Por Mónica López Baltodano [*]
Este absurdo processo eleitoral invadiu como peste este país. Durante semanas, os cidadãos se prepararam ingenuamente para assistir a um funeral cívico nunca visto nos últimos 30 anos da história política da Nicarágua.
Inadvertida, coberta pelo véu da manipulação absoluta e da mentira, entrou pela porta de nossas casas o chamado a legitimar o injusto: -Venham votar, venham, bem cedinho venham à urna.
Junto à peste, um poderoso mecanismo – preparado cautelosamente durante anos – marchava sem que seu caráter inescrupuloso fosse advertido por milhares de nicaraguenses. Listagens detalhadas das intenções dos votos “secretos”; visitas casa a casa para ratificar o generoso líder de duas patas; oferecimento de bolsas, legalizações, placas e bônus com o poder de convencer o mais indeciso e, sobretudo, o mais necessitado; uma campanha financiada por anos com o uso abusivo do dinheiro da contribuição; entregas pré-selecionadas de cédulas e credenciais eleitorais; anúncios rosados esbanjando amor, paz e vida; bloqueio seletivo de urnas e de votantes não simpáticos ao comandante; boletos sem assinar e votação sem fiscalização; falsificação de identidades “opositoras”; e, para completar a piada, um bufão presidindo o Conselho Servil Eleitoral. O palanque da mentira a serviço da luxúria da reeleição sem eleição, porque, sejamos sinceros, quem podia esperar que este mecanismo impusionaria resultados distintos dos atuais.
Uns dias antes que a febre eleitoral se exacerbasse até a alucinação, uma grande mancha negra foi posta – sendo tudo pela paz e pela reconciliação – sobre todas as pichações que das ruas clamavam pelo VOTO DE PROTESTO e pelo rechaço explícito da farsa eleitoral, conscientes de que uma farsa não é outra coisa senão um interlúdio cômico colocado em meio a um drama sério. E assim foi. Com uma grande mancha negra pintada sobre nossos cérebros, fomos trajados de “festa cívica” para um funeral eleitoral em que nós mesmos carregamos a pesada lápide que terminaria de esmagar nossos mais elementares direitos políticos.
A realidade é implacável, passada a farsa, começa o drama: todo o poder depositado em um líder de duas patas. A consagração da aberração Ortega Murillo, convertido agora na referência absoluta do poder na Nicarágua, incluindo a pertinente designação do poder de Deus e dos astros também. Um 62% – mítico, fraudulento, real ou aproximado – que ratificou o personalismo e o poder unifamiliar como a forma política que comandará a Nicarágua, o reino da gente pobre e de uns poucos grandes ricos.
“Somo dois”… dizia a campanha: O Partido e eu. O Estado e eu. O capital e eu. Os pobres e eu. Deus e eu. A Chayo [**] e eu. Um líder de duas patas convertido em umbigo onde conflui o poder, sem contrapeso nem força que se lhe oponha. O alinhamento perfeito entre os interesses políticos e o poderoso capital econômico, as duas patas do líder, que crescem parasitariamente na desnaturalização do poder popular e a luta revolucionária.
As classes populares que hoje o respaldam saberão superar sua própria cegueira na medida em que o poder absoluto de duas patas revele sua autêntica natureza. Deixar-se-a ver, entre as brechas, o enriquecimento excessivo do próprio líder e sua matilha, e sua necessária confabulação com banqueiros e grandes empresários, criando suas próprias mega-empresas a partir das quais continuará alimentando sua farsa mediática de bem-estar comum.
A renúncia ao fanatismo se gestará progressivamente, sem dúvida, até que milhares recuperem seu próprio poder hoje submetido em apertadas camisetas rosadas [***] sob o slogan de sua própria perdição, “o povo presidente”. Enquanto isso, sempre haverá pessoas dispostas a rechaçar que a grande mancha negra que se destila das duas patas do líder se imponha sobre nossa consciência e nossa dignidade. Até amanhã.
[*] Mônica López Baltodano membro do Movimiento Rescate del Sandinismo.
[**] Chayo é a alcunha popular da primeira-dama, Rosario Murillo.
[***] Rosadochicha no original. Cor utilizada, sob orientação de Rosario Murillo, em toda propaganda oficial e do partido e que suprimiu o vermelho e o negro históricos.
Tradução: Passa Palavra