Ao iniciarmos debates, ao desenvolvermos o sentido crítico, ao colocarmos em causa lugares-comuns admitidos por preguiça mental ou por oportunismo político, estamos a adiantar propostas. Por Passa Palavra
Para evitar confusões, talvez mais deliberadas do que inocentes, insistimos que só representam a posição do coletivo Passa Palavra os artigos que, como este, são assinados Por Passa Palavra.
Qual será a posição que deve ocupar um veículo de comunicação ou uma iniciativa político-editorial como é o Passa Palavra?
O Passa Palavra já várias vezes provocou um certo escândalo ao incentivar o debate público sobre a estratégia e a forma de organização dos movimentos sociais, temas que habitualmente se restringem às instâncias internas de decisão. Fizemo-lo, e continuaremos a fazê-lo, porque entendemos que a luta não é propriedade de ninguém e pertence ao conjunto de todos nós. Quando uma luta vai para a rua, deixa de dizer respeito apenas ao movimento que a desencadeou. Na mesma perspectiva, já publicamos algumas vezes textos que revelaram debates internos do nosso coletivo ou fizeram referência direta aos nossos objetivos e formas de trabalho. Por isso nos parece conveniente trazer agora a público um recente debate interno, suscitado por uma crítica à nossa linha editorial.
Somos um site anticapitalista, temos princípios políticos definidos e públicos. No entanto, não somos uma organização política propriamente dita, não somos um movimento social, muito menos um partido político. Somos um coletivo autogerido que através de um site se propõe a noticiar as lutas sociais, apoiá-las e pensar sobre elas.
Isto significa que não funcionamos como setor de comunicação interna de um movimento social. As organizações e movimentos costumam ter órgãos onde emitem os comunicados que expressam as decisões internas ou que desempenham um papel formador, promovendo a agitação e propaganda e a mobilização das bases. Não é esta a vocação do Passa Palavra, simplesmente porque já existe quem faça isso. A nossa única distinção é fazermos o que poucos fazem ou quase ninguém faz. Senão, seríamos inúteis.
Se as lutas não têm dono, tampouco o tem a sua reflexão. A tarefa de todas e todos os lutadores anticapitalistas, para diminuir as probabilidades de novas derrotas e para fortalecer as possibilidades de alcançar e consolidar conquistas teóricas e organizativas, é a de educarem-se no combate contra o dogmatismo e a demagogia. Fazendo sua parte, o Passa Palavra vem-se dispondo, desde seu lançamento e nos termos de seu programa político-editorial, a recepcionar as colaborações de tantos quantos queiram somar-se a um balanço crítico desta luta social que vá além do capitalismo.
Por isso, além de defendermos posições próprias, expressas nos artigos assinados pelo coletivo, pretendemos ser uma tribuna de debates que aceita artigos com opiniões diferentes das nossas, desde que se enquadrem no anticapitalismo e no internacionalismo. E concordamos que esses artigos sejam assinados por coletivos, indivíduos, pseudônimos ou siglas. Esta é uma das condições para que o debate se torne possível sem retaliações nos locais de trabalho e para evitar o linchamento moral, que infelizmente se faz com demasiada frequência nos meios políticos.
E assim chegamos ao centro da questão. Em alguns meios o Passa Palavra é acusado de fazer muitas críticas e poucas propostas. Disseram-nos que duas dezenas de leitores, do Recife ao Rio Grande do Sul, pensam de forma semelhante. Apesar de não compreendermos em que se baseia tal contabilidade e de imaginarmos que o número de descontentes com nosso site seja ainda maior, enxergamos aí duas questões a serem pensadas. Uma, a de pretender que as críticas não contêm, por si mesmas, quaisquer propostas. A outra, a de pretender que desvendar as contradições e os limites de uma luta implicaria que nos posicionássemos exteriormente a ela.
Criticar um movimento de que se faz parte não é tarefa fácil, e a prática de muitas organizações é de não estimular a reflexão sobre os caminhos, entendendo que esse trabalho competiria a um só setor, os intelectuais e a direção. Nesta perspectiva, apenas caberia aos militantes o trabalho de executar as tarefas de acordo com a linha estratégica, sem colocar em debate os próprios rumos do movimento. Porém, se um militante for rechaçado por fazer a crítica da sua organização, isto significa que a organização abandonou seu caráter revolucionário. Refletir sobre a prática e o cotidiano dos movimentos por fora das instâncias diretivas faz perder o controle da crítica e, em certa medida, estimula visões diferentes do rumo tomado. É precisamente por este motivo que a atividade crítica contém em si uma proposta — a de romper com o monopólio da reflexão estratégica.
Dizem-nos, empregando uma palavra que até há pouco tempo não existia nos dicionários mas entretanto se generalizou, que não somos propositivos. O que certamente não somos é ingênuos, e aqueles que nos fazem essa crítica estão na verdade dizendo que as nossas propostas são diferentes das deles. Se nós não fôssemos propositivos eles não se preocupariam nada, porque isso implicaria que nós não teríamos nenhuma repercussão prática. Ora, o que os preocupa é precisamente o fato de nós sermos propositivos à nossa maneira. O Passa Palavra pretende abrir a estratégia à discussão de todos, de modo a permanentemente detectar pontos fracos e encetar caminhos inovadores. Em sentido contrário, para os grupos e movimentos políticos tradicionais as propostas já estão elaboradas e as receitas prontas; por isso a atividade pública desses grupos e movimentos não consiste em discutir estratégias mas em proclamar palavras de ordem. A isto chamam trabalho de base, como se às bases coubesse unicamente a tarefa de aplicar orientações já decididas, e não de refletir sobre essas decisões.
Um posicionamento crítico exige que não fiquemos alheios aos rumos das lutas sociais, nem apoiando cegamente nem criticando sem fundamento. Um posicionamento crítico demanda uma postura de mediação ativa, construindo junto a todos os lutadores a outra sociedade que queremos. Sobretudo hoje, quando a profusão e a difusão dos meios de comunicação digitais faz com que a dimensão imagética dos movimentos acabe muitas vezes substituindo as relações sociais concretas que estes movimentos deveriam construir, não nos devemos embalar com o ar sempre triunfalista que caracteriza os comunicados oficiais. Essas são as máscaras com que as direções dos movimentos encobrem tanto as vitórias parciais como as derrotas efetivas, conduzindo-nos, muitas vezes, a um certo automatismo. A reflexão crítica a que nos propomos deve interromper o mero desenrolar das ações cotidianas das lutas, deve se atentar para as condições em que essas lutas se desenvolvem e nos obrigar, assim, a tomar posição sobre os rumos e o nosso papel nas lutas sociais.
Sucede com frequência que somos críticos de um movimento, mas participamos nele e pensamos que é possível mudar as coisas por dentro. Então, esperamos que essas mudanças ocorram, antes de ser necessário fazer um texto público. Mas, se as mudanças não ocorrem, nós vamos sendo cooptados por aquilo em que não acreditamos. Vamos fazendo vistas grossas até o momento em que, ou calejados pelo hábito, ou sequestrados porque dependemos profissionalmente do movimento, ou viradas as convicções do avesso porque adotamos o oportunismo reinante, passamos a acreditar que as coisas devem ser assim mesmo. E deste modo a única crítica aceitável e propositiva passa a fazer-se atrás de portas fechadas, entre as direções do movimento ou entre intelectuais autorizados a falar pelo movimento. Infelizmente, este tipo de armadilha não é uma novidade. Foi assim que se gerou, no stalinismo, toda a tragédia da esquerda.
O apoio crítico a que o Passa Palavra se propõe demanda uma postura militante de cada membro do coletivo. Às vezes com algumas limitações e em diferentes níveis de atuação, participamos em várias lutas sociais. E a autonomia que muitas vezes mantemos em relação a certos movimentos não constitui um obstáculo à participação nas lutas, pelo contrário, constitui uma garantia de que podemos ir mais além do que convém a alguns jogos de alianças políticas e a alguns oportunismos táticos. Mas se não tivéssemos, todos e cada um de nós, experiência prática das lutas em diversos países e em variadas épocas não conseguiríamos fazer uma só análise crítica pertinente. O fato de as fazermos, e de elas incomodarem, é prova suficiente de que participamos e conhecemos daquilo que estamos tratando.
Esta independência crítica constitui para nós um critério não só político mas também econômico. Diferente de outros meios de comunicação, o Passa Palavra não se sustenta da venda de informações ou do subsídio de algum governo. Não somos comunicadores progressistas, mas militantes que fazem comunicação, isto é, escrevemos sobre manifestações e movimentos do qual participamos ou com que mantemos contato. Assim podemos preservar a autonomia na crítica. Por um lado, não seremos demitidos pelos donos do site, quer se chamem patrões quer se chamem chefes políticos. Por outro lado, não exploramos as lutas sociais capitalizando sua dimensão simbólica, através de anúncios no site, por exemplo. Aproveitamos o fato de que, graças à internet, manter um veículo de comunicação virtual é muito menos custoso e mais acessível do que produzir material impresso.
Entendemos que, para além de apontarmos as mazelas produzidas pelo capitalismo e nos posicionarmos contra a cobertura das grandes corporações de mídia, num trabalho de desconstrução das mentiras que nos são impostas, devemos também enfatizar a reflexão crítica sobre as limitações e contradições de nossas lutas e organizações e sobre os caminhos que levaram à nossa derrota. Isto exige a coragem de reconhecer que fomos vencidos. Não só de o reconhecer, mas de o afirmar publicamente. E não só de o afirmar, mas de erguer a partir daí as nossas reflexões. Não adianta dizer o quanto somos bons ou o quanto somos injustiçados e o quanto eles são maus, mas importa reconhecer que, se fomos vencidos, é porque fomos fracos. Por isso, a reflexão sobre nossas fraquezas já é, por si mesma, uma proposta política. Essa reflexão implica, mais uma vez, que pensemos sobre nossos limites e procuremos saídas para os desafios com que deparamos.
Ao iniciarmos debates, ao desenvolvermos o sentido crítico, ao colocarmos em causa lugares-comuns admitidos por preguiça mental ou por oportunismo político, estamos a adiantar propostas, uma vez que a política é, por definição, um campo cujos acontecimentos não podem ser tratados sem ao mesmo intervir nos seus desdobramentos. É esta a nossa proposta política e é com ela que procuramos nos diferenciar de outras propostas políticas. Nesse sentido, entendemos que projetos que tenham a finalidade de estimular a reflexão crítica são capazes de adiantar muito mais propostas do que aqueles que se confinam a receitas ideológicas e a manuais de correta atuação política. Não entender que a reflexão crítica é, por si mesma, propositiva significa cair no dogmatismo, que consiste na escolha de ideias já feitas. Então, ou temos um esforço crítico ou um fast food ideológico, que, se não é paralisante, mobiliza apenas para a produção do consenso.
Parabenizo o coletivo pelo texto! Muito lúcido e direto ao assunto.
Apenas faria a ressalva de que “Não entender que a reflexão crítica é, por si mesma, propositiva significa cair no dogmatismo” se trata de uma frase com uma retórica de dois gumes.
As vezes é tenue a linha que separa um texto argumentativo qualquer de uma reflexão crítica, ou melhor, essa diferença muitas vezes é justamente o “x” de algumas disputas relativas a um ou outro tema polemizado aqui no site.
Se por uma lado há de se concordar que a reflexão crítica é o meio que pavimento o caminho para a construção de propostas, quem será o iluminado que atestará se tratar desde ou daquele texto uma verdadeira crítica e não uma mera verborragia ou argumentos enviesados, análogos aos que podem ser lidos na grande imprensa?
Para combater esse tipo de impasse me parece que o site já conta com a tradição de dar direitos de resposta e estimular o debate na parte de comentários, única maneira de não cristalizar os discursos que o coletivo apresenta. Fora isso, me parece que as reclamações tendem a ser de fato apenas mágoas pelo site não compartilhar alguns pontos de vista, ou de não dar o suficiente destaque para eles (o que é natural no contexto da comunicação da internet atual, onde as pessoas buscam as informações e os pontos de vista em sites específicos, os meios não tem mais que defender uma pretensa neutralidade)
Sinto que o texto seria bom se fosse mais claro nas suas motivações, para que soubéssemos a quê responde.
Confesso que fiquei um pouco desapontado com a mensagem do texto. Pelo título, achei que se tratava de um pedido aos leitores para que fizessem as suas críticas e propostas ao coletivo Passa Palavra a partir de um balanço interno apresentado a eles (fica a sugestão para que isso seja feito algum dia). Antes mesmo de ler o texto, já esboçava em minha mente algumas sugestões. Porém, ao ler, percebi um tom fechado e defensivo que tem sido bastante frequente em outros textos do coletivo ou dos seus membros. Tenho dúvidas quanto à eficácia política desta postura, embora a proposta política de se debater o papel da crítica seja realmente urgente e necessária.
Concordo plenamente que os movimentos não devem temer a crítica mútua e que, ao contrário, precisam aprender a fazer da crítica a fonte da sua força e constante renovação, para conseguir enfrentar os tenebrosos horizontes de um capitalismo cada vez mais totalitário que vem se instalando em nossas vidas pela ação das grandes corporações. Parabenizo o coletivo por se posicionar desta maneira.
Infelizmente, a crítica ainda tem sido feita de modo predominantemente restritivo (internamente) ou destrutivo (externamente) e nenhum movimento de esquerda parece escapar disso. Talvez seja, aliás, um círculo vicioso, já que deixar a crítica correr por fora das cúpulas parece armar os “inimigos”, enquanto que os ataques destrutivos externos levam a reações defensivas. Quando a crítica vem de “dentro”, mesmo de dentro da “cúpula”, com frequencia isso resulta na marginalização ou expulsão do militante, quando não ocorre o pleno linchamento moral por seus pares.
No entanto, permanece a impressão de que o que o próprio Passa Palavra tem dificuldade em aceitar e aproveitar as críticas para fortalecer-se e renovar-se. Essa impressão se deve ao uso que faz neste e em outros textos de adjetivos que desqualificam moralmente e de forma genérica aqueles que fazem uma crítica externa ao coletivo. Nada mais natural. Estranho seria se o coletivo pretendesse estar em algum lugar puro, para além das contradições da história.
Em todo caso, pequenas mudanças táticas em textos como este acima (retirar algumas expressões?) ou algumas mudanças de caráter mais estratégico (dar mais espaço para a comunicação horizontal do sítio) levariam, ao meu ver, a uma eficácia bem maior para a proposta do coletivo. É bom lembrar que se ensina bem mais através do exemplo, com o que se faz, do que com o que se diz.
Mas louvo a iniciativa. A simples elevação do foco para este tema pode contribuir para que “internos” e “externos” de quaisquer movimentos que frequentem este sítio façam uma boa reflexão sobre o papel da crítica dentro e fora dos seus movimentos, a necessidade da ligação entre crítica e prática, numa “práxis comunicativa”, e sobre os enormes desafios que ainda teremos que enfrentar para que nossos movimentos consigam desenvolver tais práticas.
Como disse o primeiro comentário, “muito lúcido e direto ao assunto”, como costumam ser os textos assinados pelo coletivo. Todavia, partilho, também, da proposta do segundo comentário, a de que ficasse mais claro a quem/ao que responde.
Engraçado é que parece que o terceiro comentário acabou por dizer do artigo exatamente uma das primeiras questões a que ele toca, o fato de ser (ou não) propositivo… O texto que faz a crítica é criticado por não ser o que acabou de argumentar, de fato, ser. Ó céus.
Estive assistindo uma entrevista do Zizek uns dias atrás, e ele trouxe a ideia de que ficamos tão preocupados nos últimos 150 anos em dar uma caráter prático a filosofia e suas reflexões, tentando tanto transformar o mundo que talvez seja o momento de fazer exatamente o inverso: afastar-se e pensar profundamente sobre essas tantas tentativas que nos mantiveram onde estamos, ainda!
Nisso, e em muito mais, o Passa Palavra e seus colaboradores me auxiliam a cada dia.
O grande mérito de todo o texto está na parte que diz que devemos partir do fato de que fomos derrotados. Os 200 anos de derrota do anticapitalismo deve ser o eixo, a consciência profunda, de qualquer movimento ou luta.
No geral, faço minhas as palavras do Theo. Entretanto, não sei se teria sido estritamente necessário (ou mesmo razoável) querer “especificar” de onde partem certas objeções e desqualificações – objeções e desqualificações essas tão, tão antigas e “carimbadas”… Do meu ponto de vista, o Passa Palavra é, em nosso cenário de devastação político-intelectual, uma trincheira que se vai tornando mais e mais indispensável. É um alento saber que, a despeito de tudo, há um Passa Palavra, a instigar e provocar, a desafiar, a exigir que se esteja à altura de um pensamento (e de uma ação!) que mereça(m) o nome de CRÍTICO(s).
Interessante o texto para uma análise da ´´linha editorial´´ do Passa-Palavra. Obrigada por aclarar várias coisas. É inegável a riqueza de vários artigos e materiais que encontramos no site. Mas toda postura CRÍTICA também passa pela AUTOCRÍTICA. Se era um texto sobre a postura do PP, é visível a ausencia de críticas das ´´fraquezas´´ e ´´limites´´ do próprio site, ao contrário de mostrarem que são ´´fracos´´, com certeza o fato mostraria que sao ´´fortes´´ inclusive pela claridade que possuem dos seus pontos fracos. Também gostaria de comentar que a crítica não tem necessidade de ser propositiva, pode ser NEGATIVIDADE também. Agora é questao aberta e debatível se negatividade seja uma proposta, apesar de que por seu próprio conceito nao é. Um dos pontos que pra mim é evidente nesse site é justamente que o coletivo do PP nao possui um consenso (consciente ou nao) sobre o tema (que bom!). Porque pra muitas e muitos, a crítica por si mesma é propositiva e pra outras e outros é negatividade. Nessa última, entraria parte do coletivo PP, que eu não classificaria como ´´militante´´, mas sim como intelectuais honestamente comprometidos com a luta social (antigamente se dizia ´´intelectual organico´´), inclusive os seus vínculos com a universidade/academia são notórios. Finalmente, parabenizo ao grupo pela iniciativa e espero encontrar muito em breve algum texto sobre a auto-crítica do coletivo, esperando que já estejam discutindo e refletindo sobre o tema e que possam trazer mais esse debate para o ´´exterior´´ do grupo. Longe de ser ´´voyerismo´´ e de expor problemas internos, com certeza seria uma postura que alguns leitores e leitoras já percebemos e estamos esperando que surja em algum momento. Até lá, vamos caminhando…