) eleita a postos no Estado.
Nada mais do que o mal menor, ou simplesmente o menos pior. É tudo o que se pode conseguir nas eleições. Cesare Battisti não está numa masmorra na Itália, Cesare Battisti não está morto.
A situação dele é também o reflexo no campo da perseguição política do que ocorre no plano social com os programas de transferência de renda e algumas políticas públicas. O que nos interessa aqui é lembrar que o mal menor só se coloca como horizonte pela nossa inefetividade ou incapacidade de constituir uma situação essencialmente outra e não apenas diferente em gradação. É o fazer – de um grupo social ou de grupos sociais que se constituam em sujeito político [1] – que pode trazer liberdade a Cesare Battisti, como repetido já diversas vezes (e aqui mesmo neste sítio). É ele que pode constituir algo além do menos pior no plano social. Exatamente o fazer que tende a tornar alguém um perseguido político, como mostra o próprio exemplo de Cesare Battisti. Como já apontado em outro artigo, Sobre Negri e Hardt, Cesare foi um entre dezenas de milhares de jovens que protagonizaram lutas intensas na Itália dos anos 1970. Lutas para além e contra o horizonte do mal menor, ou seja, além e contra o horizonte estatal.
Luta porque é produtivo ou é produtivo porque luta?
No final da década de 1970, a nova geração de trabalhadores italianos apresentava uma subjetividade diferente da geração precedente. Foram socializados numa Itália já industrializada, com meios de comunicação como a TV, e permanecendo mais tempo na escola – até os 16 ou 18 anos – , a qual constituía um espaço-tempo para o florescimento de uma cultura juvenil. Para esses jovens o local de trabalho não era mais o centro de sua existência (havia de fato uma rejeição ou desgosto pelo trabalho), a própria identidade como trabalhador se enfraquecia. Ao mesmo tempo portavam um antiautoritarismo e uma desilusão com o sistema político, com o Partido Comunista Italiano (PCI) ou mesmo com os grupos da esquerda extraparlamentar. Os antigos trabalhadores viam a nova geração que chegava como preguiçosos e irresponsáveis. Essa “desafecção do trabalho” por parte da juventude era tema até mesmo debatido na imprensa.
Em 1977 irrompeu um processo de lutas, ou de acirramento delas, tendo como ponto de partida a ocupação da Universidade de Roma pelos estudantes. Embora os conflitos nas fábricas não estivessem de todo ausentes, as lutas que caracterizaram a segunda metade dos anos 1970 na Itália, e que ficaram genericamente conhecidas por ‘movimento de 77’, foram protagonizadas principalmente por uma juventude que, diferentemente da de outros países, unia a contracultura a um imaginário comunista e proletário. Ao contrário, por exemplo, da Inglaterra, onde no mesmo período a depressão econômica e o desemprego resultaram em expressões culturais como o punk, na Itália a resposta dessa juventude teve vieses bem mais políticos. Embora tardia, a contracultura na Itália era muito mais politizada. Sua subjetividade e prática se orientavam para a satisfação de desejos e necessidades sem passar pelo mundo do trabalho, que era encarado por essa geração como espaço-tempo roubado da vida. Essa expressão antitrabalho, no entanto, vinha acompanhada em geral de elevada politização, de um desejo comunista explícito e até mesmo de uma identidade proletária.
O heterogêneo movimento de 77 teve características de movimento de massa e, à diferença do movimento italiano de 1969, que havia sido fruto de um boom econômico, 1977 foi conseqüência de uma crise econômica e de elevado desemprego juvenil. Para muitos, se tivesse havido uma revolta operária como em 1969 ou 1973, uma situação revolucionária teria ocorrido em 1977. Os principais palcos de confrontos e conflitos sociais em 1977 foram Roma e Bologna (governada pelo PCI): cidades sem muitas indústrias e caracterizadas por uma produção descentralizada.
O espírito anti-hierárquico e anti-sexista era típico também do movimento de 77. No período, as auto-reduções [2] não visavam contas de energia elétrica, como em anos anteriores, mas tarifas de transporte, entradas para cinema e apresentações musicais. Inúmeras rádios livres foram postas no ar, e as ocupações de imóveis visavam não apenas moradia, mas um local para atividades políticas e culturais. Era o surgimento dos chamados Centros Sociais. Em Milão, por exemplo, havia 55 deles em 1977, envolvendo milhares de pessoas, sobretudo jovens. Dezenas de milhares se envolveram em manifestações e batalhas de rua pelo país, com uma forte resposta repressiva chegando a fazer vítimas fatais, o que levou a uma espiral de violência que acabou deixando pouco espaço para intervenções não-violentas e facilitou a estratégia repressiva e de criminalização estatal.
Cesare Battisti é um personagem típico da juventude militante que protagonizou os conflitos sociais na segunda metade da década de 1970 na Itália. De família de tradição comunista, entretanto rompeu com o stalinismo da geração anterior. Envolveu-se com “expropriações” (assaltos e furtos) em meados dos anos 1970, lhe rendendo dois anos de prisão. Foi então morar em um prédio ocupado por outros jovens do ‘movimento’. A ocupação era espaço de discussão política, mas também de socialização e de relações afetivas. Em 1977 entra para o Proletários Armados pelo Comunismo (PAC), uma das centenas de grupos da extrema-esquerda italiana da época, que fazia parte do arquipélago que compunha a Autonomia, da qual Toni Negri fazia parte, como membro do Grupo Gramsci. O PAC, como muitos grupos formados por ativistas anticapitalistas e ambientalistas que surgiram na Europa e EUA nas décadas seguintes, era na verdade um nome, uma bandeira, que poderia ser usado por qualquer um que se identificasse com certos propósitos e princípios. Antes do PAC, Battisti costumava ir a manifestações da Lotta Continua (que se dissolveu em 1976 em parte pelo choque entre sua estrutura ainda por demais hierárquica e não-participativa com a subjetividade que emergia através do feminismo e da nova geração).
O movimento de 77 se caracterizou também por um antagonismo explícito, direto e até mesmo inevitável com o PCI, como partido da ordem, e pela condenação e repressão ao movimento por parte do PCI (o que só aumentava a percepção de ser o PCI partido da ordem vigente). O PCI na década de 1970 seguiu o caminho de um acordo com a Democracia Cristã (DC), que ficou conhecido como Compromisso Histórico. Nele, teoricamente tentando evitar um golpe à direita como acontecido no Chile, o PCI compartilharia o governo com a DC, no que isso implicava também em ter um papel de repressão aos movimentos sociais e manutenção da ordem, isto é, da normalidade econômica, social e política estabelecidas. O PCI e os sindicatos, representantes de uma classe trabalhadora formalmente empregada, se opunham aos estudantes, desempregados e “marginalizados” que protagonizavam o movimento de 77, fazendo uso de um discurso, entre outros, que apontava uma oposição entre os que seriam os produtores, o trabalho produtivo, ou seja, os operários (aqueles os quais o partido e os sindicatos representariam politicamente) e os setores parasitários. A separação explicitava um apego a uma ética do trabalho, determinando a oposição entre aqueles que participariam conscientemente do processo de produção e aqueles que se oporiam ao processo produtivo. Alberto Asor Rosa, intelectual de esquerda e então membro do PCI, teorizou essa separação em seus artigos sobre as “duas sociedades”, em 1977. A “primeira sociedade” seria aquela formada pela classe trabalhadora organizada (os trabalhadores teoricamente representados pelos sindicatos e pelo PCI), e a “segunda sociedade” seria aquela formada pela juventude “marginalizada” e desempregada, ou seja, grande parte da base social dos autônomos, que se chocavam contra o PCI. Para Rosa e para o PCI, os sindicatos e o PCI representavam a “primeira sociedade”, sendo identificados como os setores produtivos. A teoria e o discurso do PCI se direcionavam à separação entre os operários e a juventude desempregada e “marginalizada”, procurando desqualificar essa última também através do conceito econômico de “improdutivos”, uma vez que só a “primeira sociedade” seria produtiva (e organizada).
Os autonomistas, com os quais Cesare se identificava [3], se opunham a tal interpretação. Para eles o movimento de 77, as auto-reduções, ocupações, apropriações e expropriações não eram produto dos grupos, estratos ou setores “marginais” ou improdutivos. Tratava-se de um fenômeno resultante de uma nova composição de classe, que estaria se tornando a “primeira sociedade” (usando os termos de Rosa) do ponto de vista da sua capacidade produtiva, da sua inteligência técnico-científica e das suas formas avançadas de cooperação social. O autonomista Sergio Bologna argumentava, por exemplo, que a “marginalização” desses setores que formavam o movimento de 77 não era uma marginalização produtiva, mas política, pela falta de representatividade nas organizações instituídas (partidos e sindicatos) e pela ausência de legitimidade que essas organizações da classe trabalhadora davam às necessidades e reivindicações expressadas por esses setores.
O que é importante frisar aqui é que o discurso da circunscrição da classe produtiva aos operários representados institucionalmente pelo PCI e pelos sindicatos, e a conseqüente extensão da designação de classes parasitárias a todos os demais, incluindo os sujeitos que davam vida ao movimento de 77 com todo o seu caráter subversivo e proposição anticapitalista, era, naquelas circunstâncias, um discurso conservador, que buscava legitimar a existência do partido e das burocracias sindicais e cumprir o papel de combater ideologicamente o movimento.
Essa relação entre legitimidade política e categorias econômicas (a de produtivo em específico) emergiu juntamente com a burguesia e foi herdada ou utilizada pelo movimento operário já em sua formação e pelo socialismo que apareceria com ele. Como não deveria surpreender a um materialista, a prática rebelde e de resistência de um proletariado antecedeu e determinou a crítica da economia política e o uso de conceitos e categorias econômicas que intelectuais socialistas iriam desenvolver no século XIX. Como diriam os historiadores G.D.H. Cole e A.W. Filson em relação ao caso britânico, nos anos 1820 emergiu uma escola de escritores que tentou fornecer uma base teórica à ação econômica e social das classes trabalhadoras. Essa teoria e crítica apareceriam, portanto, como suporte a um grupo, a uma prática, numa luta por hegemonia, mas também como reforço de representações coletivas mobilizadoras. O britânico Thomas Hodgskin – um dos primeiros intelectuais a escrever sobre economia política e ensiná-la de uma perspectiva trabalhista – explicitaria isso em 1825, ao escrever a esse respeito que, “uma vez o trabalhador não se sentindo molestado até então pelas pretensões do capital, não havia utilidade em opô-las com argumentos, mas uma vez modificado esse quadro, quando a prática dos trabalhadores despertara a resistência, isso determinava a tentativa de derrubar a teoria [a economia política estabelecida] nas quais elas estariam baseadas e justificadas” [4]. A crítica da economia política de Marx não era diferente nesse objetivo. As contradições ou antinomias que podem ser encontradas ao longo dos escritos de Marx quanto à distinção produtivo/improdutivo são de caráter lógico, formal, mas não se configuram como antinomias da perspectiva do objetivo da delimitação produtivo/improdutivo como constituinte de uma representação coletiva de e para um grupo social [5]. A teoria da mais-valia e a crítica da economia política não constituíam apenas teorias da exploração. Eram ao mesmo tempo teorização do poder constituinte, da potência econômica dos trabalhadores, do “trabalhador produtivo”, do movimento operário, dos que questionavam, contestavam e se rebelavam. O conceito e a teoria da mais-valia perdem seu referente se o sujeito político para o qual eles tinham um valor prático deixa de existir – o movimento operário no que havia nele de concreto em termos de práticas, experiência vivida e lutas.
Cesare Battisti continua preso pela mesma ausência que torna todas as teorias críticas da economia política, hoje, sem referente e sem valor prático: a ausência de um sujeito político.
Notas
[1] Por sujeito político deve-se entender o sujeito que exerce uma ação política, isto é, nos termos de Castoriadis (As Encruzilhadas do Labirinto 2: os domínios do homem. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987), uma ação que visa a uma nova instituição de sociedade. Nas suas palavras: “é na sociedade e na história que aparece a subjetividade reflexiva e deliberante, e o sujeito político, enquanto ele se opõe aos indivíduos que são simplesmente conformes à instituição de sua sociedade” (A Criação Histórica e a Instituição da Sociedade. Parte 3. Palestra realizada em Porto Alegre em 1991. Disponível em http://www.caosmose.net/tvalice/podcast/castoriadis/casta3.mp3).
[2] Prática que começou esporadicamente em 1968 e 1969 entre estudantes e trabalhadores através da recusa em pagar as tarifas de transporte. Em 1971 jovens em Milão forçaram a redução de preços de apresentações musicais ameaçando sabotá-las. Contudo, foi somente com a participação de delegados de conselhos de fábrica, de comitês de bairro e de sindicatos que as auto-reduções se tornaram uma prática de resistência viável e difundida entre 1974 e 1975. Tiveram início em Turim, quando grupos de trabalhadores da Fiat de Rivolta se recusaram a pagar o aumento de 25 a 50% para as empresas de ônibus que os levavam ao trabalho. O sindicato dos metalúrgicos organizou “delegados de ônibus” para recolher o dinheiro à tarifa antiga e enviá-lo para as empresas. As auto-reduções também foram feitas sobre as tarifas de energia elétrica. Cerca de 150 mil contas de energia elétrica foram auto-reduzidas em Piemonte. As auto-reduções se espalharam por outras cidades italianas, especialmente em Roma, e atingiram também as contas de telefone e os aluguéis. Note-se que elas se centravam nas tarifas de serviços prestados pelo Estado, mais fáceis de resistir do que as de serviços privados.
[3] Ver Sobre Negri e Hardt http://passapalavra.info/?p=17173.
[4] “The claims of capital, are, I am aware, sanctioned by almost universal custom; and as long as the labourer did not feel himself aggrieved by them, it was of no use opposing them with arguments. But now, when the practice excites resistance, we are bound, if possible, to overthrow the theory on which it is founded and justified” (HODGSKIN, Thomas. Labour Defended Against the Claims of Capital, 1825. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/mc000128.pdf.
[5] Para uma discussão minha de antinomias em Marx sobre trabalho produtivo, ver o arquivo:
https://docs.google.com/viewer?a=v&pid=explorer&chrome=true&srcid=0B5r7pzUB3n9iOWViYTExYWUtMmY4ZS00ZmI1LTgyZTYtNjMzMWRkN2Y4ODhk&hl=pt_BR.
Bibliografia
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ROSA, Alberto A. (1977) Le Due Società. Torino: Enaudi.
Parabéns pelo artigo, com essa excelente contextualização das lutas da qual participou o Cesare na Itália e com todas as referências aos autores que intervieram nelas. O documento que você postou ao final, de sua autoria, também me parece muito interessante. Tentarei lê-lo assim que me sobrar um tempinho.
Como o artigo começa por articular a condição do Cesare aos limites da esquerda no Brasil, arriscaria fazer aqui uma “cartografia” (não exaustiva, ok Manolo?) dessa esquerda. Limitarei-me também aos movimentos sociais, deixando de lado os partidos e as grandes centrais sindicais.
Temos, hoje, um movimento operário controlado por grandes burocracias sindicais (ou cobiçados por outras mais esquerdistas) e que poderá se mobilizar, eventualmente, em algumas lutas reivindicatórias pontuais, como por um aumento de salário mínimo de 10%, ao invés de 4,5%. É claro que uma mudança de conjuntura econômica nacional para pior tenderia a radicalizar essa fração da classe trabalhadora, mas esse cenário me parece pouco provável para os próximos anos.
De outro lado, o setor mais organizado da esquerda são os hiperprecários no campo e grupos identitários específicos mobilizados em torno do controle do território, os quais esbarram em certos limites, como a incapacidade de mobilização do assalariado rural e a desestruturação dos movimentos sociais nas cidades.
O hiperprecariado urbano tenta se organizar, principalmente através de ocupações de terrenos e edifícios ociosos e da resistência à remoções de favelas e loteamentos irregulares e à expoliação dos trabalhadores informais aqui e ali, mas enfrenta a violência da cidade, as limitações do solo urbano em comparação ao solo rural como fonte de rendimentos e a desarticulação de seus apoiadores provenientes da juventude precária como importantes limites. No mais, algumas das mais importantes organizações dos movimentos do hiperprecariado urbano já começam a ceder à tutela da burocracia partidária-sindical – o que não significa que todas serão, mas indica uma debilidade destes movimentos.
Os jovens precários urbanos (como eu e parte considerável dos leitores do PassaPalavra), com exceção daqueles mobilizados em torno do movimento pelo passe livre e de pré-vestibulares para negros e carentes, têm encontrado, em geral, um ambiente de engajamento político junto aos movimentos protagonizados pelos hiperprecários, mas, é preciso admitir, temos sido incapazes de formular um projeto político revolucionário capaz de estruturar organismos de autorepresentação política consistentes. Acho que as discussões sobre a “mais-valia difusa” que você tem se interessado, sobre o “capital imaterial” e coisas que tais são fundamentais para a formulação desse projeto político. Enfim, tentar entender as contradições da nossa jovem classe média proletarizada, bem como a dos proletários recentemente promovidos à classe média(-baixa) é indispensável. Acho que, antes de mais nada, urge uma boa e bem diversificada análise de conjuntura… Poderíamos lançar o desafio por aqui, não?
Eduardo, concordo com sua leitura da situação do “proletariado” no Brasil no momento: os grupos que se mobilizam e os limites enfrentados.
Não tenho prática em análise de conjuntura. Deixo para alguém se empenhar nisso…
A “mais-valia difusa” (uma “mais-valia” que não é nem absoluta nem relativa) é para mim um anticonceito. Acho que serve apenas para mostrar os limites do conceito do Marx, ou que ele era antes de um conceito econômico, um conceito político, relativo a uma relação de mando e subordinação.
A questão que surge pra mim discutindo trabalho produtivo e esses conceitos da crítica da economia política é se será através de categorias econômicas que hoje os grupos sociais que lutam encontrarão sua legitimidade política, a legitimidade para terem poder político, isto é, poder de decisão e gestão. O movimento operário e o socialismo herdou da burguesia a idéia de que ser produtivo deveria ser pré-requisito para ter poder, ou até mesmo para ser cidadão. Hoje talvez faça mais sentido, e seja melhor invertermos isso.
Calma, Eduardo, eu sequer havia lido seus comentários até agora…
Na verdade, quando se fala em precariado, isto me lembra que a definição clássica de proletariado é “a classe que não dispõe de nada além de sua prole”, submetido a condições de superexploração e instabilidade no trabalho, pago com salários absurdamente baixos para trabalhar jornadas extensas etc.. Hoje, a esta mesma classe costuma se chamar de precariado, e o foco da definição sai de suas condições de vida e posses para suas relações de trabalho. Ora, mesmo quando se encontram nas baias de um call center (arquétipo de trabalho precário), um jovem com diploma universitário (ou superior incompleto) termina tendo um leque de alternativas laborais bem mais amplo a buscar quando for demitido que um jovem com ensino médio incompleto. Mesmo compreendendo que esta nova classificação tenta dar conta de novas realidades do mundo do trabalho na Europa (em especial na Itália, onde surge o conceito), seu uso aqui pede tantas adaptações (por exemplo, a divisão entre “precariado” e “hiperprecariado”) que termina fazendo-o perder sua força analítica.
Mas, noves fora estas observações, tendo a concordar com sua análise.
Quanto ao artigo, gostei bastante da contextualização histórica do movimento italiano, bem detalhada dentro dos limites de tamanho deste artigo. Mas pergunto: quando retornar à Zona da Mata de Alagoas nestes meses, posso dizer aos cortadores de cana que eles não existem? Porque o núcleo da mais-valia não é somente a relação mando/subordinação, ou do contrário — usando uma situação extrema — uma mãe extrairia mais-valia de uma criança a cada vez em que a mandasse limpar a bunda; trata-se da conjunção entre esta relação mando/subordinação e uma relação de exploração econômica. E na medida em que há exploração econômica — não creio, e sei que o autor também não, que o surgimento disto que está sendo chamado de “precariado” represente o fim da exploração — a mais-valia se sustenta não apenas enquanto conceito analítico, mas também como expressão de uma relação entre classes, tal como a existente entre os cortadores de cana e seus patrões.
Manolo,
O que eu disse ou quis dizer resumidamente no meu comentário ao Eduardo é que o conceito de mais-valia está ligado a uma relação de mando/subordinação (nunca disse que toda relação de mando/subordinação implicasse em mais-valia) antes de estar ligado a uma relação econômica de exploração (pelo menos é essa minha leitura e análise do conceito do Marx). E é esse o limite do conceito marxiano. Pois se fosse diferente o conceito teria que dar conta de qualquer relação de exploração econômica nos marcos do capitalismo, mesmo que não houvesse uma relação de mando, o que não ocorre (exemplos eu dou em outro comentário, se for necessário)
Seguindo a mesma lógica que você utilizou para criticar o conceito de precariado e hiperprecariado, a mais-valia também encontra seu limite num contexto, que é dado por uma relação de mando/subordinação. Conceito criado para dar conta do trabalho assalariado, empregado pelo capitalista. Fora disso, ele encontra o seu limite, embora a exploração econômica não se dê, nos marcos do capitalismo hoje em dia, apenas sobre o trabalho assalariado (seja terceirizado tornado “autônomo”). Ela não se dá nem mesmo apenas sobre o que se considera “trabalho”.
O meu único objetivo em apontar o limite do conceito de mais-valia ou de qualquer outro usado na crítica da economia política é, como levantei no artigo, salientar que o que importa não é tanto os conceitos em si, mas a função que eles tinham e podem ter (para um movimento – o sujeito político).
Só para completar, é bom frisar que o o objetivo do artigo é lembrar mais uma vez que Cesare Battisti está preso e buscar algo de origem comum entre a incapacidade de libertar Cesare Battisti e nossa (da esquerda, dos anticapitalistas)incapacidade ou prisão teórica.
Gostaria de conhecer estes exemplos de “relação de exploração econômica sem relação de mando” para ver se são os mesmos em que pensei.
Quanto ao objetivo do artigo, ele sempre esteve claro, ao menos para mim. Só penso que chegamos ao mesmo ponto — a crítica à incapacidade da esquerda em libertar Battisti — por meios diferentes. O “desvio teórico” feito até agora apenas expressa estas diferenças, embora em aspectos secundários.
Nâo creio que a questão seja de “ausência de um sujeito político” como a conclusão de seu artigo dá a entender. Afinal, estes sujeitos políticos a quem nomeamos a nosso bel-prazer existem — do contrário não os nomearíamos — e são autônomos também para escolher suas lutas.
Explico, retomando o exemplo de meu comentário anterior e ampliando-o. Os cortadores de cana da zona da mata de Alagoas, os sem-teto de Salvador, os “hiperprecários” do Rio de Janeiro, os trabalhadores das obras do PAC na Amazônia — em suma, os sujeitos políticos que estão aí, e em luta — podem mesmo ter conhecimento da situação do Battisti, mas não vêem conexão entre ela e suas próprias lutas. Além do desconhecimento — que seu artigo, e um outro do Pablo Ortellado que li há algum tempo, ajudam a dissipar — há a distorção de fatos, a produção da imagem de um Battisti “terrorista e assassino” etc.
Aí é onde vejo o problema. Você pode argumentar que as perspectivas teóricas da esquerda não permitem ver a importância da perseguição internacional e prisão de Battisti, mas o que vejo, usando seus próprios argumentos — com os quais concordo — é um problema não apenas nas teorias que a esquerda emprega, mas também, e mais profundamente, na percepção que têm do caso Battisti os sujeitos políticos aparentemente mais próximos daquelas lutas que Battisti travou em sua juventude. É este o nó a ser cortado. Agora, como?, não me pergunte…
Manolo, evidentemente não tiro sua razão nos apontamentos que você fez sobre os motivos de não haver mobilização suficiente para soltar Battisti. E claro, pelo artigo parece que basta que haja o tal sujeito político para que um preso político se veja livre. Tem a tal da correlação de forças também… Sacco e Vanzetti foram condenados, e tantos outros, e mesmo em épocas de forte movimento social.
Sobre exemplos de “relações de exloração sem relação de mando”, há os mais óbvios, ligados às empresas que comercializam suas ações na Nasdaq, mas para ficar num exemplo que se encontra no livro Democracia Totalitária, do João Bernardo (e aponto esse exemplo porque suponho que o João Bernardo não compartilha a visão que exponho aqui, tornando assim o exemplo acima de suspeita): o consumidor que é posto no processo produtivo da empresa (e do controle de qualidade em específico) através do feedback que ele dá à empresa. Não há relação de subordinação, de mando, ou de controle do tempo e dos ritmos do trabalho (porque nem de trabalho propriamente se trata), em geral, entre o empresário e o consumidor. Há mais-valia aí? E para que serve chegar a uma conclusão se há ou se não há?
A questão da distinção entre trabalho produtivo e improdutivo tem raízes muito profundas na história das ideias económicas, pelo menos desde os fisiocratas. Por outro lado, numerosas polémicas se travaram em torno do assunto na primeira metade do século XX, tanto por parte daqueles que defendiam uma noção de objectividade científica como por parte dos que defendiam que as teorias económicas expressavam directamente interesses sociais. Hoje, que o modo de produção capitalista se expandiu a todo o mundo e abarcou a prática totalidade das profissões, a distinção entre quem é e quem não é trabalhador produtivo, ou seja, entre quem produz mais-valia e quem não a produz, é fundamental para traçar uma linha de demarcação entre as camadas mais qualificadas da classe trabalhadora e as camadas inferiores da classe dos gestores. Assim, é compreensível que aqueles que têm um pé num lado e outro pé no outro tenham interesse em obnubilar essa linha de demarcação. Convém aos gestores a confusão com a classe trabalhadora, para a poderem mobilizar em seu apoio. E a história tem mostrado, sem nenhuma excepção, que a confusão entre gestores e trabalhadores é sempre proveitosa para os gestores e é sempre funesta para os trabalhadores. É isto que está implicado na distinção entre trabalho produtivo e improdutivo.
Bolsonaro ao vice primeiro-ministro italiano: se eu vencer, vou extraditar Battisti!