A aceitação do mito do equilíbrio natural corresponde ao triunfo absoluto da tradição. Por João Bernardo

Desde há mais de um século que a extrema-esquerda prognostica com uma insistente regularidade a crise do capitalismo, e quanto mais revolucionários se pretendem esses profetas, tanto mais anunciam que se trata da crise definitiva e derradeira. Apesar disso o capital tem-se acumulado e concentrado, a economia tem crescido e o sistema tem-se reforçado e desenvolvido, o que não impede as habituais previsões de se repetirem. Mas estes erros de óptica não se devem apenas ao facto de a generalidade dos revolucionários tomar os desejos por realidades e construir as estratégias em cima de sonhos. Deve-se também a uma instabilidade inerente ao capitalismo.

crise-2O capitalismo é o único modo de produção a exigir a instabilidade, quando todos os sistemas económicos anteriores procuraram garantir que as suas condições de funcionamento se conservassem inalteradas. Os antigos sistemas tendiam a reproduzir a mesma profissão nas mesmas famílias e os mesmos tipos de produção nos mesmos lugares, mas o capitalismo alterou decisivamente este panorama e instituiu como regra a mobilidade da força de trabalho e a mutabilidade dos tipos de produção. Por isso o capitalismo não pode sobreviver nem desenvolver-se sem permanentes crises sectoriais e regionais, sem a ininterrupta adopção de novas técnicas e novos sistemas organizativos, sem que estejam sempre a ser lançadas no desemprego multidões de trabalhadores enquanto outras são absorvidas por novos ramos de actividade, sem a contínua deslocação de volumes muito consideráveis de capital e a migração de enormes vagas humanas, sem uma destruição que é sempre acompanhada pela construção.

A instabilidade, em vez de indicar qualquer crise geral do capitalismo, é, pelo contrário, um sintoma da sua vitalidade. Neste sistema a instabilidade não implica por si só um desequilíbrio, porque o equilíbrio pode restabelecer-se no tempo ou no espaço, quero dizer, um desequilíbrio pode ser compensado posteriormente ou noutro lugar por um desequilíbrio em sentido contrário. É por isso que erram os profetas apressados, ao confundirem instabilidade com crise.

Aquela confusão, porém, não é desprovida de base social, porque um modo de produção que, para assegurar a vitalidade dos seus fundamentos, não pára de pôr em causa as suas formas episódicas e de substituí-las por outras parece correr um risco grave. Será que os explorados, educados a admitir a mutabilidade de todos os meios económicos e de todas as condições de existência, acabarão afinal por conceber a precariedade do próprio regime de exploração? E assim, ao mesmo tempo que uma corrente ideológica proclama os valores do progresso e anuncia que a instabilidade faz parte das necessidades da vida, outra corrente insiste na necessidade de dotar a sociedade de uma âncora conservadora. As ideologias capitalistas têm oscilado entre estas duas perspectivas e, na generalidade dos casos, combinam-nas de formas variadas. Foi neste quadro que surgiu o mito da natureza.

camponeses-8A ideia de que a sociedade industrial rompeu o equilíbrio da natureza baseia-se na suposição de que este equilíbrio tivesse alguma vez existido. Os ecologistas, que conquistaram uma larguíssima expressão pública e conseguiram um surpreendente poder de intervenção na sociedade contemporânea, admitem implicitamente, quando não o fazem explicitamente, um axioma fundamental — o mito do equilíbrio natural e da natureza como padrão perante o qual devem avaliar-se as instabilidades económicas. A tal ponto que as contradições sociais são sistematicamente apresentadas como contradições entre a sociedade e a natureza, ficando deste modo escamoteados o processo de exploração e as suas consequências. Mas atribuir à natureza um estado originário de equilíbrio e remeter para ela os postulados genéricos de todos os demais equilíbrios é procurar aí a justificação de ilusórias harmonias sociais e, portanto, é alienar da sociedade os seus modos de funcionamento. A naturalização constitui a forma suprema de reificação. A partir do momento em que um dado padrão de ordem é apresentado como natural ele torna-se eterno e indiscutível. A aceitação do mito do equilíbrio natural corresponde ao triunfo absoluto da tradição.

Isto não seria de estranhar em ideologias conotadas clara e exclusivamente com a ala mais retrógrada do capitalismo. Mas é perturbante verificar que a extrema-esquerda engoliu com isco, anzol e cana de pesca o mito da natureza — e esta é uma situação nova. Até há poucas décadas atrás a esquerda caracterizava-se pela ânsia de acelerar o futuro e os amantes de relíquias encontravam-se apenas entre os conservadores. Hoje a situação inverteu-se e é da extrema-esquerda que mais vozes se erguem apelando para os factores históricos de estabilidade, enquanto a direita, mesmo quando se pretende conservadora, não tem o mínimo receio de abrir caminho a inovações que liquidam os vestígios do passado. Aliás, por que motivo a antiguidade de uma cultura ou de um comportamento colectivo é apresentada como critério em abono da necessidade da sua sobrevivência, quando se podia com mais lógica argumentar que para algo que já dura há muito tempo teria chegado a altura de se extinguir?

Um dos artifícios do multiculturalismo é o de se insurgir contra a destruição de culturas, línguas e modos de vida arcaicos, como se eles tivessem existido desde sempre e não tivessem resultado, por sua vez, da destruição de culturas e línguas anteriores. Os multiculturalistas servem assim um duplo objectivo. Em primeiro lugar, num amplo plano estratégico, procuram manter a população pobre fragmentada numa multiplicidade de minigrupos, precisamente quando o capital, por seu lado, se encontra globalizado mundialmente. Este é um importante factor de fortalecimento do capital aquando dos confrontos sociais. Em segundo lugar, e no âmbito mais reduzido dos seus interesses profissionais, os multiculturalistas, todos eles de extracção universitária, procuram conservar em vida as suas cobaias humanas, que lhes servem para fazer as teses e artigos sobre as culturas e línguas em que se especializaram.

camponeses-4A natureza é um mito porque ela não existe senão como objecto da acção humana. Se eu fosse definir os limites da natureza, usaria termos equivalentes aos da coisa em si de Kant, ou seja, daquilo que, mantendo-se exterior à acção humana, não pode ser conhecido, porque o homem só pensa e conhece a sua própria actuação. Já desde os primórdios da humanidade esse mito foi desvendado. Os arqueólogos que têm tentado reconstituir a base das concepções vigentes no neolítico e os pesquisadores que se dedicam à análise estrutural das narrações mitológicas consideram que um dos elementos fundadores das ideologias arcaicas era a oposição entre a cultura humana e a natureza, entre o mundo civilizado e o espaço selvagem. Aristóteles inseriu-se numa longuíssima linhagem e, ao definir o homem como um animal social, estava realmente a defini-lo como um ser antinatural. O facto de Aristóteles, para estudar o fenómeno da mudança, ter recorrido a analogias extraídas da actividade artística e artesanal indica que considerava a natureza como objecto de intervenção. Enquanto princípio de mudança, a natureza, tal como ele a entendia, opunha-se por um lado ao acaso e por outro opunha-se também ao ofício do artesão e do artista. Reciprocamente, os artistas e os artesãos, embora se servissem dos mesmos materiais que a natureza, transmutavam-nos em formas diferentes; por isso, em vez de imitarem a natureza, entravam em concorrência com ela. Nesta perspectiva, no século II antes da nossa era, numa época em que as técnicas haviam começado a adquirir outra importância, o filósofo estóico Panætius de Rodes defendeu que a actividade manual dos seres humanos é capaz de completar a natureza, criando como que uma nova natureza. E nos alvores da época em que a ciência se tornou experimental, aquele clássico metodológico que é o Novum Organum de Bacon anunciou que «a técnica é o homem acrescentado à natureza», o que implicava, como observou Jean-François Revel, arguto comentador de questões filosóficas, «que a natureza sem a técnica humana não seria a natureza». A todos os desequilíbrios inerentes à natureza devemos somar mais um, o da acção social, que, sendo sempre contraditória, só pode entender-se como um desequilíbrio determinante de desequilíbrios.

carvaoAs sucessivas tecnologias não se limitaram a instaurar desequilíbrios. Todas elas, enquanto materialização de dados sistemas de relacionamento social, surgiram para resolver desequilíbrios mais ou menos agudos resultantes da apropriação social da natureza, inaugurando assim formas diferentes de desequilíbrio. Não estou a escrever aqui uma história da tecnologia em vários volumes, por isso cabe um único exemplo, ilustrativo dos demais, sem excepção. O recurso ao carvão mineral no começo da indústria capitalista, na passagem do século XVIII para o século XIX, uma fonte de energia muito poluente e a que hoje se atribuem tão grandes culpas, surgiu para resolver um enorme desequilíbrio provocado durante o regime senhorial, quando a madeira era o material empregue em praticamente todas as construções e todos os tipos de fabrico. Este uso extensivo da madeira como matéria-prima provocou uma retracção tão acentuada dos bosques e das florestas que na Grã-Bretanha a lenha teve de ser importada de países distantes, atingindo preços incomportáveis. O uso do carvão mineral veio solucionar a crise suscitada pelo uso da madeira na sociedade europeia pré-capitalista.

A indústria moderna limitou-se inicialmente a resolver os desequilíbrios insustentáveis que haviam resultado das tecnologias e das formas de exploração que a precederam, e a partir de então tem encontrado resposta aos desequilíbrios que ela própria criou, avançando para outras modalidades contraditórias e, por isso, desequilibradas. Nem sequer se deve julgar que a sociedade industrial atingiu uma potencialidade destruidora superior, em termos relativos. Bem pelo contrário, pode definir-se como regra que quanto mais rudimentares forem os meios técnicos empregues por uma sociedade tanto mais vastas serão as repercussões da sua acção sobre a natureza, por comparação com os resultados obtidos no plano da produção material. Não faltam os estudos de sistemas económicos tanto de povos pré-históricos como de povos contemporâneos utilizando tecnologias arcaicas que confirmam esta regra. Limito-me a dois exemplos. Os grupos sociais nómadas que usavam instrumentos de pedra lascada não os voltavam a afiar quando o gume estava embotado, mas punham-nos de lado e talhavam outros instrumentos. Em prazos muitíssimo breves, agrupamentos humanos diminutos conseguiam esgotar completamente pedreiras consideráveis, estabelecendo-se então junto a uma nova fonte de abastecimento, até que a tivessem consumido também, e assim sucessivamente. Como o mesmo sistema era aplicado às outras matérias-primas e aos alimentos, em pouco tempo se provocava a depredação de enormes territórios. Uma das técnicas que os pequenos grupos itinerantes de colectores usavam para caçar animais consistia em lançar fogo a uma floresta ou uma savana quando o vento fazia as chamas correr em direcção a um precipício, levando os animais a despenhar-se para fugir às chamas. Ficava assim queimada uma enorme área e matava-se um número de animais superior às capacidades de consumo, porque, não sendo ainda conhecidos métodos de conservação a longo prazo, a carne só era comida enquanto não apodrecia. Quando partia para outro lugar, esse pequeno grupo humano deixava atrás de si uma destruição incomparavelmente superior aos benefícios que retirara da caçada. Podia somar interminavelmente exemplos, todos eles demonstrativos de uma regra única, a de que, proporcionalmente ao nível de produção pretendido, as tecnologias mais toscas são as que ocasionam efeitos secundários mais consideráveis e que perturbam áreas mais vastas.

a-1O mito do equilíbrio natural é inseparável do mito do bom selvagem, do ser humano primitivo em harmonia com o meio circundante. A própria concepção moderna de selvagem, elaborada por uma sociedade europeia possuidora de algumas técnicas de produção bastante avançadas, resultou de uma distorção da capacidade de observação dos navegantes e colonizadores, que não conseguiam ver a considerável sofisticação daquela humanidade que abordavam pela primeira vez. Procurando nos outros apenas aquilo que eles mesmos possuíam, os europeus chegaram, evidentemente, à conclusão de que os outros nada tinham, ou muito pouco, quando na realidade essas sociedades, embora mantivessem em formas simples certos âmbitos de actividade que na Europa tinham atingido uma grande complexidade, haviam desenvolvido a complexidade de outros âmbitos, que não ultrapassavam entre os europeus um estado rudimentar. Difundiu-se assim, para o bem e para o mal, a noção da existência de selvagens em comunhão com a natureza, em vez de se entender que essas pessoas actuavam também sobre a natureza, destruíam-na e recriavam-na em moldes sem dúvida diferentes dos europeus, mas nem por isso menos carregados de consequências.

camponeses-2O mito do bom selvagem, continuado por antropólogos que curiosamente, no panorama político actual, gostam de se situar na esquerda, tem reforçado as implicações socialmente conservadoras do mito da natureza. Se a terra, mãe comum, fosse a fonte inesgotável de uma tradição perene e imutável, então os homens e as mulheres pretensamente desprovidos de técnica seriam os actores de uma vida exemplar. O tipo de racismo surgido nos países germânicos com o romantismo, na passagem do século XVIII para o século XIX, introduziu uma alteração neste mito, entronizando como modelo da tradição não a gente de outras peles e outros narizes, mas aquela parte da população europeia que fora relegada para o emprego de instrumentos arcaicos, ou seja, os camponeses. A noite dos tempos é a ignorância dos historiadores e a imutabilidade das técnicas arcaicas é a ignorância dos comentadores triviais acerca das mutações operadas. Quem procura na história uma estabilidade que jamais existiu está a adulterá-la para servir as conveniências políticas do presente. Pouco importa hoje aos entusiastas do arcaísmo camponês que desde as pesquisas de Lefebvre des Noëttes e depois, noutra perspectiva, de Marc Bloch e dos seus seguidores, bem como de Haudricourt, se saiba que as técnicas rurais, longe de se terem mantido imutáveis, haviam sofrido numerosas adaptações e mesmo, por vezes, remodelações muitíssimo profundas e relativamente rápidas, destinadas a resolver desequilíbrios provocados pelas técnicas anteriores e inaugurando assim desequilíbrios novos. Numa obra dedicada ao regime senhorial europeu entre o século V e o século XV (ver as Referências no final deste artigo) analisei detalhadamente as transformações operadas nas técnicas agrárias e o leitor muito interessado encontrará aí abundantíssima bibliografia. Mas servirá para alguma coisa? É de mitos que se trata, e estes são tanto mais sólidos quanto mais cegamente resistem às demonstrações que os invalidam. Os camponeses europeus foram considerados pelo romantismo como estando imemorialmente apegados a técnicas que, por comparação com as velozes mutações difundidas na indústria, eram apresentadas como neutras, efectivamente não-técnicas.

Ilustrativo deste percurso ideológico é o caso de Ernst Moritz Arndt, um dos expoentes do racismo e nacionalismo romântico de conotação linguística, que derivou da apologia do campesinato para a apologia da terra. A natureza era, para Arndt, uma totalidade orgânica, em que plantas, pedras e seres humanos estavam inter-relacionados, sem que uns fossem mais importantes do que os outros. E assim o solo e a raça eram apresentados como partes de um mesmo conjunto.

camponeses-9No círculo de intelectuais formado pelo romantismo germânico tornou-se um lugar-comum a ideia de que as florestas haviam moldado a maneira de pensar teutónica e, portanto, haviam condicionado as características cerebrais da raça, e Martin Bernal, historiador que se deteve nestas questões, referiu «a insistente propensão dos românticos para deduzirem o carácter de um povo a partir das paisagens da sua terra natal». Note-se que eles não estavam a escolher o factor geográfico em detrimento do factor racial, mas a uni-los ambos num conjunto indiferenciado, porque a visão de dados panoramas naturais suscitaria uma dada linguagem, e uma dada linguagem corresponderia a uma dada estrutura cerebral. «Mal começava o século XIX», observou Peter Staudenmaier, «e já estava solidamente estabelecida a relação mortífera entre o amor à terra e o nacionalismo racista militante». Criou-se assim o mito da harmonia do camponês com a natureza ou, em termos mais drásticos, da própria integração do camponês na natureza, enquanto elemento natural. Cultivador de raízes, ele mesmo seria uma raiz, fundamente implantada na terra mãe.

Os ecologistas actuais, ao postularem o equilíbrio natural e considerarem a indústria demoníaca por haver introduzido o desequilíbrio, espartilham-se — possivelmente sem o saber — com um par de conceitos que estruturou a dialéctica da história na obra principal de Spengler, um dos monumentos do pensamento de extrema-direita nas primeiras décadas do século passado — a cultura, que corresponderia a uma essência orgânica e se definiria pela coesão interna, e a civilização, que seria meramente exterior e adventícia, não ultrapassando o plano técnico. Tratava-se para Spengler da oposição entre a vida e o artifício, entre o orgânico e o mecânico. «Cultura e civilização, isto é, o corpo vivo e a múmia de um ser animado!». Nestes termos, inevitavelmente, «a civilização representa a vitória da cidade. A civilização liberta-se da origem rural e corre para a sua própria destruição». Muito antes de se terem iniciado as lucubrações ecológicas, bastou a utilização daquele par de conceitos para que um dos clássicos do pensamento de extrema-direita chegasse à principal conclusão dos ecologistas.

Vejamos outros fios desta história.

Referências

A frase de Francis Bacon e o comentário de Jean-François Revel encontram-se em Jean-François Revel, Histoire de la Philosophie Occidentale de Thalès à Kant, Paris: Nil, 1994, pág. 357. A obra minha referida é Poder e Dinheiro. Do Poder Pessoal ao Estado Impessoal no Regime Senhorial, Séculos V-XV,. 3 vols., Porto: Afrontamento, 1995, 1997, 2002. O leitor deverá consultar o verbete Técnicas agrárias no Índice de Assuntos, no final de cada volume. A observação de Martin Bernal encontra-se na sua obra Black Athena. The Afroasiatic Roots of Classical Civilization, vol. I: The Fabrication of Ancient Greece 1785-1985, New Brunswick, Nova Jersey: Rutgers University Press, 1987, pág. 334. A passagem de Peter Staudenmaier está em Janet Biehl e Peter Staudenmaier, Ecofascism. Lessons from the German Experience, Edimburgo e San Francisco: AK Press, 1995, pág. 6. As citações de Oswald Spengler são retiradas da edição espanhola do seu livro, La Decadencia de Occidente. Bosquejo de una Morfología de la Historia Universal, Madrid: Espasa-Calpe, 1942-1944, vol. II, pág. 205, e vol. III, pág. 150.

Esta série reúne os seguintes artigos:
1) a mitificação do camponês
2) a agricultura familiar no fascismo
3) a agricultura familiar no nazismo

40 COMENTÁRIOS

  1. João Bernardo,

    tenho a impressão que além do “mito da natureza”, há outro mito colado neste, que seria o de “mito da comunidade”, também apreciado por diversos segmentos da esquerda.

    um conjunto comum, integrado e orgânico, um quase orgão só e homogêneo.

    a comunidade seria a extensão do “camponês”?

  2. Neto,
    O mito da comunidade existiu sem dúvida no romantismo alemão, que desenvolveu a noção da sociedade como organismo, contra a noção jacobina da sociedade como soma de pessoas. É interessante que a noção orgânica da sociedade, nascida num meio politicamente conservador e que rapidamente gerou o nacionalismo germânico antinapoleónico, tivesse poucas décadas depois dado origem, com Marx e Engels, à noção orgânica de classes sociais. Karl Mannheim escreveu um muito bom livro a este respeito: Conservatism. A Contribution to the Sociology of Knowledge, Londres e Nova Iorque: Routledge & Kegan Paul, 1986. No século XX essa noção de organismo social foi mantida pelos marxistas, desde que o social fosse dividido em classes, ou seja, as classes foram entendidas como organismos sociais; e essa noção foi renovada pelos fascistas para a entidade estatal como um todo, uma sociedade entendida como um organismo total, onde não havia lugar para dissidências ou divergências. Evitam-se muitas confusões se virmos que o neoliberalismo actual está, assim, nos antípodas do fascismo, pois considera que não existe sociedade e que tudo se resume a uma soma de indivíduos que, enquanto agentes económicos, são unidos pelo mercado. Nesta perspectiva o neoliberalismo situa-se na mais pura tradição jacobina.
    Nisto tudo, onde fica o mito da natureza? No romantismo alemão o mito da natureza e o mito da comunidade articularam-se num quadro ideológico único, mas não creio que esta conjugação seja obrigatória nem para a direita nem para a esquerda.
    Não é obrigatória, mas existe em vários casos. No Brasil, por exemplo, o mito da natureza e a mitificação do camponês, prosseguidos pelos agro-ecológicos e pelos movimentos permeados pela agro-ecologia, parecem inseparáveis do mito da comunidade, como se os camponeses e a terra, fundidos numa entidade única, fossem por si só comunitários, quero dizer, como se a comunidade fosse natural, fizesse parte da natureza. As consequências práticas deste tipo de mitos podem ser estudadas no Cambodja de Pol Pot e dos seus Khmers Vermelhos.

  3. Che, parabéns pelo texto. Aguardo ansioso os dois próximos.

    Lembrei de uma citação, até bem conhecida, enquanto o lia, que me parece muito boa por duas razões, a primeira é de que trás uma relação inerente entre o homem e a natureza, não recaindo em sua separação e estranhamento (que leva, ao extremo, a entender a natureza como um palco de ações do homem, o que discordo em sentido forte) e que ao mesmo tempo tem imbuída um princípio de movimento, de processos complementares, de descobrimentos e novos entendimentos.

    Enfim, é ela: “O homem é a natureza tomando consciência de si própria.” – Reclus

    Abraço

  4. Meio complicado esse texto… Ele desenvolve uma linha de argumentação (cara a certos marxismos) que deslegitima qualquer preocupação com o MA como preocupação do capital. Ele parte de uma premissa (razoável) de que a natureza não existe a não ser enquanto interação entre ser humano e seu meio, para a partir daí “legitimar” as transformações operadas pelo capital no meio como “melhores” que as transformações pré-capitalistas (não estou citando-o textualmente); inclusive, para chegar aí ele parte de um punhado de exemplos pra fazer uma generalização que eles não autorizam – pode ser que o livro dele que ele cita desenvolva mais exemplos que o autorizem em relação à realidade europeia, não o li, confesso.
    E esse lance de “modos de vida arcaicos” é difícil de engolir também, pra dizer o mínimo. É uma visão progressista (no pior sentido do termo), novamente, muito cara a certos marxismos.

  5. Transferindo o debate que começamos (eu e André) pelo Facebook para cá…

    O marxismo é iluminista, isso é fato. E sendo iluminista, é também apegado à ideia de progresso. Entretanto, o oposto disso é ainda pior, e no movimento dialético (teoria X prática) de todos nós anticapitalistas não vi nada que consiga apontar para a superação. Os pós-modernistas são o que mais têm coragem se assumir uma postura anti-iluminista e com isso jogam inúmeros povos ao isolamento e à miséria em troca da defesa do multiculturalismo. Isso só serve para promoção interna dentro do meio acadêmico, pois na prática esses mesmos povos defendidos, em sua maioria, querem as garantias dos direitos humanos e os benefícios do desenvolvimento (como a medicina, a eletrônica, etc.). Ou seja: a mais pura modernidade (e não “pós” nem “pré”). O capitalismo (e a modernidade) é sim melhor que qualquer modo de produção anterior, e isso era muito claro para qualquer anti-capitalista até então, porque se não fosse assim você e muitos outros já morariam em uma comunidade que se propusera a reproduzir este modo de produção melhor que o capitalismo. Só o capitalismo é global, os outros modos nunca o foram, o que dá a entender que é possível reproduzir estas experiências em espaços isolados. O que ninguém, com toda razão, faz. Isso não significa defender a forma atual de desenvolvimento das forças produtivas — porque ela é definida pelas relações de produção conflitantes –, muito menos defender um retrocesso, como querem os ecológicos e os multiculturalistas. Significa que temos que partir daqui pra frente, não para trás.

  6. 1) Toda antipatia para com a pasteurização cultural é, necessariamente, sinônimo de “multiculturalismo” e “pós-modernismo”? Ou, perguntando o mesmo de outra maneira: ao reconhecer os limites e as armadilhas do “pós-modernismo” e do “culturalismo”, tenho, necessariamente, de saudar o papel civilizatório da ocidentalização do mundo, do “desenvolvimento econômico” (capitalista…) etc.? (Ou seja: tenho de perpetuar o padrão analítico de Marx a propósito das “consequências da dominação britânica na Índia”?…)

    2) Toda crítica radical ao caráter antiecológico do capitalismo é, necessariamente, prisioneira de ilusões a propósito de um “equilíbrio natural”?

    3) Toda análise crítica dos problemas ecológicos e sociais associados ao “desenvolvimento econômico” e à urbanização capitalistas é, necessariamente, “urbanófoba”, romântica e idealizadora de sociedades e/ou modos de vida não urbanos e pré-industriais?

    Minha resposta é NÃO para todas essas questões. Por isso, mesmo compartilhando largamente as objeções de João Bernardo ao “multiculturalismo”, ao “pós-modernismo” e ao tipo usual de “ambientalismo” contemporâneo – e, em meio a tantas imbecilidades e imposturas que lemos diariamente, a voz dissonante de João é extremamente útil -, creio que o padrão explicativo contido no texto simplifica demasiadamente o quadro. As tolices, idealizações, conexões e cumplicidades que João aponta são reais; contudo, ao nos restringirmos a elas, deixamos de lado autores e correntes que, mesmo quando minoritários (mas também não é, em nossos tempos “pós-modernos”, minoritária a reflexão de João?), são dignos de nota (intelectual e politicamente), como Murray Bookchin e sua “ecologia social”, por exemplo.

  7. Caro Marcelo,
    Neste artigo eu digo somente aquilo que lá escrevi, não menos, mas também não mais. A chave deste artigo parece-me ser a afirmação seguinte: «quanto mais rudimentares forem os meios técnicos empregues por uma sociedade tanto mais vastas serão as repercussões da sua acção sobre a natureza, por comparação com os resultados obtidos no plano da produção material». Infelizmente a generalidade dos ecológicos é profundamente ignorante em tudo o que diz respeito à história das técnicas. Quanto a Murray Bookchin, faço notar que citei o excelente livro de Janet Biehl e Peter Staudenmaier. Está indicado nas referências. Mas os dois artigos seguintes mostrarão onde quero chegar, certamente suscitando ainda mais indignação por parte dos leitores.

  8. Cara,

    minha critica seria melhor lhe expor ao vivo…

    mas penso que faltou destacar o quanto a ideia de comunismo de Marx(nas raras vezes q ele se aventura a esboçar…) é romantina, naturalista, uma espécie de retorno (afinal revolução vem disso..) a uma harmonia natural…

    não me lembro a passagem exata…mas vc deve se lembrar: “[…} de manhã sou caçador, de tarde poeta, de noite jardineiro…” algo desse naipe…

    enfim…é o stirner deslocado para o comunismo não é? por paradoxal q seja, é o individualismo integral…o fim do estado, o anarquismo…

    ora, nesse esquema, a economia simplesmente cumpre a função de nos libertar das necessidades e emnacipar o indivíduo de qualquer coerção…

    pode parecer ingênuo hj em dia, mas acho bom lembrar q é esse o horizonte de Marx…e q todo seu estudo do capital (capitalismo é um termo inexistente até o fim do XIX…) é com vistas a radicalizar o liberalismo…

    esquerdistas querem me bater qdo falo isso…mas tu sabe: quem inventou o esquema “estrutura-superestrura”? os iluministas liberais escoceses! (teoria dos 4 estágios…)

    enfim seu joão bernardo, fico por aqui por ora…qqq dia nos trombamos prá conversar sobre isso molhando a palavra numa boa cerveja…

    abraço

    PS: já leu ou conhece Luiz Alfredo Galvão?

  9. Prezado João:

    Espero que você não tenha visto, pelo menos nas minhas palavras, indignação, pois indignação não houve. O que houve foi a tentativa de, camaradamente, pensar junto (dentro, inclusive, do espírito do excelente texto “Pensar sobre as lutas”, que o Passa Palavra publicou há alguns dias). Como conheço e aprecio os seus trabalhos há muitos anos, acredito que muito dificilmente você suscitaria uma reação de “indignação” da minha parte. Na verdade, suas reflexões e provocações – a começar por aquela a respeito da classe dos “gestores” – foram, isso sim, parte essencial da minha formação. Contudo, que monótono e aborrecido seria (creio que até para você) se concordássemos em tudo e o tempo todo, não é verdade?

  10. Ricardo,
    Não, não conheço Luiz Alfredo Galvão, mas não me vou esquecer da sua indicação.
    Marcelo,
    De modo nenhum estava a pensar em você nem no seu comentário. Aliás, eu disse que seriam os dois artigos seguintes a suscitar «ainda mais indignação por parte dos leitores». Espere pela próxima semana e depois pela outra, e vai ver o que me hão-de chamar…

  11. Ante uma sociedade que se destrói e se recria incessantemente surge o mito de uma natureza plena e imutável a ser preservada, quando na verdade não existe natureza alguma. Dizer que existe natureza é do mesmo plano psicológico que afirmar a existência de deus.

    Trata-se de criação de absolutos, espécie de âncoras existenciais. Ante uma existência que se cria, se destrói e se recria as pessoas vão se apegando a esses absolutos inventados, para terem a ideia de algo permanente. Se não é deus, é a natureza. Mas levei o seu raciocínio mais longe e ví que poderia ser outras coisas mais: a condição feminina, o ser homem ou ser mulher, que hoje são anunciados em certos setores como uma espécie de ligação a algo eterno e para além do campo humano. A raça em outras épocas, a língua, a comunidade, ou o próprio humano, quando se apresenta a condição humana de forma deificada, a animalidade.

    Hoje natureza, condição feminina, animais são basicamente apresentados como entidades de base religiosa.

  12. Achei muito bacana o texto, muito elucidativo para muitas coisas, mas não vou engoli-lo todo, porque há nebulosidades

    Por exemplo: de fato, ténicas rudimentares podem ser mais devastadores, só que resta nos perguntarmos o que é “técnicas rudimentares”. Bernardo deu alguns exemplos primitivos, parece razoável, (embora eu duvide que a população primeva conseguisse devastar algo em pequeno numero de pessoas, sei la, sinto que acreditar naqueles exemplos me precipitaria)

    Eu acredito que técnicas rudimentares não se deve encaixar apenas em modelos de produção do PASSADO, mas tbm em técnicas de produção do FUTURO. Hoje em dia temos um potencial de limpeza tecnologica do planeta muito grande, mas tbm temos uma produção quantitativa de obsoletos megaloexagerada… posso considerar isso como rudimentar, mesmo com as técnicas de ponta?

    A questão é: qual modelo de produção nos interessa realmente? O atual em “tecnologia de ponta” está repleta de desastres ecologicos assim como humanos. E SABEMOS QUE MUITAS VEZES PODERIA-SE USAR TÉCNICAS MAIS SEGURAS, MAIS DESENVOLVIDAS E QUE SÓ NÃO SÃO POR CAUSA DA IMPOSSBILIDADE TRAVADA PELO CAPITAL.

    Penso em algo do tipo: PRECISAMOS ENCONTRAR A TECNOLOGIA QUE NÃO SE SUBMETA AO CAPITAL, TENDO ELA UM ALTO DESENVOLVIMENTO OU SENDO TRADICIONAL, O QUE IMPORTA É ESTA NOS SERVIR E NÃO A PRODUÇÃO EM SI – MAIS PRECISAMENTE;O CAPITAL

  13. Eu vejo que todo o discurso ecológico está muito mais relacionado com a luta por poder dos ecocratas ou aspirantes a ecocratas que qualquer outra coisa. É mais gente buscando uma fundamentação “científica” para controlar nossas vidas.

    O autor de Crime e Castigo criticava os socialistas da época de serem somente capazes de amar uma humanidade abstrata mas incapazes de amar alguém em particular, aos semelhantes. Tal raciocínio pode ser facilmente aplicado aos ecocratas que são capazes de amar o planeta ou a natureza, como queiram, mas incapazes de amar o próximo ou suas empregadas domésticas.

  14. O texto e seu caráter provocativo são muito bons, necessários. De fato, há muita mitificação de conceitos relacionados à natureza, ao camponês, etc, e tais mitificações possuem, como bem indica o texto, pressupostos ideológicos. Apesar de concordar com tudo isso e com o teor geral do texto, também acho as objeções do 1o comentário de Marcelo Lopes de Souza fundamentais. É necessário irmos além de conceitos pouco determinados para podermos conjugar o que interessa entre luta anti-capitalista e ecologia, sem com isso recair nos problemas já apontados pelo texto.

    Compartilho aqui um trecho de uma entrevista do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro na publicação “Rio Negro – Rio Babel” que, embora não trate diretamente deste debate, me parece que joga ideias importantes para ele, apesar de vir uma área tão passível de ser genericamente criticada como a antropologia.

    Se o ponto do texto de João Bernardo é a relação inversamente proporcional entre progresso da técnica e impacto sobre a natureza, o que em parte concordo, essa entrevista introduz mais variáveis – perspectivas – (vale dizer que não é mesma coisa que relativismo…) nessa equação. O ponto de vista em que essa relação vale inteiramente é específico e não universal e, pode-se dizer, específico de nosso progresso histórico e, portanto, dentre outras coisas, muito relacionado com onde estamos agora, o capitalismo, com tudo de necessário e contigente que o fato de estarmos nele significa.

    *

    Trechos retirados da Entrevista dada por Viveiro de Castro ( Rio Negro – Rio Babel).

    Sintonia socioambiental

    Eu diria que a sintonia dos índios com a natureza não é nem natural nem sobrenatural: antes, ela é social, isto é, mediada por formas específicas de organização sócio-política, uma vez que natureza é natureza para uma sociedade determinada, fora da qual ela se reduz a uma abstração vazia. De-socializar o saber indígena, isso é, purifica-lo em laboratório – num sentido não real, mas metafórico do termo – pasteurizá-lo , retirar as impurezas cosmológicas contidas nele para liberar a sua substância epistemológica ativa é expropriá-lo teoricamente e, penso eu, inutilizá-lo praticamente.

    Eu não consigo deixar de dizer que valorizar as culturas indígenas porque estas constituem um reservatório potencial de tecnologias úteis para o desenvolvimento sustentável da Amazônia é uma instrumentalização da nossa relação com esses povos, fruto de uma atitude utilitarista e etnocêntrica , que aprece só admitir o direito de existência dos outros se estes servirem a algo para nós – e ,portanto, enfim, é como um certo gosto amargo na boca que temos que dizer que as tecnologias indígenas são fundamentais para o desenvolvimento sustentável da Amazônia. Parece que se assim não fosse , se os índios não soubessem de nada interesante para nós, então poderíamos ‘acabar’ com todos eles porque estão atrapalhando – e tem gente que pensa exatamente isso.

    As relações com a natureza não são nunca – em se tratando de sociedades humanas – relações naturais, mas são sempre relações sociais.

    (…)

    Esse aspecto fundamentalmente social das relações entre sociedade e natureza, ao meu ver, está na origem mesma da reflexão cosmológica indígena e, enquanto tal , ele contrasta de modo notável com a concepção de natureza que é projetada pela tradição filosófica e cosmológica ocidental moderna.

    Se pudéssemos caracterizar em poucas palavras o que seria uma atitude básica de todas as culturas indígenas do continente, eu diria que as relações entre uma sociedade e os componentes de seu ambiente são pensadas e vividas como relações sociais, isto é, como relações entre pessoas.

    O saber indígena, se ele está fundado como o nosso em uma teoria instrumental das relações de causalidade, está ao mesmo tempo visceralmente associado a uma imagem de universo que é comandado por categorias diferentes das de causa e efeito: são as categorais da intenção e da agência, isto é, da vontade. É um pensamento que supõe uma experiência que a gente poderia chamar sócio-mórfica do Cosmos, tomando-o como uma grande sociedade; de todos os seres que compõe o universo como ligados a nós por relações sociais.

    Em outras palavras: aquilo que para nós divide o mundo, a saber, o mundo da física e o mundo da semântica, o mundo da natureza e o mundo da cultura, o mundo dos biólogos e o mundo dos antropólogos sociais, no caso indígena, são ontologicamente co-extensivas , não há como separar-las ; elas são epistemologicamente idênticas , não há como distinguir uma da outra. A natureza não é natural, isto é , passiva, objetiva, neutra e muda, como o é para nós; os humanos não têm monopólio da posição de agente e de sujeito.

    Nós não somos os únicos a conhecer algo que é essencialmente ignorante de si mesmo – que é como nós concebemos a natureza -, enquanto temos o dom ou a maldição – depende de como consideramos – de, ao contrário , sabermos que sabemos de alguma coisa enquanto que os animais, as plantas, as pedras não sabem de nada, e o que sabem alguma coisa não sabem que sabem- os pobres dos macacos, dos primatas superiores, que sabem alguma coisa, como admitimos, mas não sabem que sabem como nós sabemos e assim, portanto, nós somos naturalmente especiais. Esse é o ponto : no saber indígena sobre a natureza, os humanos não são o único foco da voz ativa do discurso cosmológico.

    Se eu fosse prosseguindo com esse contraste eu diria que a categoria que comanda as relações entre homem e natureza na nossa tradição moderna é a categoria da produção. Nessa tradição a produção é concebida como um ato prometeico, heróico, de subordinação da matéria inerte à intenção humana. Esse modelo talvez esteja enraizado na teologia da criação bíblica, mas foi ter seu apogeu no século XIX, tanto à esquerda quanto à direita: a idéia de que o trabalho é a essência do homem, de que viver é produzir.

    Daí se segue tudo o que vocês estão cansados de ouvir: desenvolvimento, crescimento, que o homem nasceu para produzir , nasceu para trabalhar – idéia infeliz. Nós sabemos que, de tanto produzir, nós vamos acabar ‘desproduzindo’ tudo o que está ai.

  15. Bom dia.

    Eu concordo com o questionamento do Marcelo Lopes de Souza. Acho que o João faz uma crítica correta, mas que se enquadra apenas em uma parte do movimento ecológico. Ele homogeneíza um quadro que é bem complexo. Pela minha experiência, que é bem curta, já vi muita gente que pensa exatamente como ele colocou, por exemplo: acreditam que as comunidades tradicionais devem continuar sem eletricidade, pois, para essas pessoas, talvez seja mais charmoso viajar para um lugar que não possui esse tipo de benefício. Faz-se necessário refletir em como é viver o ano inteiro sem lâmpada (LUZ), sem geladeira, sem celular, sem computador, entre outros. Esse é o tipo de corrente que acredita que a cultura não é dinâmica e que as mesmas técnicas devem ser utilizadas depois de dezenas ou centenas de anos sem que passem por uma modernização.

    Por outro lado, existe uma corrente que pensa de maneira diferente; vou dar outro exemplo pessoal: o projeto de extensão Raízes e Frutos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, acabou de ganhar um edital que propõem a viabilização de um projeto de geração de energia elétrica dentro de uma comunidade caiçara e ao mesmo tempo familiarizar a comunidade com técnicas de comunicação (internet e vídeo). Ou seja, é levar algumas técnicas da modernidade urbana para uma comunidade tradicional. Mas na hora de ensinar essas técnicas modernas tentamos nos aproximar da cultura tradicional. Um exemplo é a produção de filmes que valorizem as suas práticas tradicionais (aquelas práticas que achamos positivas), como uma oficina de cestaria ou a pesca artesanal da lula. Eu não acredito que a cultura e as técnicas tradicionais devam ser desvalorizadas e renegadas sem critério, devemos nos conscientizar de que algumas práticas são positivas e outras negativas.

    Em um comentário, o João fez críticas a agroecologia. Temos que refletir sobre isso, pois é uma crítica bem colocada e boa parte do movimento pensa exatamente dessa maneira. Mas ao mesmo tempo um dos pontos fundamentais da agroecologia é a interação entre técnicas tradicionais com técnicas modernas. É bem contraditório.

    Eu acredito que o João pecou por pegar uma característica de parte do movimento e estender a todo o movimento. Ele simplificou algo que é extremamente complexo.

    Abraços,
    Gustavo.

  16. Caro João Bernardo,

    Creio que entre os meios técnicos que você designou por rudimentares e aos atribui caráter mais mais destrutivo e os meios técnicos ditos avançados que vêm supostamente corrigir os desequilíbiros causados pelos primeiros e poupar a natureza de danos maiores subsistem algumas diferenças importantes. Em primeiro lugar, a relação que você estabelece entre eles é, aparentemente, a de sucessão cronológica, aqueles viriam antes destes e estariam fadados à superação; se a história oferece dezenas de exemplos em abono a essa tese, o presente oferece outros tantos em apoio à antítese. As duas modalidades técnicas coexistem hoje e se articulam por vezes, em certos setores, em uma só cadeia de produção. Essa premissa cronológica, evolucionista, tão frequentemente associada ao discurso pró-tecnologia e amiúde contestada, é a questão menos importante. O caso é que a substiuição tecnológica não se faz para superar desequilíbrios, mas para ampliar a escala de exploração. A agricultura é decerto o melhor exemplo disto. Essa ampliação da escala maximiza os danos da tecnologia nova a ponto de esta tornar-se infinitamente mais destrutiva que a tecnologia dita rudimentar. Se quiser uma imagem atual, convido-o a verificar os diferentes impactos ambientais causados pela presença de uma comunidade ribeirinha ou quilombola em uma floresta, mesmo que vivendo exclusivamente da extração de madeira, e os impactos acarretados pela instauração de uma monocultura. A “qualidade” da destruição, isto é, o tipo de dano causado, perde toda importância ante as ordens de grandeza em causa. Outro ponto decorrente deste: para as comunidades tradicionais, a exploração do meio ambiente está relacionada à reprodução de seu modo de existir , noutros termos, sua relação com o meio-ambiente não pode ser enquadrada nos termos da relação sujeito-objeto que consubstancia a ideia mesma de propriedade. Por outro lado, a ampliação da escala de produção propiciada por uma diferente modalidade tecnológica diz respeito antes à reprodução do capital que a à reprodução do modo de existir do capitalista que a empreende. Por fim, concordando embora com toda a parte inicial de seu texto e com a crítica aos usos que a antropologia têm feito do multiculturalismo, tomo a liberdade apenas de frisar que uma comunidade cuja modo de produção não segue o parâmetro teconlógico atual não pode ser considerada um resquício da história; ela apresenta-se muitas vezes justamente como foco de resistência à mercantilização de seu modo de vida e ao projeto de exploração do capital sobre a natureza. Note que não afirmo que tal comunidade siga conservando padrões imutáveis de produção – ela adota por vezes os novos modos de fazer, na medida em que têm acesso a eles, isto é, na medida em que têm acesso aos meios de produção em que eles se materializam e na medida em que aderir a eles não signifique sua proletarização. O que me parece é que, muita vez, a apologia à tecnologia e a relativização (devida) histórica da ideia de comunidades tradicionais serve apenas a deslegitimar a luta política desses povos – que não se ajustam ao mundo do capital, ao projeto totalizante do capital – como uma reação conservadora ante a evolução geral da vida, e, desse ponto de vista, não serve menos à corrente de direita que valoriza a instalidade quanto o discurso defensivo dos multiculturalistas serve à corrente de direita identificada ao conservadorismo. um abraço, alexandre

  17. Em geral prefiro deixar os comentários para os leitores e limitar-me a responder a perguntas e a corrigir erros flagrantes, se for o caso. O autor já tem o privilégio de se exprimir no artigo, convém que deixe espaço para as objecções, e entre os textos de um e de outros o leitor formará a sua opinião. Mas o comentário de Alexandre, que agradeço, pode considerar-se tanto objecções como perguntas; por isso vou responder-lhe o mais sinteticamente que conseguir.
    1) Eu escrevi que «proporcionalmente ao nível de produção pretendido, as tecnologias mais toscas são as que ocasionam efeitos secundários mais consideráveis e que perturbam áreas mais vastas». É conveniente não esquecer o primeiro membro da regra: «proporcionalmente ao nível de produção pretendido». Os danos eventualmente provocados pelas tecnologias recentes, que em termos absolutos são maiores do que os provocados pelas tecnologias arcaicas, são menores proporcionalmente ao nível de produção atingido. Além disso, as tecnologias recentes têm também uma capacidade muito superior para corrigir tais danos.
    2) Os sistemas de produção arcaicos sobrevivem hoje na medida em que foram integrados naquilo a que o marxismo estruturalista francês da minha juventude denominava formações económico-sociais, ou seja, foram integrados em estruturas que articulam mais de um modo de produção, mas em que o modo de produção capitalista ocupa o lugar determinante. Nessas estruturas, os modos de produção arcaicos cumprem invariavelmente o papel de reforçar a extorsão de mais-valia absoluta. O movimento ecológico é hoje o promotor de esquerda da mais-valia absoluta, cumprindo assim um papel muitíssimo funesto.
    3) Alexandre escreveu que «para as comunidades tradicionais […] sua relação com o meio-ambiente não pode ser enquadrada nos termos da relação sujeito-objeto […]». A este respeito, duas observações:
    a) Esta visão lírica das sociedades arcaicas baseia-se no estudo das formas ideológicas produzidas por essas sociedades, isto partindo do princípio de que tais formas ideológicas sejam bem estudadas e bem entendidas. E assim se comete o erro de comparar a realidade tecnológica do capitalismo, por um lado, com, por outro lado, a ideologia que sociedades arcaicas produziram sobre a tecnologia.
    b) Quando chegarmos ao terceiro e último artigo desta série, os leitores terão oportunidade de ver como a tese expressa por Alexandre é idêntica à que foi defendida pelos ideólogos — e práticos — ruralistas do Terceiro Reich. E como sei que este tipo de afirmações leva as pessoas a darem pulos de indignação, lembro o seguinte. Marcelo Lopes de Souza, num dos comentários a este artigo, invocou elogiosamente o trabalho de Murray Bookchin. Ora, uma das melhores obras que conheço acerca da relação íntima entre o nacional-socialismo germânico e a ecologia é a de Janet Biehl e Peter Staudenmaier, que cito nas referências. Para quem não o saiba, Janet Biehl foi a mais íntima colaboradora de Bookchin. Mas isto fica talvez para o terceiro artigo, se os leitores tiverem a paciência de lá chegar.
    4) Alexandre escreveu que «muita vez, a apologia à tecnologia e a relativização (devida) histórica da ideia de comunidades tradicionais serve apenas a deslegitimar a luta política desses povos [..]». Com efeito, muitas vezes serve. Mas noutras não serve, e é o meu caso. No entanto, se posso participar na defesa dessas lutas, analiso-as sob uma óptica diferente e atribuo-lhes um valor diferente do que fazem aqueles que encaram essas comunidades na perspectiva que eu estou aqui a criticar. As lutas sociais, pelo menos quando adquirem certo relevo, juntam sempre pessoas com perspectivas distintas.

  18. Luta social, também se caracteriza por resistência.Essas comunidades tradicionais ainda resistem…Alem de qualquer teoria ou “colonialidade” existem, por que resistem.Por elas mesmas.isso também é uma luta.Sabem viver assim.Nao vejo como conservadorismo essa valorizaçao somente, essa resistencia e o valor que se prega a ela.Pode sim ser reformista a questao de tentar discutir uma imutabilidade, mas a mutaçao pode ser de outras formas,para outros rumos porém. Uma comunidade tradicional tem poder de organizar tal diferenciaçao local, transformar agregar e persistir apartir daí, nao em carater de imutabilidade, mas de persistencia.
    “A luta social, junta sempre pessoas com perspectivas distintas” Gostei disso.A luta pode tabém ser distinta,mas contra o mesmo inimigo. E nessa luta, existe o intelectual, o politico opressor (também intelectual as vezes) e o povo. E na hora que a luta social explode por vontade dos intelctuais, do político e do povo oprimido o que morre sempre é o povo,(e acho que ja vi muito isso)o verdadeiro oprimido que nao sabe de tanta teoria,mas por ela acaba pagando. Talvez possa ter saído um pouco do cerne da discussao… E assim caminha a nossa ciencia, eu nao sei muito dela, mas deixo aqui meu comentário. Pois eu gostaria mesmo era de ouvir a história do povo, essa que nao vi no banco da escola. Acho que ele ainda vê sua história de forma distinta.
    Um bom texto! bem reflexivo.

  19. “O inimigo Oculto” é tão oculto, que poderemos pensar ser ele um amigo a habitar nossos lares. Um livro que expandiu minhas idéias, Joao Bernardo. Uma construçao aprende-lo.

  20. Caro João, pode por favor desenvolver mais, ou me indicar algum texto que o faça, a afirmação abaixo, feita no comentário acima?

    “Os modos de produção arcaicos cumprem invariavelmente o papel de reforçar a extorsão de mais-valia absoluta. O movimento ecológico é hoje o promotor de esquerda da mais-valia absoluta, cumprindo assim um papel muitíssimo funesto.”

    Brigado,
    um abraço

  21. Caro Júlio,
    Não cheguei a essa conclusão graças à leitura de nenhuma obra em especial, mas através do que vou lendo nas revistas de assuntos económicos e nos próprios artigos dos defensores da ecologia. São muito raras as críticas de esquerda à ecologia; no geral todos entram nesse barco, de tal modo que hoje ecologia se confunde com espírito cívico. Mas o meu argumento principal decorre do facto de a generalidade dos ecologistas fazer a apologia da economia doméstica. Ora, a economia doméstica caracteriza-se, entre outras coisas, por não contabilizar o trabalho como um custo de produção. A utopia da mais-valia absoluta consiste na eliminação dos custos do trabalho, enquanto a mais-valia relativa resulta do aumento da produtividade, que exige os desenvolvimentos tecnológicos aos quais os ecologistas são avessos. Tratei mais detalhadamente desta questão há muitos anos atrás, num livro intitulado O Inimigo Oculto. Ensaio sobre a Luta de Classes, Manifesto Anti-Ecológico, (Porto: Afrontamento, 1979). Na internet encontra-se disponível em vários lugares um conjunto de extractos deste livro. Nunca averiguei se esses extractos reproduzem o pensamento original, mas não há razão para admitir que tal não suceda. No próximo artigo desta série, que será publicado dentro de poucos dias, abordo essa questão e indico outro livro meu em que ela está analisada mais extensivamente.

  22. Procurei o livro “O Inimigo Oculto. Ensaio sobre a Luta de Classes, Manifesto Anti-Ecológico” na internet, mas não encontro em lugar algum, alguém sabe onde encontrar ou tem em meio digital para disponibilizar?

  23. Roberto, comprei o meu por encomenda pela livraria cultura. Veja se ainda é possível.
    saudações!

  24. Eu que não gostaria de viver no mundo socialista do João Bernardo. QUe a natureza seja objeto de uma ideologia da natureza intocada é fato. Que os ecologistas mais puristas que defendem a lei do equilíbrio entrópico das energias do mundo são uma elite que preferia ver o mundo conservado dentro de um aquário, eu também entendo.

    Mas considerar que todas as formações econômicas pré-capitalistas são fonte deliberação para a extração de mais-valia é ignorar (do alto do comodismo de um neo-iluminismo anti-social) que os principais movimentos de resistência ao Capital estão se desenvolvendo junto ãs populações dos últimos territórios de reservas naturais e energéticas da terra.

    Considerar quilombolas, indígenas, camponeses e a agroecologia a base do fascismo é sintomático de uma leitura ortodoxa da realidade, a partir de uma apologia do desenvolvimento das forças produtivas.

    se o Joao bernardo prefere cheirar fumaça de óleo diesel e preferir a construção de mega-obras de infra-estrutura para terminar de uma vez por todas com o arcaísmo das sociedades atrasadas, eu o convidaria para um passeio pelos canteiros de obras dos portos, represas e usinas e rodovias pelo mundo a fora que estão continuamente forçando a proletarização em massa de populações que tinham ao menos sua subsistência garantida, em alternativa a se obrigarem a vender sua força de trabalho no mercado capitalista.

    Só falta dizer que o chico mendes é o fascista do século.

  25. Eu creio que o contributo mais significativo deste artigo do João Bernardo situa-se no campo da desconstrução da tese do meio ambiente como se de uma relação de equilíbrio e harmonia se tratasse. Penso que é este o eixo central deste texto e é a partir dele que se pode compreender a argumentação do autor.

    sobre a questão da mais-valia absoluta. É inegável que o ecologismo cai direitinho nas lógicas do seu incremento. Mas creio que também se relaciona ou se pode relacionar, se bem que em menor grau, com a mais-valia relativa. Aqui estou a pensar na apropriação que algumas grandes empresas do agro-negócio têm feito da retórica ecologista para se apresentarem como empresas ecologicamente sustentáveis e amigas do ambiente. Ora, muitas dessas empresas têm a agricultura mecanizada e não utilizam mão-de-obra intensiva. E a publicidade institucional que difundem não me parece ser mto diferente da substância de muitos dos argumentos ecologistas: utilizar os meios naturais de modo a não quebrar o equilíbrio ecológico (exemplo – renovar “sustentavelmente” os solos ou o “stock” de árvores de uma determinada área para subsequente produção de madeira, mobiliário, etc.); produzir com qualidade e sem pesticidas (deixando intocada a relação da exploração).

    abraço

  26. Valente de Aguiar,
    Tens toda a razão. Quando escrevi que os ecológicos promovem a mais-valia absoluta referia-me aos propriamente ditos, e quanto mais à esquerda se julgam, pior. Mas os administradores das grandes empresas são demasiadamente inteligentes para não converterem tudo em estímulo à mais-valia relativa. Aliás, um desenvolvimento económico pensado em termos de mais-valia absoluta é insustentável e o único desenvolvimento sustentável ocorre no quadro da mais-valia relativa. Para quem goste de exemplos práticos, dos países que conheço a Suécia é o que em maior grau entronizou a mais-valia relativa. É também aquele que mais longe leva as considerações ambientais.

  27. Se liga nessa matéria e no site que compartilha ela. Lembrei dessa discussão, resolvi colocar aqui pra relembrar a discussão e quem sabe discutirmo o quanto isso está se desenvolvendo.

  28. 1 – Sobre a comparação com ”comunidades” nômades

    Ora, claro que usando técnicas cada vez mais sofisticadas de produção é possível extrair mais ao passo que se destrói menos – um maior aproveitamento dos recursos e, se possível, sem sua destruição total. Mas deve-se levar em conta, também, qual era a população existente então? A sociedade industrial opera em outra escala de produção e de mercado consumidor. Há redução de danos à natureza causados na produção mas há, ainda, danos, embora possa-se produzir com muito mais produtividade, mas deve-se considerar a escala também desses danos ”relativamente menores”. Além disso, os nômades buscavam atender suas necessidades imediatas em geral, a escala produtiva era menor, apesar dos danos relativamente maiores, mas havia uma maior orientação quanto aos objetivos da ação produtiva e, ainda que não houvesse, como a escala era reduzida. Hoje temos a superprodução de inúmeros bens que em muito buscam atender às necessidades ”da fantasia” mais do que do estômago, talvez.

    Está claro que com mais avanço tecnológico há formas mais sofisticadas de exploração dos recursos naturais mas pode ser complicado estabelecer essa relação como se a sociedade industrial fosse ”benéfica” ou ”nada de mais” para a natureza (recursos naturais, de forma geral). Bem como é mais complicado ainda falar como se as sociedades de tempos tão passados não causassem mal algum à natureza e vivessem numa harmonia mágica para com ela, mas a crítica a esta segunda ideia está muito bem feita no texto.
    Enfim, houve alguns bons comentários também. As ideias gerais do texto são muito boas, vou ler o esto da série

    cá estou eu chegando um pouco atrasado na discussão

  29. Gabriel,

    Quanto ao seu argumento principal, para não ocupar aqui demasiado espaço remeto para as págs. 1376-1382 da última versão do Labirintos do Fascismo (https://archive.org/stream/jb-ldf-nedoedr/BERNARDO%2C%20Jo%C3%A3o.%20Labirintos%20do%20fascismo.%203%C2%AA%20edi%C3%A7%C3%A3o#page/n1375/mode/2up ), onde expus a questão em detalhe e com exemplos elucidativos, usando bibliografia recente. Como se trata de um dos argumentos mais invocados, e como ele não resiste à crítica histórica, espero que haja pessoas suficientemente arrojadas para se darem ao trabalho de ler seis páginas. Limito-me aqui a reproduzir o que escrevi no último parágrafo:

    Deparo por vezes com o argumento de que esse problema não era grave, ou nem mesmo seria um problema, nas épocas em que a população era escassa. Ao supor que a vastidão das superfícies inabitadas permitiria destruições extensas, esse argumento fornece mais um exemplo da falácia que consiste em imaginar uma natureza passiva perante uma humanidade activa. Na realidade, porém, o mundo era muito pequeno para as sociedades dotadas de técnicas rudimentares, e quanto mais rudimentares fossem, mais reduzido seria o espaço social, cercado por uma imensidão hostil. Extensões que medidas em quilómetros quadrados parecem vastas eram muito estreitas quando avaliadas pela utilização humana possível. Em todas as sociedades, desde que existe homo sapiens, as necessidades são criadas. Perante isto não há mundos vastos, mas sempre mundos pequenos, o que explica o aparente paradoxo de sociedades pouco numerosas terem levado ao esgotamento de recursos naturais devido à sua sobreexploração.

  30. Antes mundo era pequeno
    Porque Terra era grande
    Hoje mundo é muito grande
    Porque Terra é pequena
    Do tamanho da antena parabolicamará
    Ê, volta do mundo, camará
    Ê, ê, mundo dá volta, camará

  31. ZEROWORKER
    Abacateiro:
    Atacaremos teu ato.
    Eis o nosso desacato,
    no inverno e no verão.
    Desaguardaremos
    não tro(n)c(h)aremos mais
    o tanto fez pelo tanto faz.
    Somos : desacataremos.

  32. Concordo em desconstruir a relação de dualidade harmônica entre natureza e homem, e na forma como você elabora isso nessas poucas páginas. Mas me parece que há uma supervalorização da técnica a qual eu tenha uma certa crítica.
    Nessa passagem ”nós conhemos e utilizamos hoje uma natureza muitíssimo mais vasta e mais profunda do que as outras sociedades conheceram e usaram. Por isso nossa compressnsão alcança mais longe que os saberes tradicionais. A ciência e a técnica não permitem apensa dominar a natureza, permitem ampliar a natureza que demonimamos e, por conseguinte, extrair mais dela.”
    Ao mesmo tempo em que eu concordo quanto ao que temos em possibilidades de expandir os limites da nossa natureza e explorá-la de todas as formas, ainda assim me parece que há uma supervalorização da técnica e como que um julgamento de valor em cima disso. Acredito que essa visão super técnica da condição humana deve ser relativizada… temos formas diferentes de explorar a natureza (e aos seres humanos), ao passo que isso implica um desenvolvimento tecnológico grande não necessariamente condiciona este nosso modo de vida como melhor necessariamente que qualquer outro; enfim, fico um tanto incomodado com isso pois me parece muito típica a forma como os defensores do capitalismo sempre defendem o ”avanço” e o ”progresso” etc, assim como dizer que ”a natureza sem a técnica humana não seria a natureza”.. me parecem ideais que do ponto de vista filosófico talvez me desagradem de certo modo, e também estão presentes em certos discursos do capital.

    Como havia dito antes, me parece claro que deve-se avaliar as técnicas usadas em relação ao nível de produção para poder quantificar seus danos, e também está claro que quanto mais avançadas, mais chances para curar os próprio males causados pela ação humana.
    Meu problema com esse tipo de coisa é que parece justificar qualquer coisa em favor da produção.
    Como se não importasse muita coisa além das necessidades humana e, por mais que possa concordar, ainda temos que levar em conta que se destruirmos o parquinho não dai mais dar pra brincar. Não é como se tudo pudsse ser justificado pelas ”necessidades de produção” e etc.., mesmo porque devemos considerar o contexto atual em que se dá essa produção, que é esse mundo capitalista onde produzimos mais do que precisamos, e produzimos sim às custas de danos à natureza (como sempre foi na história da humanidade), mas não quer dizer que esteja justificado.
    Fora que não são as técnicas necessariamente mais avançadas que são empregadas, e sim as que possibilitam maior mais valia, então talvez seja um erro pensar esse tal ”avanço” técnico do modo capitalista, porque ele é totalmente pautado na mais valia, como você bem disse no texto. É um avanço ”enviesado”, apesar de ainda assim um avanço, mas acredito que tendo isso em vista devemos tomar certo cuidado com a nossa crítica a esses princípios da ecologia até para não desligitimar essa luta quando bem posicionada.
    Talvez me incomode em certo grau esse debate porque o vejo constantemente nas bocas de defensores do capitalismo que defendem o ”progresso” e a crítica à ecologia e a sustentabilidade, etc.

  33. Caro Gabriel,

    As suas inquietações trouxeram-me à memória que há já alguns anos houve quem, num comentário neste site, afirmasse que o único aspecto em que eu sou um marxista ortodoxo é na crítica à ecologia. Em parte esse comentador tem razão.

    Com efeito, tal como Marx eu considero que o capitalismo representa um avanço sobre os modos de produção e de exploração anteriores.
    Tal como Marx eu considero que na história da humanidade existe progresso, mensurável em termos tanto materiais como sociais.
    Tal como Marx eu considero que só o nível de produtividade e a abertura social propiciados pelo capitalismo tornam possível o desejo do socialismo.
    Tal como Marx eu considero que um sistema socialista só terá legitimidade se representar um progresso relativamente ao capitalismo, tanto em termos materiais (abundância generalizada) como em termos sociais (liberdade).

    Onde esse comentador não teve razão, porém, é que, ao contrário de Marx, eu distingo entre tecnologia (um sistema inteiramente determinado por relações sociais) e técnica (um elemento socialmente neutro). Isto permite-me pensar um âmbito de civilizações, mais amplo e duradouro do que os modos de produção. Para maior facilidade, reproduzo aqui o que escrevi naquele livro (págs. 1417-1418) (https://archive.org/stream/jb-ldf-nedoedr/BERNARDO%2C%20Jo%C3%A3o.%20Labirintos%20do%20fascismo.%203%C2%AA%20edi%C3%A7%C3%A3o#page/n1415/mode/2up ):

    As técnicas surgiram para defender a sociedade da natureza, permitindo a apropriação da natureza. Mas as tecnologias, enquanto materialização de sistemas de relacionamento social, acrescentaram aos desequilíbrios inerentes à natureza e aos criados entre a sociedade e a natureza outros desequilíbrios, internos à humanidade. Sempre que nos aproximamos de um ponto de ruptura estamos a suscitar a criação de sistemas tecnológicos novos, destinados não só a resolver os desequilíbrios resultantes de dados tipos de apropriação humana da natureza como ainda a solucionar desequilíbrios sociais, em ambos os casos inaugurando modalidades novas de desequilíbrio.
    A tecnologia é uma estrutura, que determina os modos como são usadas as técnicas que a integram e os sentidos em que podem ser desenvolvidas. Mas tem sucedido com frequência que uma técnica se torne independente da tecnologia em que foi originariamente gerada e se insira noutra estrutura tecnológica. Para a interpretação destes casos, a analogia mais útil é fornecida pela linguística. Uma língua é uma estrutura que determina rigorosamente as palavras componentes, e no entanto a maior parte dessas palavras provém de outras línguas, mortas ou vivas; saída da língua de origem, uma palavra neutralizou-se, para obedecer a outras regras e assumir outras implicações na nova língua em que se foi integrar. O mesmo ocorre com as técnicas. A domesticação do fogo, por exemplo, fez parte de um conjunto de técnicas articuladas numa mesma estrutura tecnológica e ocupou aí um lugar dominante, suscitando uma divisão de funções com efeitos ideológicos de grande alcance. As religiões, com os respectivos sacerdotes, foram em boa medida herdeiras da aura em que se envolveram os guardiães do fogo. Porém, desprovido das conotações sociais e ideológicas de que se rodeara na tecnologia originária, o fogo continuou a ser uma técnica indispensável nas tecnologias posteriores, mas obedecendo já a novas determinantes. O processo foi idêntico para um sem número de outras técnicas. Retiradas da estrutura tecnológica em que haviam sido geradas, tornaram-se neutras e, uma vez inseridas noutra estrutura, adquiriram as características que ela determina. Esta passagem das técnicas de umas para outras tecnologias contribui para a criação de civilizações e sociedades de muito longa duração, mais duradouras do que os modos de produção que sucessivamente as sustentam. Devemos assim admitir que uma futura superação do capitalismo, embora alterando as relações de trabalho e, portanto, criando um novo quadro tecnológico, reutilize inúmeras técnicas anteriores, definindo-lhes outras implicações sociais e um novo sentido de desenvolvimento. Tal como a civilização urbana existe continuamente desde o neolítico e tem servido de quadro a sucessivos modos de produção, com as respectivas tecnologias, também a sociedade industrial durará para além do modo de produção capitalista que a gerou.
    Ora, como só o desenvolvimento técnico proporcionado pela sociedade industrial permitiu à humanidade multiplicar a produção de alimentos, libertar-se das epidemias e de um grande número de doenças e evitar as piores consequências da maior parte das catástrofes naturais, se fosse cumprido o programa ecológico de inversão da produtividade e diminuição da actividade industrial a população mundial seria drasticamente reduzida. A ecologia surge, assim, como o substituto moderno da guerra enquanto factor de resolução de crises, e aqui se situa o seu horizonte último de convergência com o metacapitalismo nacional-socialista. É esta a função prática do irracionalismo das doutrinas ecológicas.

  34. João, meu caro

    Realmente essa distinção que você faz é de fundamental importância. Inclusive vai de acordo com o que falei no comentário anterior. Apesar de que eu acho que deveríamos rever nossos conceitos de ”avanço” e ”progresso”, objetivamente falando, os danos causados ao meio ambiente são reflexo das relações de produção que operam, do nível de desenvolvimento das forças produtivas e claro, das relações sociais por elas determinadas. Dependemos do maior avanço da técnica para sanar esses problemas sempre causados por nós mas, nesse sentido, os movimentos ecológicos não poderiam ser importantes para contribuir na criação de uma nova mentalidade a respeito da visão que se tem do trato ao MA ou do uso das nossas capacidades técnicas atuais nesse sentido? Falo isso pensando que há setores da produção nos quais já seria possível mudar a forma e usar as técnicas de forma menos agressiva ou etc ao MA, mas isso não acontece já que poderia prejudicar a extração de mais valia num primeiro momento, pelo menos, e como você diz, a mais valia é a entropia negativa do sistema.
    Ainda, há obras que você recomenda quanto ao ecologismo em geral, preservação do meio ambiente e etc, que não se inserem nesse conjunto dos retrógrados? Um ecologismo sob outras bases, digamos?

  35. Caro Gabriel,

    Grande parte da actividade dos cientistas na área da química tem como objectivo estudar formas de evitar as consequências negativas das técnicas em uso. Isto passa-se tanto em laboratórios de pesquisa estritamente universitários, como em laboratórios universitários de alguma forma ligados a empresas e ainda em laboratórios de grandes empresas. Aliás, pode dizer-se que hoje não existe pesquisa científica que não tome em consideração os eventuais efeitos negativos das inovações.

    O número de obras de divulgação científica é muito grande e inclui algumas de excelente qualidade. É portanto lastimável que o público leigo prefira apavorar-se com os cataclismos anunciados pelos movimentos ecológicos e encantar-se com o kitsch místico da New Age — duas faces do mesmo complexo ideológico — do que pôr-se ao corrente da história da ciência e das descobertas científicas recentes. Mas é preciso ter em conta também que os lobbies ecológicos exercem um verdadeiro terrorismo quando os cientistas, incluindo alguns ecologistas sensatos, vêm a público criticar os movimentos ecológicos. A acção dos lobbies ecológicos nos órgãos de informação, divulgando a noção de que os laboratórios são a sede do Mal, uma espécie de inferno laico, tem contribuído para agravar a clivagem existente entre o mundo dos cientistas entre eles e o mundo exterior. São raros os cientistas que estejam dispostos a incomodar-se e a perder tempo com polémicas públicas, que os afastam da actividade de pesquisa para a qual se sentem vocacionados. Há no entanto excepções, embora esta que vou citar não o seja inteiramente, porque permaneceu restrita ao meio científico e não teve eco nos grandes órgãos de informação. Reproduzo o que escrevi num comentário publicado aqui: http://passapalavra.info/2013/09/83203/ em 30 de Outubro deste ano:

    Na semana passada tomei conhecimento de um abaixo-assinado devido à iniciativa de cientistas de mais de oitenta e cinco institutos e centros de pesquisa europeus de primeiro plano. O documento pede às autoridades da União Europeia para não tomarem medidas que limitem a investigação científica na área das plantas e da agricultura, o que poderia impedir a criação de novas variedades mais nutritivas e mais resistentes às variações climáticas. Esses cientistas invocam um argumento decisivo, que eu mencionei neste artigo, ao escreverem: «A melhoria das culturas tem sido feita desde há séculos por meio de técnicas convencionais de reprodução de plantas, todas elas levando a mudanças genéticas nessas plantas. Hoje, técnicas inovadoras constituem o passo seguinte na reprodução de plantas e permitem fazer as desejadas mudanças genéticas com eficiência e precisão muito elevadas».
    É tão raro que cientistas enfrentem publicamente a demagogia dos lobbies ecológicos, que esta iniciativa merece ser saudada e divulgada.
    O texto completo do abaixo-assinado pode ser lido aqui: http://www.itqb.unl.pt/news/european-scientists-unite-to-safeguard-precision-breeding-for-sustainable-agriculture
    Para mais explicações, ver aqui: http://www.vib.be/en/news/Pages/European-scientists-unite-to-safeguard-precision-breeding-for-sustainable-agriculture.aspx

    Alguns cientistas com quem partilho esta perspectiva de crítica aos movimentos ecológicos enviam-me por vezes artigos publicados em revistas científicas de circulação estritamente académica, que usei para certos aspectos decisivos da série de artigos «Post-scriptum: contra a ecologia» (http://passapalavra.info/2013/08/98771/ ), nomeadamente no quarto artigo, «A Agroecologia e a Mais-Valia Absoluta» (http://passapalavra.info/2013/09/83203/ ). Aliás, note que o facto de alguns autores citados nesse quarto artigo serem ecologistas não os impede de assumirem uma visão crítica. Recomendo-lhe também que passe a vista pelos comentários naquela série de oito artigos «Post-scriptum: contra a ecologia», porque encontrará numerosas indicações bibliográficas interessantes. Como obra global, parece-me imprescindível a leitura do livro de Bjørn Lomborg, The Skeptical Environmentalist. Measuring the Real State of the World (Cambridge: Cambridge University Press, 2001), que creio que foi traduzido no Brasil.

  36. Grande João,

    vou dar uma olhada sim nas referências que você cita e nos comentários da série Post-scriptum, quando for lê-la!

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