Por João Bernardo

O fim do keynesianismo

Contra o monetarismo e a austeridade, a esquerda, não só em Portugal mas ainda no resto do mundo, descobriu que era keynesiana. E para se opor ao desmantelamento do Estado de bem-estar social essa mesma esquerda não hesita em empregar termos estafados e reivindica-o como uma conquista dos trabalhadores. A esquerda, que outrora se caracterizou por ser inovadora, hoje tornou-se nostálgica.

Sob o ponto de vista histórico, apresentar o keynesianismo como uma conquista dos trabalhadores é uma fraude. Se quisermos indicar um exemplo de institucionalização da mais-valia relativa, será difícil encontrá-lo melhor do que o Estado de bem-estar social. A sua instauração na Europa é indissociável do Plano Marshall, com o objectivo muitíssimo explícito de evitar o desenvolvimento de uma situação explosiva na Alemanha Ocidental e travar o avanço do comunismo na França e na Itália.

E, como o Estado de bem-estar social se baseava na relação entre os gestores dos ministérios económicos, os gestores que comandam a administração das grandes empresas e os gestores que ocupam os cargos directivos dos sindicatos, ele apressou e consolidou a burocratização do movimento operário. Nesta modalidade de neocorporativismo informal, os sindicatos e os administradores de empresa firmavam acordos colectivos que definiam a taxa de aumento salarial e o crescimento da produtividade, e os ministérios económicos ajustavam a esses acordos a emissão monetária e as taxas de juro. Foi exactamente este o principal alvo da enorme vaga de lutas autónomas ocorridas durante as décadas de 1960 e 1970, conhecidas como greves selvagens, ou seja, na amável terminologia empregue pelos dirigentes sindicais, greves realizadas exteriormente aos sindicatos. Aliás, o neoliberalismo não teria conseguido um tão grande êxito no ataque aos sindicatos se estes não tivessem perdido já a base de apoio entre as camadas mais combativas da classe trabalhadora. As greves selvagens mostraram claramente o que esses trabalhadores pensavam acerca do Estado de bem-estar social.

Mas talvez a minha argumentação revele uma considerável ingenuidade, porque aquela esquerda não tem possivelmente nenhuma intenção de acabar com o capitalismo e por isso é-lhe indiferente o papel histórico desempenhado pelo keynesianismo. Mesmo que encaremos a questão sob este ponto de vista, o problema é que o keynesianismo deixou de ter validade como método prático de recuperação económica, porque os instrumentos do défice e do incentivo ao consumo em que ele se baseia já foram usados e levaram à situação catastrófica em que Portugal agora se encontra.

Vejamos os números, para avaliar os estímulos e os seus efeitos. Entre 1995 e 2000 a taxa anual de crescimento do Produto Interno Bruto, PIB, português oscilou entre um máximo de 5,1% em 1998 e um mínimo de 3,7% em 1996. Ora, esta considerável expansão foi acompanhada por dois estímulos: o incentivo ao consumo e os défices. Tanto o investimento como o consumo aumentaram naquele período. Calculada em percentagem do PIB, a formação bruta de capital fixo, que mede o investimento em meios de produção duráveis, passou de 23,1% em 1995 para 27,7% em 2000; e a taxa anual de crescimento do consumo familiar per capita passou de 0,3% em 1995 para 5,1% em 1999. Reflexo e ao mesmo tempo condicionante destes factores, o desemprego, que fora de 7,2% em 1995 e 7,3% em 1996, não parou de descer e chegou a 3,9% em 2000 e 4,0% em 2001. Entretanto, a poupança privada diminuiu, passando a poupança bruta das famílias de 9,4% do PIB em 1995 para 7,5% em 2000 e 2001. Compreende-se que as taxas nominais de juro, que haviam sido de 16% em 1992, se limitassem a 4% em 2001; quanto às taxas reais de juro, no mesmo período desceram de 6% para praticamente 0%. Necessariamente a dívida aumentou. O défice em conta-corrente medido em percentagem do PIB, que em 1995 estivera muito próximo de 0%, subiu progressivamente nos anos seguintes até ultrapassar 10% em 2000 e 2001. E o défice orçamental manteve-se entre 5,0% em 1995 e 4,3% em 2001. Temos aqui um quadro de incentivos clássico, cuja validade parecia confirmada pelos bons resultados obtidos.

O pior foi que os défices não impediram a queda da economia nem a reactivaram. A taxa anual de crescimento do PIB, que fora de 3,9% em 2000, caiu de quase metade, para 2,0%, em 2001, sendo nula em 2008 e negativa em 2003 e 2009, quando atingiu -2,5%, e mantendo-se até 2010 entre um mínimo de 0,8% e um máximo de 2,4%. Paralelamente, a formação bruta de capital fixo, que fora de 27,7% do PIB em 2000, passou para 20,6% em 2009. Nestas circunstâncias o desemprego não podia deixar de aumentar; havia sido de 4,0% em 2001, mas chegou a 8,0% em 2007 e a 9,5% em 2009. Quanto à taxa anual de crescimento do consumo familiar per capita, que atingira 5,1% em 1999, tornou-se negativa em 2003 e 2009 e nos restantes anos nunca ultrapassou 2,3%. Ora, convém não esquecer que este declínio económico se precipitou apesar de a poupança privada continuar a diminuir e de os défices continuarem elevados. A poupança bruta das famílias, que fora de 7,5% do PIB em 2001, não parou de descer e em 2008 estava em 5,1%. Quanto ao défice em conta-corrente, em 2001 equivaleu a 10,3% do PIB, desceu até atingir 6,4% em 2003, mas desde então voltou a subir e chegou aos 12,6% em 2008 e 10,9% em 2009. Por seu lado, o déficit orçamental, que fora de 4,3% em 2001, desceu para subir de novo em 2005, quando atingiu 5,9%, e, embora diminuísse nos anos seguintes, manteve-se em patamares elevados, ultrapassando 10% em 2009. Importa também saber que em 2009 a dívida privada representava 85% da dívida agregada, cabendo à dívida pública os restantes 15%.

Portugal colocou-se fora do âmbito em que será possível aplicar as soluções keynesianas, porque atingiu um nível de défice e de dívida muito alto sem com isso melhorar a economia.

Salários e produtividade

Outra consequência dos estímulos no caso português, que me interessa aqui de maneira muito especial, foi terem levado a um crescimento dos salários sistematicamente superior ao crescimento da produtividade e, por conseguinte, terem como resultado a perda de competitividade. Como esta questão é objecto de graves confusões e é um dos lugares preferidos da demagogia, convém analisá-la com certo detalhe.

Para prosseguir rapidamente e pelo caminho mais curto, enfrentemos um paradoxo e comparemos o Haiti com a Suécia. À primeira vista, o resultado da comparação seria óbvio. Os trabalhadores haitianos vegetam numa miséria abjecta enquanto os trabalhadores suecos desfrutam de inúmeras regalias. E, no entanto, os suecos são muitíssimo mais explorados do que os haitianos. Não é no Haiti mas na Suécia que as companhias transnacionais investem e não são as firmas haitianas mas as suecas que acumulam capital. Isto explica-se porque a produtividade no Haiti é baixíssima enquanto na Suécia é muito elevada. E o segredo do paradoxo consiste no facto de nele se confundirem dois pontos de vista, o do interesse imediato dos trabalhadores e o do interesse dos patrões. Qualquer trabalhador — salvo, evidentemente, se for ecológico — prefere ter acesso aos bens de consumo e viver como um sueco do que como um haitiano. Para um patrão, todavia, não importa a utilidade imediata dos bens e serviços que os trabalhadores possam adquirir. Para ele as questões centrais consistem na produtividade com que esses bens e serviços são produzidos e na produtividade dos seus empregados ao laborarem na empresa. Isto significa que o nível dos salários não se confunde com o grau da exploração. Quando os trabalhadores falam nos salários que recebem, estão a pensar na utilidade imediata dos bens e serviços que poderão adquirir. Mas quando os capitalistas falam nos salários que pagam, estão a pensar na produtividade dos processos de trabalho. A questão salarial é a faceta da economia em que mais imediatamente se reflectem os antagonismos de classes.

A tabela seguinte mostra a evolução dos salários e da produtividade em Portugal durante os períodos de ascensão e declínio da economia. A representa a taxa de crescimento dos salários nominais e B, a taxa de crescimento da produtividade, ambas em percentagem.

  1995   1996   1997   1998   1999   2000   2001   2002   2003   2004   2005   2006
   A       6,7    9,0    3,8    4,3    4,0     6,9     5,2     3,8     3,2     3,3     3,3     2,6
   B      5,8    3,6    2,4    2,6    3,1     1,8     0,2     0,1    -0,7     1,0     0,2     0,2

Fonte: Olivier Blanchard, «Adjustment within the euro. The difficult case of Portugal», Portuguese Economic Journal, vol. 6, nº1, 2007, págs. 4-5.

Verificamos que, em primeiro lugar, o crescimento dos salários não só foi sempre superior ao crescimento da produtividade como a diferença entre ambas as taxas se agravou. Em 1995 a taxa de crescimento dos salários foi 1,2 vezes superior à taxa de crescimento da produtividade, e 2,5 vezes em 1996; mas os valores equivalentes foram 16,5 em 2005 e 13,0 em 2006. Em segundo lugar, se em 1995-2000, durante o período de expansão da economia portuguesa, o crescimento da produtividade declinou, não espanta que em seguida tivesse caído para níveis baixíssimos, chegando a ser negativo em 2003.

Para os trabalhadores portugueses os salários que recebem são baixos, porque são inferiores à média europeia. Se tomarmos como termo de comparação o salário médio bruto por hora, em 2010 os trabalhadores portugueses recebiam exactamente metade da média da zona euro ou pouco mais de 1/3 do salário médio praticado no país com as remunerações mais elevadas da zona. Para os patrões portugueses os salários que pagam são altos, porque aumentam numa taxa superior à da produtividade. Em meados da década passada, a produtividade em Portugal representava metade, ou menos ainda, da produtividade nos quatro ou cinco países mais produtivos da União Europeia. Nesta diferença de percepção da realidade salarial reside o cerne da luta entre as classes no Portugal de hoje.

É certo que para os capitalistas de um país o nível dos salários se avalia não só em função da produtividade no interior desse país, mas igualmente em função dos salários — medidos em dólares — praticados nos principais países concorrentes no mercado internacional. Ora, enquanto no conjunto de países da zona euro, em média, 30% das exportações dizem respeito a produtos de baixa tecnologia, em Portugal essa taxa sobe para cerca de 60%, sendo precisamente nestes ramos que mais se faz sentir a concorrência dos países emergentes, onde os salários são mais baixos em termos de dólares. Mesmo tendo isto em conta, porém, a produtividade é o factor decisivo, porque permite a uma economia ser competitiva ainda que os salários das economias concorrentes sejam inferiores. Por outro lado, o crescimento da produtividade, implicando o aumento das qualificações dos trabalhadores e a introdução de novas tecnologias, tanto materiais como sociais, permite desenvolver ramos de produção com maior valor acrescentado e, portanto, passar de uma participação passiva para uma participação activa no mercado mundial.

Ora, se a luta pela elevação dos salários nominais depende exclusivamente dos trabalhadores, o crescimento da produtividade depende exclusivamente dos capitalistas. Tratar os salários e a produtividade no mesmo plano é ilusório, porque cada um destes elementos decorre de campos institucionais opostos. Que obstáculos impedem então, em Portugal, o crescimento da produtividade?

Empresários ignaros

José Sócrates e José Mariano Gago, respectivamente primeiro-ministro e ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior nos anteriores governos, congeminaram um ambicioso plano para aumentar a produtividade, baseando-se nos centros de pesquisa científica para criar microempresas tecnologicamente sofisticadas e vocacionadas directamente para nichos do mercado mundial. Estavam assim a cumprir uma das indicações da Agenda de Lisboa, adoptada pelo Conselho Europeu em Março de 2000, com o objectivo de articular instituições de ensino e pesquisa e empreendimentos de alta tecnologia para incentivar a criatividade e a inovação e aumentar a produtividade. Em Portugal esta orientação contou com o aplauso da principal figura do Bloco de Esquerda, Francisco Louçã, embora ele tivesse o cuidado de não explicitar os nomes apoiados. Depois de ter afirmado que «conseguir aumentar a produtividade é um problema essencial para a nossa economia», Francisco Louçã incluiu entre as suas propostas governativas «uma política industrial» dirigida para a criação de «novos sectores produtivos, ligados a capacidades endógenas em campos de investigação como o mar, a cortiça, os produtos de consumo de qualidade ou produções científicas especializadas, como a farmacogenómica, as energias alternativas e os meios de transporte como os da mobilidade eléctrica. E deve criar novas empresas para esse efeito. Naturalmente, a actividade económica que crie exportações ou substitua importações deve ser impulsionada pelo investimento ou subsídio público, pelo apoio fiscal, nomeadamente à investigação, e por parcerias com unidades científicas como as universidades» [1].

Mas estas pessoas estão a falar de quem, de que país, de que empresários? Em 2004 os institutos nacionais de estatística dos dois países ibéricos procederam a um inquérito, revelando que, enquanto na União Europeia, em média, 29% dos empresários tinham licenciatura universitária, em Portugal a cifra correspondente era 11%; e enquanto na União Europeia 24% dos empregados tinham licenciatura universitária, em Portugal eles eram 13%. A diferença agravou-se. Segundo o Instituto Nacional de Estatística, em 2010, 9% dos patrões possuíam curso universitário, contra 19% dos empregados. Além da discrepância entre o nível de instrução da população activa portuguesa e a média europeia, regista-se o facto anómalo de os empresários portugueses terem um grau de instrução inferior ao dos seus empregados, tendendo a diferença a aumentar. Estas percentagens esclarecem muita coisa acerca da travagem dos mecanismos da produtividade em Portugal. Numa classe empresarial ignara é possível implantar ilhéus de sofisticação tecnológica, como aqueles a que aspiraram José Mariano Gago e Francisco Louçã. Mas é impossível que a partir daí emanem efeitos em cadeia, capazes de estimular a produtividade no resto da economia portuguesa. O meio empresarial deste país constitui um terreno muito estéril.

Podemos apreciar essa esterilidade graças a uma análise que o McKinsey Global Institute efectuou acerca da construção civil residencial em Portugal, chegando à conclusão de que a produtividade deste ramo correspondia a 38% da verificada nos Estados Unidos. 22% desta diferença dever-se-iam à falta de estandardização no design e na construção; 15%, à má qualidade do design de projectos; 10%, à falta de eficiência na execução, resultante, por exemplo, da subutilização de homens e máquinas. E o estudo concluiu que um dos motivos dessa baixíssima produtividade era a proliferação de pequenas firmas actuando na economia informal. É precisamente este o tipo de empresas em que os patrões têm o nível de instrução mais baixo, e constatamos o resultado.

É certo que a produtividade pode ser aumentada graças a um rearranjo das instituições existentes e dos procedimentos em vigor, que simplifique as operações. Mas não se vai muito longe por este caminho. Uma melhoria substancial da produtividade implica grandes remodelações no meio empresarial, que são demoradas e socialmente complexas, enquanto se necessita agora de soluções rápidas e mais fáceis. É assim que deparamos com ideias como a criação de uma Flórida portuguesa. Olivier Blanchard, quando não era ainda o economista-chefe do Fundo Monetário Internacional, FMI, e leccionava no Massachusetts Institute of Technology, propôs com toda a seriedade que Portugal desenvolvesse um tipo específico de turismo, atraindo velhos e velhas para passarem os últimos dias ao sol e gastarem no país o dinheiro das suas reformas [aposentadorias]. «O “modelo Flórida”, ao contrário do que sucede com o turismo tradicional, implica a procura de numerosos produtos, por exemplo, serviços de saúde de qualidade», argumentou Olivier Blanchard. «Promover um desenvolvimento deste tipo através de infra-estrutura e de coordenação parece mais prometedor do que iniciar a partir do nada um novo sector de alta tecnologia» [2]. Se, como eu sustento, Portugal já não existe, nada mais óbvio do que transformar um país defunto num lar de idosos.

O ataque aos salários

Entretanto a situação piorou. Os défices, que já não estimulam nada excepto a crise, continuam em patamares muito elevados e os portugueses estão tão habituados à ladainha dos maus números que parece impossível dar-lhes novidades a este respeito. Não há dúvida. Durante mais de uma década este país pobre, um dos mais pobres da União Europeia, gastou mais do que ganhava. O que significa que os empresários portugueses têm sido totalmente incapazes de incutir na economia um nível de produtividade que satisfaça mesmo um baixo nível de vida. E agora apresentam aos trabalhadores a factura da sua incompetência. Para que o capitalismo português se torne competitivo existem apenas duas alternativas:

– ou se consegue que a taxa de aumento da produtividade ultrapasse a taxa de aumento dos salários,
– ou se diminui a taxa de crescimento dos salários.

Como estas alternativas não se excluem, seria possível combiná-las em doses variadas. Porém, o crescimento da produtividade depara com obstáculos institucionais, que se resumem à incompetência das classes capitalistas em Portugal. De qualquer modo este seria um processo moroso, numa situação em que as pressões dos credores externos são urgentes e não abrandam, tanto mais que a componente estrangeira da dívida pública portuguesa é superior à da grega. Resta uma única solução rápida. O aumento da competitividade só pode resultar de uma baixa salarial, que torne as exportações portuguesas mais concorrenciais. Numa situação em que é vedada a depreciação cambial, que provocaria uma queda no nível externo dos salários, resta a queda do seu nível interno. O capitalismo português não tem outro programa para oferecer e é esta a verdadeira função das medidas que se pretendem destinadas a reduzir o défice.

Nenhum economista ignora que aplicar a austeridade para diminuir o défice numa situação de recessão provoca um círculo vicioso. A actividade económica declina mais ainda e leva à diminuição do volume total dos impostos, e ambos estes factores conduzem ao aumento do défice, continuando a alimentar a desconfiança dos credores externos. Com a acumulação de défices, a dívida pública do país, que em 2006 havia atingido 68% do PIB, correspondeu a 115% do PIB no final de 2011, e o FMI prevê que chegará a 118% em 2013, na hipótese optimista de o governo continuar fiel ao programa combinado com a troika constituída pela Comissão Europeia, pelo Banco Central Europeu e pelo FMI. Não são os défices que importa reduzir, mas os salários.

Ora, numa situação em que a taxa de inflação é obrigatoriamente baixa, desaparece a possibilidade de manter ou elevar a taxa de crescimento dos salários nominais e baixar os salários reais mediante um aumento dos preços dos bens e serviços superior ao aumento dos salários. Uma forma indirecta de baixar os salários reais consiste no desmantelamento de serviços públicos, de maneira a que os trabalhadores distribuam a remuneração por um maior número de despesas. Mas não creio que seja suficiente para os patrões portugueses diminuir a taxa de crescimento dos salários nominais e terão de procurar uma redução do próprio montante nominal dos salários.

Diversificação social do desemprego

Ao mesmo tempo que procede à demolição daquilo que em Portugal nunca chegou a ser um Estado de bem-estar social, o capitalismo recorre ao aumento do desemprego como uma das formas tradicionais de pressionar a baixa dos salários. De acordo com as previsões do governo no orçamento para o ano corrente o desemprego deverá atingir 13,4%, mas a Comissão Europeia prevê 13,8%, 13,6% em 2013, 12,5% em 2014 e 11,6% em 2015. O certo é que em Fevereiro de 2012 o desemprego atingiu já 15,0%, enquanto era ainda de 12,3% no mesmo mês do ano passado, e subiu para 15,3% em Março. E entre os jovens o desemprego já ultrapassou 36%.

Talvez a situação da Grécia ajude a aprofundar o problema. Em Janeiro de 2012 a taxa de desemprego grega era de 19% e estava a subir. Entre os jovens o desemprego era superior a 47% e estava igualmente em ascensão. 1/5 da população caíra abaixo da linha definidora da pobreza. No entanto, até ao começo de 2012 a perda de empregos verificara-se toda ela no sector privado. Onde sobretudo se sentiu a crise foi nas empresas com menos de cinquenta trabalhadores, que constituem 99% do total e empregam 3/4 da força de trabalho do sector privado. Fora neste âmbito que se verificara o declínio do emprego. Até Janeiro de 2012 o funcionalismo público sofrera um corte salarial de 13,5% e reduções em benefícios, mas não sofrera uma perda líquida de empregos. Optara-se em vez disso por substituir os funcionários que se reformavam [aposentavam] por um número menor de novos funcionários. Esta discrepância explica muito possivelmente o perfil assumido pelas lutas sociais na Grécia nos últimos anos, em que estudantes, desempregados e precários se confrontaram nas ruas com a polícia em episódios de grande violência, enquanto os sindicatos, poderosos sobretudo no sector público e reunindo trabalhadores com maior estabilidade de emprego, realizavam ordeiramente as suas greves. Ora, no estado a que a Grécia chegou não pode continuar esta restrição do desemprego ao sector privado. O governo vê-se obrigado a rentabilizar as empresas e serviços públicos, o que significa sempre pôr menos trabalhadores a fazer mais trabalho, e assim, em Fevereiro de 2012, perante as repetidas pressões da troika, o governo decidiu a supressão de 15.000 empregos no sector público. Isto não poderá suceder sem um confronto directo com os sindicatos.

Será demasiado optimismo meu esperar que os precários portugueses extraiam a lição do caso grego? Quanto aos sindicatos portugueses, sei que a irão extrair, mas também sei de que maneira o hão-de fazer.

Generais ou bombeiros?

O mais curioso é que numa situação em que de um lado o governo corta despesas e do outro lado a população reclama contra os cortes, ninguém se lembre de impor a austeridade onde ela seria mais óbvia.

Ao arcaísmo e à ignorância crassa de uma parte considerável do empresariado português corresponde o peso de outro sector igualmente retrógrado, as forças armadas. Segundo os dados fornecidos pelo Banco Mundial, baseados nos critérios definidos pela NATO, as despesas militares em Portugal corresponderam a 2,1% do PIB em 2010, tendo correspondido a 2,0% em 2006. Ora, nas condições da guerra moderna Portugal é um país indefensável nas suas fronteiras, e outros pequenos países europeus também com fronteiras indefensáveis canalizam para as forças armadas percentagens do PIB muito inferiores à portuguesa, desde a Áustria, que gastou 0,9% do PIB em 2010 (0,8% em 2006), até à Letónia, que gastou 1,1% em 2010 (1,8% em 2006). Compreenderemos melhor o problema se soubermos que entre os pequenos países membros da União Europeia só a Grécia esbanja com os militares uma percentagem do PIB superior à portuguesa, 3,1% em 2010 (2,9% em 2006). Não se trata decerto de uma coincidência.

Um aumento substancial da produtividade implicaria profundas remodelações sociais e de mentalidade no meio empresarial, o que exige tempo. Entretanto, como observei num artigo publicado neste site, o governo poderia evitar alguns cortes de despesas nocivos para a economia se efectuasse uma poupança considerável reduzindo as forças armadas a um corpo de bombeiros e de patrulhas marítimas. Parece-me que em ambas estas questões a esquerda portuguesa perdeu uma grande oportunidade. Já não é a primeira que perde, nem será a última. A esquerda podia ter aproveitado para denunciar os capitalistas como classe, expondo a sua incapacidade estrutural para responderem de maneira minimamente eficaz aos desafios económicos, e para denunciar a sociedade capitalista globalmente, expondo o papel parasitário das forças armadas. Mas em vez disso preferiu gastar o tempo com acusações a um primeiro-ministro, como se a economia e a sociedade dependessem de um primeiro-ministro. E assim a luta de classes foi substituída pela futilidade politiqueira. As consequências, em termos de mobilização popular, são trágicas.

Entre a resignação e não sei o quê

Há um ano e meio um grupo de economistas de esquerda considerou que «sair da zona euro exigiria — pelo menos — a propriedade pública e o controlo público sobre os bancos e outras áreas da economia, um amplo controlo de capitais, a remodelação do sistema fiscal de maneira a incluir os ricos e o capital, a introdução de uma política industrial e uma profunda reestruturação do Estado». Por isso, o abandono da zona euro «exige alianças políticas e sociais radicais» [3]. Mas enquanto a maioria dos trabalhadores recear que as lutas não abram qualquer nova alternativa e se limitem a desestabilizar uma situação económica já de si tão insegura, as vanguardas mais activas não contarão com um respaldo de massas. Por outro lado, ninguém sabe, ninguém nunca soube, a partir de que décima percentual as situações se invertem e o receio e a resignação dão lugar a um sentimento de saturação em que qualquer alternativa é considerada melhor do que o presente.

Talvez venha a propósito recordar que o número de portugueses que solicitou pela primeira vez autorização de uso de armas de fogo subiu 20% em 2011. Nesse ano o número de armas licenciadas em Portugal aumentou de 19.000 e no começo de 2012 somava 1,4 milhões. Entretanto, o número de estabelecimentos de venda de armas cresceu 10% em 2011. Pode ser que isto queira dizer alguma coisa, mas quem tem medo de quê?

 

Notas

[1] Francisco Louçã, Portugal Agrilhoado. A Economia Cruel na Era do FMI, Lisboa: Bertrand, 2011, págs. 107 e 181-182.
[2] Olivier Blanchard, «Adjustment within the euro. The difficult case of Portugal», Portuguese Economic Journal, vol. 6, nº1, 2007, pág. 13.
[3] C. Lapavitsas, A. Kaltenbrunner, G. Lambrinidis, D. Lindo, J. Meadway, J. Michell, J.P. Painceira, E. Pires, J. Powell, A. Stenfors e N. Teles, The Eurozone between Austerity and Default, Research on Money and Finance, Setembro de 2010, pág. 3. Estas condições foram mais detalhadamente analisadas nas págs. 52-54.

Esta série reúne os seguintes artigos
1) um historial de problemas
2) monetarismo e austeridade
3) ai, ai Portugal

4 COMENTÁRIOS

  1. Portugal está caminhando para um rumo ecológico….

    A parte sobre o caráter nostálgico da esquerda atual é muito importante, todos só querem louvar o passado imaginado, nunca encarar o presente, criar, inovar.

    A parte sobre fim do capitalismo parece resmungo de velho. Todos querem somente tornar o presente mais respirável, o capitalismo menos sádico. A perspectiva de ou outra sociedade sei lá o que está fora de cogitação e o capitalismo derrotou todas as tentativas nos últimos 200 anos.

  2. Caro João,

    Me interessei bastante pela sua análise da classe empresarial portuguesa. Fato que me fez pensar sobre a classe empresarial brasileira. Entretanto, esta deve ser um pouco distinta daquela devido ao seu ímpeto imperialista. Comento isso de acordo com leituras feitas aqui mesmo no Passa Palavra.
    Por outro lado, as fotos chamaram minha atenção nesta série de artigos. Gostaria de saber qual foi sua intenção ao colocá-las para ilustrar o texto.

  3. Caro Ignácio,
    Na perspectiva adoptada neste artigo, parece-me que o empresariado brasileiro tem características opostas ao empresariado português. 1) O capitalismo brasileiro beneficia de uma conjugação social inestimável, com um microempresariado extremamente dinâmico, formado na duríssima escola da luta pela sobrevivência, e uma alta tecnocracia muito competente. Tem sido esta classe de gestores a garantir um eixo de continuidade ao capitalismo brasileiro e a assegurar-lhe uma ascensão contínua, apesar das atribulações da vida política. A população brasileira entretém-se com os escândalos de deputados, governadores e ministros, enquanto a alta tecnocracia estabelece discretamente orientações sólidas para o governo do país. 2) No Brasil, ao longo das últimas décadas, a expansão do ensino universitário, tanto público como privado, assegurou não só uma melhoria na qualificação da força de trabalho como também na qualificação da tecnocracia. Por outro lado, esta expansão do ensino universitário constitui uma enorme oportunidade de promoção social, mais frequentemente uma promoção no interior das mesmas classes sociais e só raramente uma ascensão de classe.
    As ilustrações do texto representam vários detalhes da calçada à portuguesa, o que pareceu adequado num artigo que trata de Portugal. Além disso, nos desenhos escolhidos há certas oscilações e espirais que parecem simbolizar as inquietações da economia do país.

  4. Vejo algumas semelhanças entre o quadro aí e o do Brasil atual (todos os números, muitos deles eram bons, piorando sem parar). Período de crescimento será seguido por longa recessão? Não sei.

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