Os espaços reservados às moças, longe de contribuírem para qualquer emancipação feminina, eram uma parte constitutiva do puritanismo salazarista. Por Rita Delgado e João Bernardo
Contrariamente a alguns fascismos que eram libertinos ou promíscuos, em especial o nacional-socialismo germânico, o fascismo português era beato e puritano e impunha em todos os lugares uma rigorosa divisão entre os sexos. Havia liceus masculinos e liceus femininos — em Portugal metropolitano, mas não nas colónias — e embora nos dois últimos anos do curso liceal, por razões de espaço, as turmas fossem mistas, durante os intervalos os recreios na generalidade dos casos eram separados. As universidades eram mistas, mas ali o fascismo criou, pelo menos em algumas delas, as Salas das Alunas, porque fazia parte da ideologia oficial do regime que as raparigas [*] precisavam de ter lugares onde pudessem estar só entre elas, sem presenças masculinas. Por isso era proibida a entrada de rapazes nas Salas das Alunas. Estes espaços reservados, longe de contribuírem para qualquer emancipação feminina, eram uma parte constitutiva do puritanismo salazarista. Além disso, pela divisão que criavam entre os jovens de cada um dos sexos, contribuíam para o enfraquecimento de uma tomada de consciência colectiva.
As Secções de Convívio
Foi neste contexto que começaram a ser criadas nas Associações de Estudantes as Secções de Convívio.
Convém, para quem não o saiba, resumir em escassas linhas uma história bastante mais complicada, mas em termos simples, quando o governo de Salazar decretou a fascização dos sindicatos, no começo da década de 1930, o sindicalismo universitário escapou porque todo ele se inseria então, pelas suas opções ideológicas, no movimento de juventude fascista. Isto permitiu que mais tarde, a partir da década de 1950, quando um número cada vez mais significativo de estudantes universitários começou a afastar-se do regime fascista, os opositores conseguissem ser eleitos para a direcção de Associações de Estudantes que escapavam às determinações rígidas do sindicalismo oficial. A grande greve estudantil de 1962 assinalou a separação definitiva entre as universidades e o fascismo, mas então era já tarde demais para que o governo tentasse inserir as Associações de Estudantes no quadro do corporativismo fascista. O governo perseguia o Partido Comunista, clandestino, muito dinâmico no meio estudantil (como depois o seriam também os grupos esquerdistas clandestinos), cujos militantes eram presos, torturados e condenados; dissolvia as Associações de Estudantes de algumas Faculdades; instaurava processos disciplinares contra os estudantes mais activos, de que resultavam suspensões e expulsões — mas apesar de tudo isto as Associações de Estudantes continuaram a existir com autonomia legal nas Universidades. Nos liceus, onde não havia Associações, elas foram criadas no início da década de 1960, também por iniciativa do Partido Comunista; mas como o regime não as reconhecia legalmente, existiam numa zona jurídica difusa, enquanto Pró-Associações. E também para os membros destas Pró-Associações liceais não escassearam as expulsões e as prisões.
No começo dos anos sessenta o Partido Comunista tomou a iniciativa da criação, nas Associações de Estudantes, de Secções de Convívio. Dizia-se então nos meios do Partido que a ideia se devera originariamente a Pedro Ramos de Almeida. As Secções de Convívio destinavam-se a oferecer uma sala onde rapazes e raparigas pudessem reunir-se, conviver. Não se tratava de organizar bailes, porque disso o fascismo se encarregava. Os bailes eram praticamente a única forma de convivência entre jovens dos dois sexos admitida pelo governo de Salazar, o que instilou na esquerda daquela época uma profunda aversão aos bailes. As Secções de Convívio não pretendiam também organizar eventos culturais, debates ou palestras ou audições de música, porque para isso existiam já as Secções Culturais. Não se destinavam também a facilitar namoros, porque apesar do puritanismo do regime, da proibição de nos beijarmos em público ou mesmo de andar de mão dada em público, as pessoas não eram palermas. As Secções de Convívio destinavam-se, de modo singelo, a proporcionar um espaço de encontro e de fraternização. Conversava-se informalmente, em conjunto ou em pequenos grupos, havia um gira-discos, aqueles arcaicos aparelhos de som, as pessoas levavam discos ou doavam-nos, e assim as Secções de Convívio constituíram a base daquilo para que as próprias Associações de Estudantes serviram de maneira mais ampla — para que além de sermos raparigas ou rapazes fôssemos em conjunto seres humanos.
Onde o fascismo dividia, criando liceus separados, recreios separados e Salas de Alunas em que as jovens estudantes pudessem estar entre elas, sem a presença de rapazes, a esquerda unia, criando Secções de Convívio, em que raparigas e rapazes aprendessem a superar as divisões culturalmente construídas entre os sexos e a ser na prática seres humanos integrais.
De certo modo, o Cine-Clube Universitário serviu acessoriamente a mesma finalidade. No final da década de 1950 ocorreu por todo o país uma vaga de criação de cine-clubes, inspirada pelo Partido Comunista, a que rapidamente a PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado, a polícia política do fascismo salazarista) pôs termo com a violência habitual. Além do Cine-Clube católico, que não foi dissolvido porque a Igreja era uma parte constitutiva do regime, salvou-se o Cine-Clube Universitário, porque o número de sócios era já tão grande que a sua dissolução seria demasiado escandalosa. Tratava-se da única instituição onde podiam reunir-se estudantes de todas as Faculdades de Lisboa, e reuníamo-nos com o mesmo espírito de fraternidade e de convivência que presidira à criação das Secções de Convívio e que mais amplamente inspirava as Associações de Estudantes.
Não brincávamos ao faz de conta. Arriscávamos, no mínimo, o prosseguimento regular do curso universitário, e o número de estudantes expulsos, rapazes e raparigas, somou várias centenas. No máximo, arriscávamos a liberdade, e muitos foram os dirigentes e activistas das Associações de Estudantes, raparigas e rapazes, presos, torturados, condenados a anos de prisão. Tudo isso por causa das Secções de Convívio? Não. Tudo isso por causa da busca de um ser humano integral, para quem as divisões entre os sexos sejam cada vez menos um factor pertinente.
O fim de uma Sala de Alunas
Foi no Outono de 1968 em Lisboa. Gozava-se a limitada liberalização trazida por Marcelo Caetano, após a queda de Salazar da cadeira, que o incapacitou. O lema com Salazar era a mulher como fada do lar, para servir o marido e os filhos. Com Marcelo pouco mudou…
Mas as Associações de Estudantes eram raros baluartes de liberdade. Nesse tempo a AEIST (Associação de Estudantes do Instituto Superior Técnico ou simplesmente do Técnico, a instituição que formava engenheiros e a de maior reputação do país) era o pólo aglutinador de toda a esquerda. Ali se reuniam os organismos federativos de estudantes, organismos que coordenavam a acção das Associações de todas as Faculdades, não previstos na leis mas também não proibidos, existentes numa zona de sombra que denominávamos alegal. Era também na AEIST que os copiógrafos, destinados oficialmente a imprimir as sebentas para os alunos, estavam ao dispor do movimento estudantil para imprimir comunicados, distribuídos à saída das aulas, e para imprimir a demais imprensa, nomeadamente o Binómio, boletim da Associação. Para além da imprensa, a Associação do Técnico dispunha de cantina para almoços e jantares e de bares, de uma cabine sonora que emitia às horas das refeições noticiários e canções de protesto, de um ginásio e de uma agência de viagens, para além de dispor de salas para reuniões.
O Outono de 1968 seguiu-se às grandes revoltas estudantis em França, em Maio e Junho daquele ano, em que as estudantes tiveram um papel activo ao lado dos colegas e companheiros. Essas notícias, censuradas na imprensa, na rádio e na televisão pelo regime fascista, chegavam até nós graças à Associação. Importante foi o Binómio nº 35, publicado em meados de 1969, com o artigo “Mulher no Mundo”, sobre a emancipação feminina, o controlo pela mulher do seu próprio corpo, o aborto. O artigo apelava: “Organiza grupos de discussão de rapazes-raparigas sobre a situação da mulher na Universidade; sobre a repressão sexual a que estamos submetidos nós, os jovens. Organiza-te na crítica colectiva”.
Aquele artigo abriu horizontes a muitas estudantes, futuras engenheiras, que, embora tivessem aumentado em número com o boom do acesso à universidade nos meados dos anos sessenta, eram ainda uma minoria em quase todas as engenharias, excepto na química, onde nos primeiros anos do curso eram quase cinquenta por cento. Convém saber que em 1950 o número de mulheres no Técnico era de 60, correspondente a 5,6% do número total de alunos; em 1960 corespondia a 9,4% do total; e em 1970 éramos 468 alunas, correspondentes a 15,3% do total. Naquele tempo as estudantes estavam proibidas de usar calças, só podiam usar saias, e os estudantes eram obrigados a usar fato e gravata (fato azul escuro e gravata vermelha, de preferência), embora o convívio fosse livre entre colegas dos dois sexos.
Neste ambiente de um país sombrio, os jovens universitários e também os dos últimos anos dos liceus, através das suas Associações, procuravam liberdade e mais informação. Por outro lado, haviam começado as guerras coloniais — a guerra em Angola começara em 1961, na Guiné em 1963 e em Moçambique em 1964 — e como os rapazes beneficiavam de adiamento do serviço militar enquanto prosseguissem o curso universitário, eles tentavam o mais possível manter-se na Universidade, porque o fim do curso ou insucessos sucessivos implicavam a incorporação militar imediata e a consequente partida para as guerras coloniais. A alternativa era a fuga para o estrangeiro, por vias clandestinas.
Em reunião geral de alunos nos primeiros dias de Dezembro de 1968, os estudantes decidiram fazer um piquenique no átrio do Pavilhão Central do Técnico em protesto contra o aumento dos preços das refeições, reivindicando subsídios para a cantina. Como o director do Técnico tentou impedir a entrada dos estudantes no pavilhão, alguns entraram pela janela da Sala das Alunas. Na sequência, decidiu-se acabar com a Sala das Alunas.
Nestas Salas, inteiramente vedadas aos seus colegas rapazes, as alunas estudavam, comiam os seus farnéis e arranjavam-se nos muitos espelhos que havia em redor. Decidiu-se que aquela Sala deveria ser destinada ao convívio de ambos os sexos. Também em França, na Universidade de Nanterre, em 1968, os dormitórios das jovens haviam sido invadidos pelo Movimento 22 de Março. Entre nós decidiu-se algo equivalente e assim se fez no dia 4 de Dezembro de 1968. A direcção da Associação tinha raras raparigas e poucas colaboravam no seu funcionamento. As raparigas recorriam à Associação sobretudo para as refeições e demais serviços e eram muito poucas as que permaneciam à noite nas reuniões ou noutras tarefas da Associação. Foram então essas raras estudantes participativas que entraram na Sala das Alunas e a quem coube a espinhosa missão de tentar convencer as colegas da necessidade de abrir aquela Sala aos colegas do outro sexo. Não foi fácil e os argumentos foram difíceis de encontrar, mas conseguiu-se! A Sala passou a ser usada por todos e mais tarde transitou para os serviços de secretaria da Universidade. Tratava-se de uma sala pequena e a intenção não era tanto usá-la como sobretudo a de fazer um acto simbólico que chamasse a atenção para os problemas femininos. À entrada da Sala colocou-se uma faixa que dizia: ”Viva a revolução sexual!”.
Estas revoltas levaram a outras transformações, jamais voltadas atrás. As raparigas impuseram as calças como seu vestuário normal e os rapazes tiraram os fatos e as gravatas e passaram a frequentar as aulas como lhes apetecia, embora a discrição e as cores escuras reinassem nessa altura.
Na sequência destas movimentações estudantis, foi aprovada uma proposta de greve a partir de 9 de Dezembro de 1968. A Associação foi invadida pela PIDE no dia 7 de Dezembro e o Técnico foi fechado até Janeiro de 1969. A explicação da repressão foi dada pelo governo numa nota oficiosa publicada no dia seguinte na imprensa, atribuindo a culpa “à infiltração de um grupo de agitadores nas Associações de Estudantes […] Na mesma data verificou-se o arrombamento das portas de acesso às instalações privativas das alunas, por se ter entendido que tais instalações, de que fazem parte os serviços sanitários, representam ‘Discriminação sexual’.”
De então em diante o movimento estudantil não deixou de crescer nas universidades e nos liceus, e pôde crescer porque os jovens contestatários, rapazes e raparigas, tinham aprendido a estar juntos, a lutar juntos, a viver juntos. Foram estas as implicações profundas das Secções de Convívio nas Associações de Estudantes e do fim da Sala das Alunas no Instituto Superior Técnico. Ora, as repercussões deste movimento não se confinaram aos estabelecimentos de ensino. Além de se agravar assim o clima geral de insatisfação, os jovens saídos das universidades para cumprir o serviço militar contribuíram decisivamente para a oposição às guerras coloniais e ajudaram a fermentar o movimento militar que poria fim ao fascismo no dia 25 de Abril de 1974.
Epílogo
Há alguns anos reencontrámos em Londres uma antiga camarada, que passara a viver lá. Era feminista militante e contou-nos entusiasmada o êxito de uma luta que ela e o seu grupo tinham travado recentemente, para que ficasse reservada às mulheres uma das piscinas municipais. Nós dois trocámos um olhar nostálgico. Algumas décadas depois de a esquerda ter criado Secções de Convívio e ter aberto aos rapazes as portas de uma Sala das Alunas, outra esquerda veio para confinar de novo as mulheres em espaços exclusivos.
Será este o destino da esquerda, derrubar os apartheids impostos pelos outros, para ela própria edificar apartheids semelhantes?
Nota
[*] Os leitores brasileiros devem saber que em Portugal rapariga significa moça. Para outros termos que não entendam, devem consultar o glossário indicado no final do artigo.
Os leitores encontrarão aqui um glossário de gíria e de expressões idiomáticas, tanto de Portugal como do Brasil.
Caros Rita e João,
também na Faculdade de Letras da UL, uma das primeiras acções do ano de luta de 1968-1969, antes ainda da recriação de uma pró-associação através da eleição de uma assembleia de delegados de curso, foi a abolição da “sala de alunas” – ou seja, a abertura da sala aos dois sexos. Na mesma vaga, as estudantes impuseram o direito a entrar na Faculdade vestindo calças…
Abraço para os dois
msp
Belo artigo, deixou-me uma série de reflexões.
Excelente artigo. Não há nada como factos concretos para perceber o valor das teorias. A minha experiência da luta pela liberdade nas relações entre raparigas e rapazes é um pouco anterior à da Rita e do João – fim do liceu (ensino secundário) entre 1958 e 1960, entrada na universidade em 1961-62 em Coimbra e depois no Porto.
Porque o artigo não o refere, as primeiras movimentações estudantis que eu conheci de clara oposição ao regime salazarista resultaram, a partir de 1958 – ano das eleições presidenciais em que o candidato da oposição general Humberto Delgado corporizou um quase levantamento popular contra o regime -, da luta das associações universitárias contra o decreto 40.900 que, precisamente, pretendia acabar com a autonomia das associações passando a exigir uma autorização prévia do Ministério da Educação para a constituição das listas [chapas] candidatas. E é muito importante lembrar que essa luta, que implicou inúmeras prisões, saíu vitoriosa e o decreto não passou. A geração de dirigentes associativos que viria a conduzir a primeira grande crise em 1962 formou-se nesse combate, era eu ainda estudante do secundário. Foram eles os exemplos a seguir quando em 1960-61, sob o impulso do PC, se formaram as primeiras “pró-associações” de alunos do secundário, primeiro em Lisboa e depois no Porto – e em 1962 em Coimbra. A primeira intervenção pública do movimento estudantil liceal foi feita, a convite do movimento universitário, no Encontro Nacional de Estudantes de Novembro de 1961, em Coimbra.
Em 19 de Abril de 1961, ainda eu não estava em Coimbra, o estudante de direito Artur Marinha de Campos publicou, no jornal da Associação Académica de Coimbra, Via Latina, a sua “Carta a uma jovem portuguesa” (ver aqui) que provocou um grande escândalo nas esferas do poder e da igreja católica, manifestações e contra-manifestações no meio académico, uma forte agudização da oposição ao regime e, sobretudo, um aumento exponencial da participação das mulheres nessas lutas – a associação de Coimbra, a mais poderosa de todas porque englobava toda a universidade coimbrã e porque tinha um grupo de futebol entre os melhores do país à época, teve nesse período, pela primeira vez, a participação de mulheres na sua direcção.
Pelo menos no norte do país (eu falo pela região do Porto, segunda cidade do país), a “Carta a uma jovem portuguesa” e o debate em torno dela tiveram uma influência enorme no despertar de uma convivência totalmente diferente entre rapazes e raparigas. A nossa pró-associação liceal, no Porto, tinha tantos rapazes como raparigas e o nosso relacionamento era totalmente igualitário.
Outra coisa: no meu segundo álbum de canções, publicado em 1972, está uma canção chamada “Aqui dentro de casa”, cuja letra transcrevo a seguir. O que me inspirou foi assistir ao modo como os meus camaradas – na época eram maoistas – lidavam com as suas mulheres. Não imaginam a porrada que levei quando o disco saíu!
Aqui dentro de casa
Mariazinha fui
Em Marta me tornei
Vou daquilo que fui
Pr’àquilo que serei
Foi há tantos anos
Foi há dois mil anos
Que vi no amor o meu Cristo
Que me mostraste o amor imprevisto
Que me falaste na pele e no corpo a sorrir
Meus olhos fechados
Mudos espantados
Te ouviram como se apagasses
A luz do dia ou a luta de classes
Meus olhos verdes cèguinhos de todo para te servir
Mariazinha fui
Em Marta me tornei
Vou daquilo que fui
Pr’àquilo que serei
Filhos e cadilhos
Panelas e fundilhos
Meteste as minhas mãos à obra
E encontraste argumentos de sobra
Para evitar que o meu corpo pensasse na vida
Meus olhos fechados
Mudos e cansados
Não viam se verso ou se prosa
O meu suor era o teu mar de rosas
Meus olhos verdes janelas de vida fechados por ti
Mariazinha fui
Em Marta me tornei
Vou daquilo que fui
Pr’àquilo que serei
Pegas-me na mão
E falas do patrão
Que te paga um salário de fome
Do teu patrão que te rouba o que come
Falas contigo sozinho p’ra desabafar
Meus olhos parados
Mudos e cansados
Não podem ouvir o que dizes
E fico à espera que me socializes
Meus olhos verdes boneca privada do teu bem-estar
Mariazinha fui
Em Marta me tornei
Vou daquilo que fui
Pr’àquilo que serei
Sou tua criada
Boa e dedicada
Na praça, na casa e na cama
Tu só me vês quando vestes pijama
Mas não me ouves se digo que quero existir
Meus olhos cansados
Ficam acordados
De noite chorando esta sorte
De ser escrava p’rà vida e p’rà morte
Meus olhos verdes, vermelhos de raiva, para te servir
Mariazinha fui
Em Marta me tornei
Vou daquilo que fui
Pr’àquilo que serei
A tua vontade
Justiça e igualdade
Não chega aqui dentro de casa
Eu só te sirvo para a maré vasa
Mas eu já sinto a minha maré cheia a subir
Meus olhos cansados
Abrem-se espantados
P’rà vida de que me falavas
P’ra combater contra os donos de escravas
Meus olhos verdes que te vão falar e que tu vais ouvir
Mariazinha fui
Em Marta me tornei
Sei aquilo que fui
E que jamais serei
Recentemente, a secretária de política para as mulheres do governo Haddad, Denise Mota Dau, declarou que cogitava separar em bancos específicos homens e mulheres no interior dos ônibus. Tal declaração demonstra algumas coisas:
1- A ignorância da secretária sobre a vida dos populares, pois os casos de assédio ocorrem nos corredores lotados dos ônibus, não nos bancos.
2- Um feminismo de gabinete é usado para desviar o foco da questão central que é o fato de os ônibus andarem lotados.
3- A criminalização, demonização, de todo o gênero masculino por conta do que alguns fazem. Por que eu, que nunca assediei ninguém, deverei ser tratado como potencial assediador por uma secretaria?
O final do artigo me lembrou uma passagem de uma palestra do João Bernardo, realizada em Florianópolis em algum ano da década passada, em que ele comentou sobre uma fala sua em outra palestra, sobre racismo ou movimento negro. Me corrija se estiver errado, mas me lembro muito vivamente dessa fala.
Dizia o João Bernardo que o lugar em que ele se sentia mais livre, naqueles anos de fascismo, era na prisão. Lá ele não precisava mais esconder o que pensava, podia expressar suas idéias, podia ser quem ela era. A analogia era com os guetos que são criados na nossa sociedade para as “minorias” se sentirem livres, poderem se expressar e serem o que são. Bem, eu nunca havia relacionado esse pensamento com espaços exclusivos de mulheres, mas de fato acho que também cabe. Eles acabam se inserindo na lógica de nichos e guetização, cada “minoria” vivendo na sua própria prisão.
Claro que na prática há casos a se pensar, como os vagões de trem exclusivos para mulheres, devido aos assédios e violências.
Leo,
Penso que a sua memória não o traiu. Não me lembro exactamente dessa palestra, mas lembro-me de ter contado isso em várias ocasiões e lembro-me da paradoxal liberdade que senti na primeira vez em que fui preso político. O fascismo português dispunha de uma colossal rede de informadores, as conversas minimamente politizadas eram impensáveis em lugares públicos, e na prisão eu podia falar à vontade com o meu companheiro de cela dos temas que me interessavam. Mas vou contar-lhe outra coisa que certamente não disse na Ufsc. Eu fui também preso comum, porque estava acusado de um crime — roubo de um processo no interior de um tribunal — que não estava previsto como crime político e, portanto, era considerado simplesmente roubo. Enquanto preso comum, quando estava a ser transportado de uma prisão para outra, de péssima fama, o guarda que me acompanhava disse-me, quando chegámos: «Não se preocupe que ali todos comem à vontade; os que gostam comem na boca e os outros comem no cu». E era verdade, claro. Assim, num país e numa época em que as relações homossexuais eram estritamente proibidas e punidas, os homossexuais encontravam na cadeia comum uma liberdade similar à que eu encontrei na cadeia política. E com estas historietas passamos ao mais importante. Será que colocar as mulheres em carruagens especiais é a melhor forma de impedir os estupros e as agressões? Já agora, irão também colocar os homossexuais em carruagens especiais, para os proteger da homofobia? E por aí adiante. Ou o melhor é dar às mulheres, aos homossexuais e a todas as pessoas que precisem a possibilidade e a capacidade de praticarem a autodefesa? Em vez de um ser humano integral, vão dividi-lo por categorias e subcategorais e subsubcategorias. Em vez de uma prática de solidariedade e de colectivismo, vão criar colecções de gavetas. Isto já de si é muito preocupante. Mas o mais preocupante de tudo é ver esta evolução ser defendida e prosseguida como um programa de esquerda.
De 1995 a 1997 a CPTM manteve vagões femininos no Estado de São Paulo. A ideia fracassou retumbantemente. As mães, as namoradas, as esposas, as amigas se recusavam em viajar separadas de seus filhos, namorados, esposos, amigos e se uniam a eles nos vagões não exclusivos. Ainda, a superlotação obrigava que tanto homens entrassem nos vagões femininos quanto mulheres nos vagões masculinos.
A ideia de autodefesa sugerida pelo João Bernardo é a mais adequada. Como disse, não se pode criminalizar ou mesmo estigmatizar toda o gênero masculino por conta do que alguns homens fazem.
Obs: esse texto ficou muito bom e esclarecedor do quanto é contraproducente se pensar a igualdade de gênero tendo como paradigma a exclusão e estigmatização de um dos gêneros. A convivência conjunta deve ser a base prática para a igualdade desejada. E elogio esse texto porque o outro ficou bastante confuso.
Gostei do texto.
Há um diálogo direto com o texto que o Coletivo Passapalavra escreveu sobre os movimentos feministas nos dias de hoje.
No contexto político de Portugal dos anos 60, existiu movimentos universitários que lutaram pelo fim do apartheid imposto pelo salazarismo. Aqui, com as especificidades do momento atual, existem grupos que reivindicam espaços exclusivos.
Gostaria de saber se os autores poderiam informar como eram os movimentos sociais fora da universidade (movimento sindical e outros)? O apartheid existia? Como era a realidade das fábricas? Salazar também buscou criar essa separação entre os sexos?
É isso… Obrigado pelo texto! Se puderem responder ou indicar alguma leitura, eu agradeço também.
Danilo Nakamura,
As suas questões exigiriam uma resposta em vários volumes. Movimento sindical não existia, visto que os sindicatos eram fascistas. Nos últimos anos do regime, já no governo de Marcelo Caetano, o Partido Comunista (ilegal e clandestino) conseguiu ganhar as eleições em alguns desses sindicatos fascistas e constituiu com eles a Intersindical, que está na origem da actual CGTP. A repressão dentro das empresas e por ocasião das greves, todas elas ilegais, era muito forte. Não lhe será difícil encontrar bibliografia se começar a pesquisar a história do fascismo. Para uma obra de síntese, indico Fernando ROSAS, Fernando MARTINS, Luciano do AMARAL e Maria Fernanda ROLLO [s. d.] O Estado Novo (1926-1974), em José Mattoso (org.) História de Portugal, vol. VII, [Lisboa]: Estampa. Quanto à «realidade das fábricas» não conheço nenhum estudo de síntese, mas há estudos sociológicos dispersos. Vale a pena procurar na Análise Social. Não entendo a pergunta se «Salazar também buscou criar essa separação entre os sexos». A separação já existia, numa sociedade tradicionalista e predominantemente rural como era Portugal em 1926. Mas Salazar deliberada e sistematicamente aprofundou e manteve as divisões entre os sexos e especialmente os espaços separados para mulheres e homens. O livro de Irene Flunser PIMENTEL, Judeus em Portugal durante a II Guerra Mundial. Em Fuga de Hitler e do Holocausto, Lisboa: A Esfera dos Livros, 2006, é interessante porque mostra o contraste entre a sociedade europeia moderna, representada pelos refugiados políticos (não eram só judeus, mas também outros antifascistas germânicos que se tinham refugiado em França e tiveram de fugir aquando da derrota francesa) e a sociedade portuguesa, rural e provinciana. Aliás, a vinda desses refugiados foi importante para acelerar a transformação cultural da sociedade portuguesa. Você pergunta também se «o apartheid existia». Apartheid racial, tal como houve na África do Sul? No plano legal não existia, embora houvesse uma enorme segregação nas colónias. No Portugal metropolitano havia pouquíssimos negros, porque o fascismo não permitia a ida de trabalhadores negros para a metrólope. Mas havia alguns negros e negras a estudar nas Universidades. Sobre isso vale a pena procurar dados relativos à história da Casa dos Estudantes do Império, que era uma espécie de Associação dos estudantes oriundos das colónias. Finalmente, sobre o movimento estudantil vale a pena ler: Gabriela LOURENÇO, Joge COSTA e Paulo PENA, Grandes Planos. Oposição Estudantil à Ditadura, 1956-1974, Lisboa: Âncora e Associação 25 de Abril, 2001. E sobre a oposição esquerdista nos dez últimos anos do fascismo é imprescindível a leitura de um livro excelente: Miguel CARDINA, Margem de Certa Maneira. O Maoísmo em Portugal, 1964-1974, Lisboa: Tinta-da-China, 2011.
Olá João Bernardo fui atrás da tese “Margem de Certa Maneira. O Maoísmo em Portugal, 1964-1974” e encontrei este site https://estudogeral.sib.uc.pt/handle/10316/15488?mode=full&submit_simple=Mostrar+registo+em+formato+completo mas para baixar a tese parece que tem q se registrar eu não tenho certeza sei que procurei no site e não achei o local de registro, vc sabe comno ter acesso a tese?
Thiago,
Não verifiquei se o livro publicado difere da tese, mas tenho a tese em pdf e vou enviar-lha para o seu endereço electrónico.
João Bernardo
Solicito o obséquio do envio da referida tese, se não for incômodo.
Saúde & Autonomia
Ulisses,
Acabei de lhe enviar a tese do Miguel Cardina.
“proibição de andar de mão dada em público”, proibição feita pelo regime fascista.
Conversava e andava na rua com uma amiga militante e, em dado momento em que peguei na sua mão, ela brincou comigo, dizendo que eu não poderia andar de mãos dadas com ela, pois como havia aprendido com certas feministas, isto demonstrava um sentimento de posse masculina sobre sua fêmea. Teria que ser ela a segurar a minha mão.
De mediato este artigo me convenceu muito. Penso também que essa divisão reforça a lógica dualista que legitima as hierarquias, a dominação. Lembrei que entre homem e mulher há várias outras identificações que não se enquadrariam nesses coletivos exclusivistas… Mas buskei os argumentos que provavelmente as feministas disporiam e que eu gostaria de conversar aki com vocês:
Visto que as mulheres estão acostumadas a – muitas vezes inconscientemente – dar mais razão a palavra de um homem do a palavra de uma mulher; sentir-se inferiorizada perante um homem e por isso não defender sua ideia com a mesma garra que ela defenderia perante suas amigas; ser quase sempre interrompida em suas falas por uma voz máscula e alta e então calar-se, ou diminuir sua energia de ação, etc, os grupos exclusivistas não teriam o seu valor? Sem falar das mulheres que tem traumas da figura masculina, ou que simplesmente não tem afinidade para construir algo conjuntamente; esses grupos não teriam o seu valor se pensarmos em um espaço em que as mulheres possam exercitar o seu “empoderamento” e cura para depois voltar a se unir com os homens?
Gratidão
Lilith, pessoalmente acho necessário fazer certa distinção neste tema para evitar confusão. Acho que qualquer ser humano, homem mulher e outras coisas mais, devem construir e frequentar espaços íntimos com pessoas próximas, de confiança, para falar dos assuntos mais delicados. Isso é importante para poder encarar a vida nos seus âmbitos mais públicos e hostis, e é uma excelente arma contra a doutrinação que vem das instâncias mais poderosas de sentido comum da nossa sociedade. Seja discutir o machismo de um marido, seja expressar um incômodo com a disciplina e a “filosofia” da empresa onde se trabalha, etc. Se não temos lugares assim, reservados, para discutir o sentido comum que nos é imposto, é muito mais fácil sucumbir a esta ideologia ou terminar sendo apenas indiferente. Isso pode ser um grupo de amigas, mas também pode ser um grupo militante.
Especificamente com as mulheres, acho muito importante que se juntem para falar sobre suas opressões específicas, sobre o cotidiano dos casais, especialmente quando aparecem problemas graves. Isso pode ser em uma atividade feminista ou pode ser tomando uma cerveja, num jantar, etc. Agora, Jo Freeman, no seu “célebre” “A tirania da falta de estrutura” (também traduzido de outras formas: https://www.nodo50.org/insurgentes/textos/autonomia/21tirania.htm) já dava um bom retrato do que ocorre quando um grupo mistura espaço de relatos, de contenção, etc, com espaço político. Essa zona cinza não apenas é contraproducente, é também perigosa em termos políticos. E ao meu ver, é quando esta lógica do espaço exclusivo de contenção se transfere para um espaço político, aí jaz o problema. Isso é o que eu tenho visto pessoalmente também na experiência de companheiras próximas.
Lilith,
Será que criar peixes em aquário os prepara para sobreviverem no alto mar? Irão precisar de aquários durante toda a vida.