Por G.P.
Leia aqui o primeiro relato.
“A decisão mais nobre que alguém pode tomar na vida é a de entrar para o partido revolucionário.” Essas foram as palavras mais marcantes que escutei em minha primeira reunião como membro daquele partido trotskista.
Saí com isso na cabeça e debaixo do braço dois exemplares do jornal semanal do partido. Um que eu deveria ler com a máxima atenção, já que o seu conteúdo seria discutido na próxima reunião, e um outro que eu deveria vender a um contato, ou seja, alguma pessoa próxima a mim, melhor se fosse alguém da minha categoria, e melhor ainda se fosse um trabalhador de fábrica que se interessasse pelas políticas do partido. Saí de lá com duas tarefas a cumprir e já devendo ao partido o valor dos jornais. Sem contar que já saía sabendo que deveria também fazer ao partido uma doação mensal de qualquer valor (isso porque eu estava desempregado, se empregado fosse a coisa seria diferente). Afinal aquele partido só vivia do dinheiro da classe trabalhadora, era realmente revolucionário e por isso não aceitava dinheiro de empresas e governos – independência de classe, alguns dizem. Naquela reunião nada foi falado do dinheiro que o partido recebia do Estado via Fundo Partidário (FP), nem tampouco eu soube, em quase quatro anos lá dentro, a quantia recebida e o destino dado a esse dinheiro. Diziam-nos que todo o dinheiro que vinha do FP ia para um tal de Fundo-de-Ferro e que o mesmo só seria aberto em casos muito especiais, como, por exemplo, em uma revolução socialista. Já fora do partido descobri o valor da quantia que aquele partido já havia recebido simplesmente acessando o site do Tribunal Superior Eleitoral do Brasil.
Um dos assuntos mais presentes e que mais me preocupava enquanto militante trotskista, dentro ou fora do partido, era a tal da formação política. Por inúmeras vezes me via participando de alguma coisa, uma reunião, um congresso, um churrasco que seja, e sempre vinha alguém, normalmente um dirigente do partido, que me dizia: “Isso também é formação política.” Óbvio, né? Só que a formação política mais formal que recebi no interior do partido consistia basicamente em ler todos os materiais que chegavam à base do partido. Isso mesmo, todos os que chegavam à base do partido. O partido era hierarquizado (qual não é?) e nele existiam os documentos destinados à base e os destinados à direção. Havia aqueles que a base não podia ler e aqueles que a base só podia ler no interior das reuniões de cada núcleo, mas que era proibido ficarem com o militante da base. Quando digo todos os materiais estou me referindo aos jornais e documentos tais como teses, circulares, balanços e coisas do tipo. Não incluindo as cartas de rompimento, afastamento e desligamento do partido. Isto porque eu nunca vi nenhuma delas sendo levada às bases do partido para que esta tivesse conhecimento dessas saídas e do conteúdo das cartas. Algo que poderia ser utilizado na formação política, conhecer as opiniões divergentes no interior do próprio partido e conhecer as razões dos rompimentos, sempre foi coisa apreciada somente pelas direções. Quando conseguíamos uma carta dessas, nunca era por dentro do partido.
Outra parte da formação política formal que recebi naquele partido se deu através de cursos internos próprios a isso, onde se lia e se discutia em cima das apostilas e apresentações preparadas pelos quadros do partido – se você ainda não sabe, quadro é um dirigente. O comum na época era que todos os cursos para a base giravam em torno de apostilas montadas a partir do recorte de alguns livros, sendo raros os cursos que se debruçavam sobre livros inteiros (normalmente isso só acontecia nos cursos para as direções) ou mesmo sobre partes de livros de um mesmo autor que tivesse mudado de opinião sobre um mesmo assunto. Eu não vi, por exemplo, as diferentes concepções do que é o Estado na obra do Marx. Aprendi que ele formulou uma única concepção e que Lênin, muito acertadamente, adotou, assim como o Partido Bolchevique, assim como Trotski, que também a adotou na IV Internacional, e pronto. Não se falava mais nisso. Qualquer dúvida minha era sempre remetida (só no discurso) para os documentos do curso de formação política sobre Estado e Revolução; a verdade estava lá e em nenhum outro lugar (inclusive a base do partido era desestimulada de ler livros e autores). Mas eu era da base e esse era um curso para dirigentes ou militantes que já haviam passado por uma série de outros cursos, não eu.
Quanto aos documentos internos lembro-me ainda de que o que mais pude aprender com eles foi identificar a linha política que as direções formulavam para o conjunto do partido e aquelas que a direção formulava para que fossem levadas para fora do partido. Aprendi ainda o que é centralismo democrático, ou seja, por dentro do partido tudo e por fora nada. Entendeu? Isso, no discurso, queria dizer que tudo podia ser discutido dentro do partido, todas as opiniões e todas as propostas, mas nas ruas o partido obrigatoriamente deveria ter uma única política e uma só voz resultantes da proposta política vitoriosa no interior do partido. Com isso aprendi o que naquele partido era militar centralizado. Ou seja, era você defender nos seus espaços de militância a linha do partido. Mesmo que todos ali ao seu redor soubessem que semanas, dias ou até mesmo horas atrás você defendia outra coisa. O que muitas vezes aqueles que não eram do partido não sabiam é que em uma reunião feita às pressas pela direção do partido ficou definido que a linha do partido mudou e que portanto a base deveria levar a público a nova linha do partido. Não executá-la era quebra de centralismo democrático – crime grave; quem quebrava era advertido pela direção (muitas vezes pela base também) e normalmente era punido. Aprendi que atuar centralizado era também levar a público políticas que a base não ajudara construir. Isso acontecia, a meu ver, em razão da extrema hierarquia de poder existente no partido. A direção estava autorizada a determinar a linha política de atuação da base e a mudá-las também.
De baixo a cima aquele partido se dividia em núcleos, comitês zonais, comitês regionais, comitês estaduais, comitê central e burô, sendo esses os órgãos de deliberação e execução das políticas do partido. Também funcionando como órgãos do judiciário do partido, quando por exemplo se precisava punir um militante por quebra de centralismo democrático, machismo e etc. Isso te lembra o Estado? Lembro-me de que as punições eram chamadas de sanções, que essas podiam ser advertência, suspensão temporária e expulsão. Lembro-me também como certa vez uma reunião do núcleo em que eu participava foi transformada em um tribunal e que este se arrastou por várias reunião porque discutíamos o que fazer com um ex-militante que havia ficado com dinheiro do partido. O caminho adotado para o caso foi dar-lhe uma surra como forma de forçá-lo a devolver o dinheiro, já que por semanas se recusou a fazer. Uma das questões mais discutidas naquele momento era que no grupo que o surraria era preciso ter uma mulher, isso para dar visibilidade à mulher e a toda forma da mulher ser uma revolucionária. Assim o partido estaria também educando as outras militantes e ainda o seu conjunto na superação do machismo. Esta política não foi efetuada porque aquele ex-militante não demorou muito a entrar em outro partido, e este outro era um partido com o qual logo seria feita uma aliança em uma disputa eleitoral. O interesse maior, a aliança eleitoral, falou mais alto e a surra foi posta de lado.
Eu falei do caso daquele ex-militante que por pouco quase tomou uma surra por ter ficado com o dinheiro do partido. A raiva se generalizava por entre todos quando fatos como aquele aconteciam. Isso porque não era fácil para ninguém dar conta de tanto dinheiro que o partido precisava. Lembro-me de que na época eu notava a tremenda semelhança que o partido, em termos de captação de dinheiro, tinha com a Igreja Universal do Reino de Deus. Isso porque tanto eu como uma parente minha, pobre e aposentada, sempre estávamos buscando dinheiro junto aos outros para cobrirmos nossos compromissos com as campanhas. Por anos, naquele partido, as campanhas eram quase que mensais. Buscávamos dinheiro – eu e a minha parenta – principalmente nos encontros de família, onde eu vendia coisas do partido (jornais, agendas, rifas, botons, ingressos para churrascos e etc.) e pedia dinheiro para revolução mundial, e ela pedia dinheiro para garantir um lugar melhor no céu e no hoje e convidava a todos para a sua igreja. Cada qual com seus convites e suas Igrejas.
Lembro-me também de como aqueles que faziam as maiores doações eram valorizados no interior do partido, lembrados pelas direções, sempre citados, ganhavam prestigio e poder, já que normalmente eram eleitos para as direções. Para as direções escolhia-se entre aqueles que eram os mais abnegados, as mentes mais brilhantes e os com maior experiência. Só que nesse processo pesava, e muito, a quantia em dinheiro que o militante já tinha doado ou conseguido com as vendas entre uma eleição e outra dos cargos de chefia do partido. Lembro-me de que o partido levava tanto dinheiro dos seus militantes que acabavam ficando lá dentro quase que somente estudantes desempregados e sem muitas fontes de renda e, em proporção bem menor, trabalhadores com estabilidade financeira e disposição para dar conforme os incentivos e as necessidades do partido. Os pobres mesmo, aqueles que têm que fazer milagre com o salário para sustentar ou ajudar a família, não aguentavam mais que duas ou três campanhas. A campanha era normalmente usada para que o partido pudesse enviar seus militantes para encontros, congressos, plenárias, cursos de formação política, participar de eleições de sindicatos, entidades estudantis, tirar algum preso político (dos seus) da cadeia, participar das eleições parlamentares e etc. Detalhe: para os cursos de formação política normalmente só se enviava estudantes, já que os trabalhadores estavam trabalhando para sustentar o partido e os cursos que formavam os novos chefes. Nos anos finais da década passada eu vi cerca de 50 militantes deixarem aquele partido e reclamarem de tamanha cobrança financeira.
Tenho na memória dois casos inesquecíveis. Um cara estava tão endividado com o partido e com outros compromissos que, não vendo outra saída, se juntou a outros que não eram do partido e cometeram um sequestro. Resultado, prisão. De dentro da cadeia ele mandou uma carta ao partido pedindo ajuda com advogados. O partido o ignorou completamente. Quem o conhecia sabia que se não fosse os montes de jornais, agendas, bilhetes de rifa, contribuições mensais e anuais que ele devia ao partido e que não estava conseguindo pagar, talvez ele não tivesse arriscado tanto a sua liberdade e cometido aquele crime. No outro caso, um cara tinha uma companheira (também militante do mesmo partido) que por tempos ficou desempregada, os dois andavam tão sem dinheiro que precisavam morar de favor, mas toda vez que se discutia finanças no núcleo a que eles pertenciam, a preocupação maior da direção era se os mesmos conseguiriam naquele ano dar conta das vinte e seis parcelas de contribuições mensais do ano, mais o pagamento dos jornais, agendas e das dívidas que o casal acumularia com as campanhas daquele ano. Aquele partido não perdoava o décimo terceiro salário, e ainda incentivava os militantes a doarem suas maiores contribuições do ano com ele. O décimo, lá, era visto como um dinheiro extra em nossas vidas e, já que era um extra, já que no restante do ano só existe o salário, era importante que se doasse mais do décimo. Se possível tudo.
Foi através de uma pequena parte dos livros e autores que lá dentro me desestimulavam de ler que eu pude saber que a história não era bem como a direção daquele partido nos contava, como também, e principalmente, que eu havia me tornado um imbecil útil na repetição de uma grande tragédia. Quando hoje alguém me pergunta se vale a pena entrar para um partido eu busco contar essas e outras lembranças, a passagem por este e por dois outros partidos, e dizer ainda o seguinte: “mais vale a tua experiência”.
Os leitores brasileiros que não entendam certos termos usados em Portugal e os leitores portugueses que não percebam outros termos usados no Brasil
encontrarão aqui um glossário de gíria e de expressões idiomáticas.
Ilustrações: desenhos de John Tenniel para Aventuras de Alice no País das Maravilhas e Do Outro Lado do Espelho.
Não fico mais chocada porque também fui de um partido desses, provavelmente o mesmo. Havia realmente essa tensão por manter as mensalidades e os jornais pagos em dia e quando saí tive que acertar algumas contas do que ainda “devia”. Hoje não consigo conceber essa situação, dever dinheiro ao partido. Ainda mais que eu era estudante, sem renda.
Quer militar em um partido sem contribuir então procure o PMDB… Lamentável este artigo. O título deveria ser “A decadência de um ex-trotskysta”.
Evandro,
Desconsiderando o seu equívoco, já que foram publicados dois relatos e não um artigo como você viu, e a informação, que a mim nada informa, que no PMDB os militantes não precisam contribuir, o que resta do seu comentário me faz lembrar uma famosa frase do Mário Quintana: “Ah, esses moralistas… Não há nada que empeste mais que um desinfetante!”
Mesmo assim acho que é tempo de se tentar algum debate. Não por aquilo que você escreveu, de jeito nenhum, não até agora, mas por tanta gente que lê este site e que de fato está preocupada com lutas sociais reais e com a superação de todas os capitalismos, seus defensores e suas ideologias, sejam eles de direita ou de esquerda, e também por tantas questões que os dois relatos trazem à tona; aí está quase que toda a razão de eu ter procurado aqui publicar o meu relato.
Eu nunca me meti com o partido PMDB e nem com gente dele. Por isso não sei que tipo de contribuição que seus militantes dão ao partido ou se não dão. Eu só passei por partidos da extrema-esquerda, todos leninistas, sendo dois trotskistas e outro stalinista. Então só pude tentar mostrar aqui algumas contribuições que dei a eles e um pouco do que aprendi vivendo por dentro deles. É bem verdade que as experiências nunca são iguais. Até hoje eu trilhei o seguinte caminho: sem partido – passagem por três partidos – sem partido novamente. Se a sua inclui uma passagem pelo PMDB e alguma coisa que não é a decadência (sei lá o que isso significa para você, mas até que estou curioso para saber) até que ponto nossas experiências com os partidos são parecidas e em que medida elas são bem distintas?
Afinal, para que serve um comentário que nada mais faz do que lamentar o relato de um ou dos dois e a decadência de V.V. e/ou G.P.? Acho que não nos serve para muita coisa, mas vamos lá.
Para fechar, ao ler que você lamenta esta publicação me recordei de uma frase que por várias vezes ouvi da boca de um dirigente internacional de um dos partidos pelos quais passei, frase inclusive que ele citava em seus escritos sem contudo indicar o verdadeiro autor (Spinoza), que é: “Não rir nem chorar, mas compreender.” Relatar as coisas do modo como relatei (forma e conteúdo) é apenas parte da minha tarefa constante de compreender as minhas próprias experiências e o que são os partidos de esquerda, principalmente os que por eles passei. Não estou buscando “aplausos, condecorações, honrarias, aceitação nos salões em moda” (como escreveu André Gide no prefácio do Córidon), agradar alguém ou lamentações, nem estou dominado por uma paixão, estou só buscando compreender; se você ou mais pessoas também estão buscando a mesma coisa, já temos por onde andar!
Tudo isso ocorre na grande maioria dos partidos de esquerda, não só entre os troskos. (Dogmatismo, centralismo, endividamento, …)
Só sei que quando moleque eu revendia agendas desse partido que militantes não conseguiam vender (claro pegando uma comissão), deu pra fazer um troco hehehehhee