Longe de interpretar o sofrimento como convite a abrir o campo de visão do sujeito diante do mundo externo, os eventos adversos começam a ser recebidos como fonte de trauma num leque cada vez maior de experiências e situações que antes não passariam de simples dificuldades. Por Emílio Gennari
Leia o artigo anterior aqui.
Mas por que é tão difícil reconstruir o sentimento de coletividade sem o qual não há ação coletiva possível?
A resposta é o resultado de uma somatória de elementos. De um lado, a globalização e os caminhos da reestruturação produtiva têm colocado os trabalhadores diante de situações apresentadas como a única alternativa viável. “Ou é isso, ou não dá pra continuar”, “não há outro jeito”, “é assim no mundo inteiro”. Na ausência de uma crítica ideológica e de um processo de mobilização à altura da situação, as pessoas tendem a acreditar que, no fundo, estão diante de algo natural, próprio do desenvolvimento social mundial e, portanto, não há como se rebelar a algo que afirma uma realidade tão presente e cotidiana que só podemos conviver com ela, mas que, aparentemente, não há como rejeitar. O problema é que se não há alternativas, qualquer debate torna-se vazio e um exercício inútil de busca do impossível. Diante desta postura, só resta ao indivíduo aceitar fazer a própria parte no caminho de sua realização pessoal e manutenção da auto-estima, na medida em que o esforço exigido consolida a superação de um limite individual e a adesão a um novo patamar de valores, idéias e formas de comportamento que dialoga com suas ambições e sonhos de consumo.
Ao mesmo tempo, porém, se não há alternativas, significa que você, indivíduo, é impotente diante da realidade, incapaz de buscar ou vislumbrar algo diferente e, sem perceber, o “EU” acaba se convencendo de que não é possível virar o jogo, mas tão somente se limitar à busca do prejuízo menor, sem perceber os interesses de classe que vão se beneficiar com as posturas a serem originadas por esta convicção. Por sua vez, a afirmação de que “é possível fazer de outro jeito” demanda uma vontade coletiva a ser construída e não apenas palavras de ordem que acreditam somar desejos individuais dispersos. Mas o que conforta a elite quanto às dificuldades desse processo se realizar é justamente a convicção assumida pelo sujeito de que o caminho para a felicidade demanda a exclusão dos demais e um olhar centrado em suas demandas particulares. O resultado: a lógica das capivaras que, ao se separar do grupo para cuidar de si, viram comida de onça… O fato de perceber que chegou a minha hora de ser comido, assusta, mas, em geral, não acorda quem aderiu a esta lógica. Pois, tudo o que deu errado volta a ser atribuído a uma fragilidade pessoal e não a um sistema perverso que busca se reproduzir através de uma servidão voluntária cega a tudo o que pode distrair o “EU” de seus projetos de afirmação social.
Como chegamos a este ponto?
Algumas pistas permitem pensar e compreender o emaranhado de situações que, ao se acumularem, vêm permitindo e fortalecendo as dimensões emotivas com base nas quais o indivíduo interpreta e se posiciona diante do cotidiano.
1. A corrosão dos mecanismos tradicionais/culturais (nos quais se inclui tanto a religião como o sentimento de comunidade e identidade coletiva) pelos quais as pessoas davam sentido à própria vida e se sentiam conectadas com uma maneira de agir socialmente aceita, ao mesmo tempo em que estes elementos ofereciam ao individuo um objetivo mais amplo no interior do qual se inserir. Sem essa identidade coletiva, feita de valores, crenças, vivências e formas de comportamento (e tendo, em contrapartida, o vazio atual de responsabilidade coletiva), retira-se um elemento de coesão que, ao desgastar a solidariedade e o compromisso social, acelera o passo da individualização. Um dos exemplos típicos desta realidade é o processo de urbanização da população rural. Ao sair da forte identidade coletiva do povoado de origem e chegar na cidade grande onde ninguém conhece ninguém e nem quer saber de ninguém, o sujeito perde todas as suas referências de vida. Com o afastamento da própria comunidade, os laços se enfraquecem, o isolamento social aumenta, a vida privada e as relações pessoais se tornam mais difíceis. À luta pela sobrevivência material acrescenta-se a necessidade de um duro embate com os demais para obter atenção e aceitação, o que só faz crescer a ansiedade e a sensação de incerteza.
2. O esvaziamento do papel das ideologias e das causas coletivas cujas idéias e valores eram capazes de motivar e conquistar o compromisso do sujeito, levando-o a se sacrificar em nome de uma causa e a ser autor da cena social na medida em que era constantemente chamado a assumir suas responsabilidades pelos acontecimentos que se preparavam e a intervir para alterar os rumos da vida em sociedade.
3. O processo de racionalização econômica e de reestruturação produtiva que subordina o indivíduo a forças poderosas, aparentemente invencíveis e sobre as quais o sujeito não exerce nenhum controle imediato. O choque provocado pelas mudanças planta um forte sentimento de impotência a ponto de convencer o “EU” de que não pode fazer nada, de que sua sensação de vulnerabilidade é algo natural e que, portanto, longe do optar pelo caminho aparentemente irracional da rebeldia, o melhor a fazer é mergulhar de cabeça nas novas demandas do mercado de trabalho. Afinal, o acesso aos bens que definirão sua própria sobrevivência e afirmação social dependem desta capacidade de se adaptar constantemente para garantir a própria empregabilidade num mundo em constante mudança. Ao partir da sensação de que é impossível domar os mecanismos de mercado, o jeito é se adaptar a eles com a flexibilidade e a agilidade de quem deixa progressivamente de ser ele mesmo para assumir uma identidade que vincula seu “EU” às mutantes e caprichosas exigências da acumulação. Em aberta oposição ao que parece esmagar e aniquilar o indivíduo, a única saída que ele ainda consegue vislumbrar é a das emoções na medida em que a auto-estima vinculada ao sucesso no trabalho e aos momentos de amor, prazer, paixão, medo, raiva, dedicação exaustiva, etc., o tornam consciente de estar vivo, fazem-lhe sentir o sangue correr pelas veias e proporcionam centelhas de humanidade e sentido para uma vida sempre marcada pela incerteza. O raciocínio frio cede o lugar aos sentimentos e à autoconfiança que, como vimos, impedem que se tire o olhar do próprio umbigo.
4. Na medida em que cresce a sensação de impotência e de vulnerabilidade, a percepção da própria solidão aumenta na mesma proporção. Diante da presença cada vez mais invasiva do mercado e sem um coletivo que ajude a encontrar um sentido diferente para a rotina diária, o cansaço e o estresse abrem a porta dos distúrbios psíquicos. Oriundo do embate entre o processo de afirmação individual, a solidão, os sonhos de consumo e os efeitos da servidão voluntária, à qual o sujeito se entrega por ver nela uma etapa necessária de sua realização, o adoecimento passa a ser a consequência mais óbvia e um convite à reflexão sobre a própria vida. Mas para o “EU” construído na forma que descrevemos acima, a condição de “doente” torna-se sinônimo de “me deixe em paz”, “não me cobre”, “você não vê que já estou pra baixo?”. Além de manter a visão acrítica em relação à realidade que o fez adoecer, o indivíduo acredita que sua nova situação se deve a uma fragilidade desconhecida, a um deslize pelo qual o “EU” acredita ter cedido às pressões do ambiente por falta de estrutura pessoal diante do que, no seu entender, não passaria de algo natural, próprio da vida moderna.
Longe de interpretar o sofrimento como convite a abrir o campo de visão do sujeito diante do mundo externo, os eventos adversos começam a ser recebidos como fonte de trauma num leque cada vez maior de experiências e situações que antes não passariam de simples dificuldades. Diante de tudo o que fere sua sensibilidade e auto-estima, o indivíduo se vê na clara impossibilidade de se afirmar como AUTOR da vida coletiva na qual está inserido. Na medida em que eventos banais são definidos como traumatizantes pelo sujeito, aumentam nele a sensação de impotência. A idéia de trauma, ou seja, de ser dominado por uma força que aniquila e impede de agir, torna-se chave de interpretação das marcas deixadas no sujeito pelas adversidades e alimenta no imaginário coletivo uma sensação de profundo fatalismo frente a uma realidade imprevisível e violenta em seus efeitos sobre as emoções e os sentimentos. Aos poucos, este conjunto de percepções reafirma a posição de potencial fragilidade do indivíduo que passa a justificar sua incapacidade de reagir aos golpes das adversidades. Na verdade, o que o “EU” não consegue perceber é que suas próprias estratégias de reação e contra-ataque foram sendo corroídas e colocadas em cheque pela sensação de vulnerabilidade que tem de si mesmo e que tendem cada vez mais a imobilizá-lo diante do que ganha progressivamente a forma de uma realidade intransponível. Ao atingir este ponto na percepção da própria fragilidade a idéia de ser “AUTOR” da vida coletiva não tem a menor chance de se sustentar. A possibilidade de fazer uma besteira cresce na mesma proporção em que o sujeito vê a vida escorrer por entre os dedos e, a esta altura, é bastante comum encontrarmos expressões que absolvem o próprio indivíduo das responsabilidades que ele tem nos acontecimentos em que está envolvido. Desse jeito, ninguém é pecador, mas todos são vítimas de um mundo frente ao qual já abdicaram de qualquer possibilidade de controle.
Entre as formas atuais pelas quais se reafirma a relação entre a vulnerabilidade individual e a impossibilidade de ação positiva do sujeito encontramos a idéia de “situação de risco” que cristaliza na linguagem do dia-a-dia a sensação de que o sujeito está permanentemente na corda bamba. Situação de risco é diferente de “correr um risco”. A segunda formulação parte do pressuposto de que o sujeito pode, sim, fazer escolhas e decidir experimentar o desconhecido, nadar contra a correnteza e desvendar o que permanece oculto aos olhos dos demais. Trata-se, portanto de um sujeito ativo que, com suas ações, busca obter resultados positivos para si mesmo e mudar as circunstâncias. Por sua vez, a “situação de risco” inverte a relação entre o mundo e a experiência, entregando à pessoa um papel passivo e dependente que só se torna ativo no sentido da defesa e da proteção para reduzir sua vulnerabilidade. Situação de risco não diz respeito ao que você faz, mas sim ao que você é: vítima das circunstâncias. É um atestado de impotência, uma objetivação da vulnerabilidade individual. Na medida em que a expressão “situação de risco” atinge os mais variados âmbitos da vida em sociedade, acaba se tornando um atributo intrínseco do indivíduo. A idéia de que alguém se encontre numa situação de risco implica na autonomia dos perigos que estão diante do sujeito e traz uma inversão de papéis: o sujeito autônomo que age sobre o mundo transforma-se em objeto que padece da ação deste mesmo mundo, o que aniquila a dinâmica de interação sujeito-mundo (faço e me faz na mesma proporção) e a própria idéia de capacidade de transformar o mundo em volta dele. Agora, o risco não prevê a possibilidade de escolha por parte do sujeito, mas é apresentado como uma força que existe independentemente das pessoas que têm que enfrentá-lo, tem vida própria e não está sujeito à intervenção do indivíduo.
O sentimento de vulnerabilidade e as sensações que este desencadeia no “EU” determinam a gravidade da situação de risco por ele percebida. Tamanha é a fragilidade do sujeito focado em si mesmo que qualquer coisa capaz de torná-lo infeliz é definida como um ataque às suas emoções e sentimentos, e, portanto, passa a ser sistematicamente rejeitada. Vista sob este ângulo, a idéia do que é considerado inaceitável é bastante vaga e, por isso mesmo, inclui um número infinito de comportamentos. Será a sensibilidade individual a estabelecer, em cada caso, se um ato ou uma experiência são prejudiciais ao sujeito envolvido, passando assim a serem sumariamente definidos como inaceitáveis. Dada a amplitude e a subjetividade das possibilidades desta avaliação, é difícil imaginar um aspecto importante da existência que não lhe seja potencialmente arriscado e que, por temor dos possíveis danos emotivos, não acabe isolando o sujeito ou levando-o a manter relações superficiais com quem está ao seu redor.
Mas isso não é tudo. O conceito de “situação de risco” inclui a idéia de que o próprio medo constitui uma fonte de perigo. Nesta perspectiva, a avaliação do risco assume uma dimensão unilateral, psicológica, inseparável da ansiedade e da situação de impotência. A avaliação de risco sempre tem uma componente psicológica inegável. É intrinsecamente subjetiva. Caracteriza-se por uma mistura indeterminada de ciência, julgamento pessoal, fatores psicológicos, sociais, culturais, econômicos e políticos. Mas, na medida em que os sentimentos e emoções assumem um papel tão importante e direto na sua formatação, o sujeito é levado a prescindir de qualquer avaliação objetiva do que dá origem aos riscos com os quais se depara. O máximo que o indivíduo sente poder fazer é limitar os prejuízos. A preocupação que o move como ser social não é a de se envolver para construir algo “bom” para todos, mas de redobrar os cuidados para “evitar o pior” para si mesmo. O medo passa assim a dominar a experiência social porque os riscos são infinitos e estão presentes por toda parte. A relação entre o sujeito e o mundo de incertezas ao seu redor é mediada por uma consciência do risco permeada pelo medo que cresce na exata medida da percepção da própria impotência e vulnerabilidade. O ditado pelo qual a corda sempre arrebenta do lado mais fraco nunca como agora foi assumido como tão apropriado pelo sujeito que o experimenta como verdadeiro e real na medida em que se foca sobre si mesmo, longe de qualquer ação e identidade coletiva que lhe permita voltar a ser autor, resistir, enfrentar o medo e superá-lo. Em sua cegueira, o “EU” torna-se incapaz de ver os laços que o vinculam aos demais como o sangue que alimenta sua indignação e capacidade de ação no cotidiano da história. Saber-se em situação de risco, fortalece no sujeito uma atitude passiva que leva ao imobilizá-lo diante dos acontecimentos sociais. Enquanto o sujeito não se envolve na construção consciente da vida coletiva a partir de seus interesses de classe, a elite aplaude do camarote quem, ao retirar-se voluntariamente da cena social, deixa-lhe livre campo para a ação política.
O que o “EU” não percebe é que a desintegração social aumenta o estresse causado pelos eventos negativos, ao passo que um forte sentimento de comunidade, do mesmo modo que o ativismo político aumenta a capacidade/possibilidade de reagir diante dos perigos. Na medida em que o coletivo se compromete ativamente a procurar uma solução para a causa do sofrimento, este mesmo sofrimento é pensado, tratado e resolvido em um contexto social capaz de lhe dar um novo sentido e de alterar as expectativas em relação às ações individuais produzidas diante das experiências negativas.
A deixar-nos perplexos no momento em que escrevemos é a constatação da incapacidade de o indivíduo perceber, ponderar e tomar a iniciativa para enfrentar a exploração. Muitas vezes, chega-se ao contra-senso pelo qual o “EU” considera melhor arriscar a vida no trabalho em nome de um sonho de duvidosa afirmação social do que enfrentar os riscos para eliminar o que destrói sua saúde e pode lhe tirar a vida. A auto-estima é compensada até mesmo neste patamar nefasto, pois o sujeito vangloria-se de ter coragem pra trabalhar, de suar a camisa, de dar conta do recado, de não fugir da raia, enfim, de aceitar morrer aos poucos, ou de uma vez, por achar que enfrentar o que o destrói como ser humano é um sinal de fraqueza, próprio de quem não se dispõe a superar os próprios limites ou é privado de uma “mente vencedora” como a sua. Para quem vive no mundo das emoções, dizer não à exploração é um absurdo e perder o emprego se torna bem mais vergonhoso, doloroso, arriscado e cruel do que perder a própria saúde e a própria vida.
Se você acha que estamos exagerando não cores, talvez isso se deve à dificuldade de perceber o tamanho do estrago que está sendo produzido na classe trabalhadora. De acordo com um levantamento realizado pela Associação Internacional do Controle do Estresse (ISMA, pela sigla em inglês), o Brasil é o segundo país do mundo a apresentar níveis altíssimos de estresse. Pelo menos três em cada dez trabalhadores sofrem de esgotamento mental e físico intenso causado por pressões no ambiente profissional (a chamada síndrome de Burnout)[2]. Bastaria esse número para percebermos que não estamos mais diante de casos isolados, mas sim de uma epidemia que amplia seu raio de ação graças ao envolvimento lento e silencioso do sujeito nas malhas de uma busca incessante de uma auto-realização que o isola dos demais, anestesia seu sentimento de indignação e o leva a uma servidão voluntária que o destrói na exata medida em que o faz acreditar em suas promessas de sucesso e ascensão social.
Chegamos ao fim. Não sabemos qual é o gosto que estas linhas deixaram na sua boca. Seria muito bom se agora você nos enviasse suas impressões, críticas, observações ou comentários através do e-mail [email protected] As marcas deixadas na sua maneira de ver a realidade que esboçamos irão ajudar a direcionar melhor os estudos e as pesquisas em andamento.
Nota:
[2] Dados publicados em BITTENCOURT, Fátima. “Estresse: o mal do século”, em Psique, Ano VI, Nº 63, Ed. Escala, São Paulo, março de 2011.
Ilustrações de Eeva-Liisa Isomaa
Prezados,
Tenho acompanhado desde o primeiro artigo e o gosto que esta coletânia de artigos deixou foi de uma resposta a muitos questionamentos e de perguntas a muitas respostas que eu julgava ter. Trabalho com empreendimentos econômicos solidários e outras formas alternativas de trabalho e renda e tenho acomapanhado as dificuldades que estas formas alternativas tem tido para enfrentar essa tão grande e poderosa ideologia do individualismo, da submissão passiva e silenciosa dos excluídos, criada pelo capitalismo.
A meu ver, em sua nova configuração, este capitalismo tem sido ainda mais avassalador e tem gerado exatamente este sentimento de impotência e passividade em todos. E isso é o que me assusta.
Abraço e muito obrigada por nos brindar com esta coletânia.
Ednalva