Por Michel Navarro

 

As manifestações massivas em junho último, impulsionadas pela luta contra o aumento da tarifa de transporte público em diversas cidades, fenômeno que não víamos há décadas, trouxeram à luz como a grande maioria dos setores da esquerda – partidos, sindicatos e movimentos sociais – continua avessa à realização de qualquer autocrítica em relação às suas estratégias de luta. Sob o fantasma do avanço das forças conservadoras, a maioria das organizações com histórico inegável de mobilização e luta optou claramente por fincar os pés onde já estão há uma década: articuladas em torno do governo, dando sustentação e perpetuando as mesmas práticas de luta institucional, por dentro do Estado, em detrimento da autonomia e independência de classe.

E são justamente essas práticas que escancararam, nessa conjuntura de levante popular, em que a população se dispôs a ir para a rua em torno de demandas concretas e que dizem respeito aos interesses dos setores populares, quão distanciadas essas organizações estão da população. A opção de, a partir da eleição de 2002, não enxergar o Estado mais como antagonista, mas de fazer a “luta” na institucionalidade, inclusive cogerindo com o governo políticas públicas, tornando-se em grande medida parceiros na administração do Estado neoliberal, foi sem dúvida o que tirou as organizações das ruas, do confronto, da preocupação com a mobilização de setores desorganizados.

Esse recuo, que na boca de muitos dirigentes se justificava por uma análise conjuntural estruturalista de que estaríamos em uma conjuntura de descenso da luta de massas, muito enfraquecida para a articulação de qualquer ofensiva, mostra agora o seu rosto político.  Um instrumento de justificação da apatia intencional das organizações e de sua aliança com o governo.

Lula reuniu em 22 de junho no Instituto Lula com representantes da União da Juventude Socialista (juventude do PCdoB), MST, UNE, Levante Popular da Juventude (juventude da Consulta Popular), Juventude da CUT, Marcha Mundial das Mulheres, Fora do Eixo e com o presidente do Conselho Nacional da Juventude (CNJ), Alessandro Melchior, o secretário municipal de Direitos Humanos, Rogério Sottili, e Rodrigo Savazonni, chefe de gabinete da Secretaria Municipal de Cultura

Com a tentativa dos setores da direita, via seu partido político – a grande mídia – de disputar o sentido das manifestações, e conseguindo colocar pautas nas manifestações, em especial em torno do nacionalismo e do discurso anticorrupção, as organizações recorreram às suas engessadas categorias para explicar as razões dessa suposta “guinada à direita”. Isso teria ocorrido porque faltou uma direção forte nas ruas, que pudesse colocar para a população as pautas de interesse histórico da classe trabalhadora e que conseguisse dirigir o processo, evitando, assim, que a direita se apropriasse dos corações e mentes de quem estava nas ruas.

Essa justificativa para mim é de longe a principal evidência da total falta de autocrítica da esquerda próxima ao governo.  A incapacidade ou falta de vontade de reconhecer que a tirada de pé da maioria das organizações de esquerda nesses últimos 10 anos contribuiu em muito para a falta de referência da população nas ruas e para a dificuldade dos movimentos conseguirem dialogar com a população e propor pautas.

A maioria da população não reconhece movimentos e partidos como representantes das suas demandas e aspirações. E isso se deve muito mais a uma burocratização e institucionalização dos instrumentos de luta da classe do que a uma suposta manipulação midiática somada à ausência de uma organização forte dirigindo a luta das massas. Esse distanciamento atual das organizações em relação à população gera muitas consequências negativas. E, sem dúvida, a mais danosa nas jornadas de junho foi a facilidade com que a mídia burguesa conseguiu influir nas manifestações com o discurso anticorrupção.

Em vez da autocrítica, sempre fundamental em momentos em que a população se mostra bem mais radicalizada do que as organizações que dizem representá-las, as organizações ficaram quase que circunscritas a um ataque, algumas por ignorância, mas outras por má-fé, à estrutura organizativa horizontal do Movimento Passe Livre (MPL). Como se bastasse, em junho, uma organização altamente centralizada chamando os atos para impulsionar as massas à esquerda.

A conjuntura atual derruba a leitura do descenso, e as próprias organizações que a sustentavam reconhecem isso. Mas nem mesmo esse novo horizonte, propício, embora ainda com muitas indefinições, para a construção de uma ofensiva dos setores populares organizados, fez com que até mesmo organizações que em teoria se afirmavam independentes saíssem das asas do governo.

Agora seria o momento, visto que novamente a população está disposta a lutar, das organizações romperem definitivamente com o PT e darem um pontapé inicial, junto com outros movimentos que saíram da órbita governista ou que nela nunca estiveram, para a reconstrução de uma alternativa de autonomia e independência de classe, fora da institucionalidade. Falo aqui de começar a construir poder popular.

Contudo, o que vem ocorrendo é o inverso. Tem havido uma articulação ainda mais forte entre as organizações cooptadas e pouca vontade de construção de uma alternativa à esquerda e por fora do governo. Tais organizações têm inclusive saído às ruas com o PT e continuam entendendo que devem se articular com tendências do partido, não dando sinais de questionamento desta estratégia.

Em Salvador, em 4 de julho, no lançamento do Plano Safra Semiárido, Dilma acompanhada pelas lideranças de 21 movimentos sociais

O setor governista vem concentrando sua atenção em sustentar publicamente a defesa de pautas postas pelo governo, como o caso da reforma política. Pauta colocada com força depois da reunião que essas organizações tiveram com Dilma. Embora saibamos que ela já foi bloqueada e praticamente arquivada pelo setor de sustentação do governo no Congresso e que, ainda que seja uma pauta importante e justa, tira a atenção das questões cruciais que levaram a população para a rua, e que são muito mais de fundo e vinculadas cotidianamente com a realidade da população, como precarização e encarecimento do transporte público, reforma urbana e rural, sucateamentos da saúde e educação públicas. Ou seja, as organizações optaram por defender o que o governo entende que devem ser as reivindicações da população. O foco na reforma política não está em sintonia com as aspirações vindas das ruas. E tamanha é a aposta de dirigentes nessa pauta sugerida pelo governo, que já há quem defenda que qualquer reforma estrutural no Brasil só será possível após a efetivação de uma reforma política. Como quem diz, com ironia: “por ora, vamos mais uma vez adiar a luta por reforma agrária, reforma urbana, etc., e concentremos nossas forças na reforma política, conseguindo assinaturas, e depois vamos para Brasília apresentar nossa concordância com a sugestão vinda do governo. Aí sim, só então pensemos em retomar as pautas históricas que são as bandeiras de muitos movimentos, inclusive dos nossos”.

Outro fator que mostra a indisposição dessas organizações em construir ação direta, se distanciar da institucionalidade, organizar o povo nas ruas, é o coro que muitas delas vêm fazendo com a direita, no sentido de criminalizar qualquer ação mais radicalizada nas ruas, encampando o discurso moralizador do “sem violência” e “sem vandalismo”. Para além do fato confirmado historicamente de que avanços sociais são impulsionados pela ação das massas e força das revoltas, não esqueçamos que essas conquistas decorreram na sua esmagadora maioria de ações diretas resultantes de uma ampla organização, estimulada por sindicatos, movimentos e partidos inseridos na luta e dispostos a exercer pressões pela ação direta.

Mas o problema crucial no Brasil agora é justamente a sistemática renúncia da maioria das organizações de esquerda a adotarem práticas mais radicalizadas, assumirem o ônus e organizarem o povo para as pressões das ruas. Dispostas a assumirem riscos, é disso que estou falando. E o que acaba restando são os Black Blocs, cuja radicalidade é criminalizada tanto pela imprensa burguesa quanto pelos partidos de esquerda e sindicatos.

José Dirceu e Pablo Capilé, gestor do Fora do Eixo

E aí, fica-se nessa, setores da esquerda e a direita dando as mãos em discurso uníssono e moralizante contra “a violência”, sem que se abram espaços de discussões e críticas no campo da estratégia e tática a determinadas ações dos Black Blocs ou a ações de enfrentamento tocadas por outros grupos e organizações. Já que essa esquerda que “moraliza” não propõe nem quer fazer ação direta.

Em tempos de ação direta e protagonismo popular, tais organizações continuam sustentando os passeios em avenidas e praças públicas, reproduzindo a lógica de suas práticas do “tempo do descenso” e criminalizando a população que, em explosão de revolta, responde com coragem e enfrentamento à violência estrutural da polícia e do Estado; essa mesma população que, com a sua radicalidade, forçou governos de diversas cidades a baixar o exorbitante preço das tarifas de transporte público.

Em vista da indisposição dessas organizações em romper com o governo e contribuir para impulsionar as lutas nas ruas, fica a pergunta que não quer calar: ainda é possível esperar delas uma participação na construção de uma nova estratégia para a esquerda brasileira, quando mesmo numa conjuntura a favor elas se eximem de acertar ou errar com o povo?

Nota sobre o autor

Michel Navarro é militante da Organização Anarquista Socialista Libertária (OASL).

A seleção das ilustrações é da responsabilidade do Passa Palavra.

11 COMENTÁRIOS

  1. A (análise) é muito pertinente, contudo, em parte, condescendente quando de forma genérica segue referindo-se à organizações tradicionais de esquerda. Exceto o MST,muito mais pelas milhares de famílias sem terra do que por muitos dirigentes que adotaram a via eleitoral, ou esgotaram-se em disposição, ao que mais podemos considerar de esquerda??? Alguns sindicatos, espero que sim, algumas centrais, buf!!! Certamente muitas pessoas soltas no meio dessas estruturas congeladas. Como ser esquerda tornou-se algo tão banal quanto o conceito de hegemonia de Gramsci, usado por esquerdas e direitas, até, para justificar o injustificável; é até compreensível o tom do artigo, como sendo um chamado, um apelo à estes que não foram cooptados, escolheram deixar-se cooptar. O apelo e chamado, mais do que descolarem do PT, e governo, é para processar o esforço de construção de novas práticas, que isso implique em novas organizações, … pois melhor que seja várias esquinas e grupos articulado em lugar de uma nova estrutura. Seria portanto a atenção para que os retalhos sejam costurados….

  2. A boiada que estourou!!!

    O grande erro dos partidos de esquerda, foi cair no voluntarismo e na ambição desmesurada de ganhar eleições e somente eleições, esqueceu do trabalho de massa, desprezou as suas bases de sustentação, esqueceu de criar novos quadros, relegou a militância a um plano inferior, burocratizou, super valorizou os tecnocratas, transformou um partido que antes era de esquerda em um partido fisiológico, elevou uma grande parcela da pobreza a classe media sem um trabalho político ideológico, não ensinou a esse povo que todas essas conquistas eram fruto da luta de classes.
    A historia agora esta aí cobrando a fatura!!!
    Por outro lado não podemos também permitir que esses movimentos espontaneístas caíssem no colo da direita ou dos anarquistas, sendo que os anarquistas não conseguem se organizar e são nossos inimigos históricos, e foram eles os principais responsáveis pela degringolada da revolução Espanhola.
    Sinceramente, até agora não vi uma analise que me apontasse o caminho a seguir, infelizmente estamos a reboque da boiada que estourou.

  3. Algumas conclusões que caracterizam as organizações citadas no, ótimo, texto, e que de certo modo é o inverso daquelas “Não Alinhadas”:

    a) Forte articulação, não apenas com os partidos (como elucidado no texto), mas sobretudo entre si;Como se diz no popular, estão sempre juntas e misturadas;

    b) Capacidade de agirem a partir de um tema/problema de modo unitário. Aqui é sempre um calcanhar para nós que, defendendo com legitimidade a autonomia de cada organização, o seu jeito de estar no mundo, acabamos por nos fragmentarmos, bem ao gosto da institucionalidade. Ou seja, nem sempre diversidade/fragmentação é sinal de que podemos avançar na briga com o capitalismo e suas muitas manifestações. Vamos combinar: Nós somos uma constelação muitas vezes afónica de organizações, com pouco ou quase nenhuma agenda comum no cotidiano.

    c) Eles se reúnem, montam pautas unitárias/comuns, no sentido e na lógica deles desenham plataforma comuns. E nós?

    d) Eles tem poder efetivo, estão entranhados nas máquinas de projetos, editais, financiamentos etc…nós não conseguimos até aqui nenhuma amostra de capacidade de tocarmos um esforço conjunto (um site de notícias é um exemplo mais que ordinário), sequer uma plataforma anticapitalista que nos unifique.

    Para ficar em alguns poucos exemplos: Brasil de Fato, Carta Maior/Capital.

    Uma pessoa perguntou a um compa anarquista onde ela achava a “galera anticapitalista e não vendida ao poder, em uma das manifestações. Eles respondeu: “Por aí” (sic).

    Ou seja, nos falta esse sentido de referências, algo que possa ser significativo das muitas identidades anti-capitalistas, mas ao mesmo tempo permitisse um referente comum.

    e)Sites, Jornais, Blogs. Muitos esforços, muito se dissipam na primeira poeira, a efemeridade dos nossos meios comunicativos é pródiga. Salve o PP, ainda aqui, vivo e saudável!

    f) Na Argentina existem as experiências das Frentes, configurando lugares comuns para miríades de organizações. Sem mecanicismo, podemos pensar nossas próprias formas de Frentes?

    g) Não adianta o queixume sobre a longa tradição de traição desse tipo de organizações,basta olhar a história de muitas dessas que agora nadam, como o novo hit “Ninja”, somente as lutas é que modificam o sentido e direção das coisas.

  4. Considerando as devidas críticas ao sistema de pesquisa de opinião, ainda vale a pena ressaltar que a pauta da reforma política não é assim um alienígena como pinta o texto:
    http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2013/08/08/ong-de-combate-a-corrupcao-diz-que-92-querem-reforma-politica-com-consulta-popular.htm

    é claro que colocado a Reforma política muitas vezes é colocada como panacéia, e na lógica da pesquisa de opinião seria MUTO difícil encontrar uma maioria que não fosse a favor. No entanto este é um pilar importante no imaginário social agora e fechar os olhos para isso seria um erro. Uma coisa é defender a proposta política do governo, outra diferente é pautar a reforma política pelo foco da luta de classes. E mesmo se somos contra o Estado, é necessário o esforço de diálogo com a massa de trabalhadores. Se estes trabalhadores estão prestando atenção neste tópico hoje, assim como no caso do transporte público, é necessário que as organizações de esquerda façam uso deste tópico para pautá-lo com seus ideias. Do contrário cairemos na acusação de que o MPL é reformista.
    A extrema esquerda tem essa facilidade enorme de perder de vista o que está de fato ocorrendo no ambiente político geral do país, achando que a massa dos trabalhadores não lê nada na internet nem conversa com os vizinhos sobre o que anda acontecendo. Não há dúvidas de que a reforma política pouco ou em nada mudará a vida da maioria destes trabalhadores, no entanto o que está no fundo desta questão é a capacidade da extrema esquerda de se mostrar em diálogo com a sociedade, demostrando assim que sua capacidade crítica vai além do gritar palavras de ordem que não mudam nunca.
    De resto, o texto oferece boa análise, assim como o comentarista Antonio, que chama a atenção também para um vício que é o de culpar a esquerda moderada pela impotência da esquerda radical. Não há dúvida de que a crítica à esquerda moderada deva ser feita sempre, mas não pode se tornar uma explicação para o fracasso do resto da esquerda.

  5. Olá, bom dia a todos!

    O texto Navarro vem ao encontro de muitas questões problemáticas que vem se configurando, e por si já desperta um importantíssimo debate.

    Não por acaso, essa semana recebi, por essas várias correntes de e-mails que participamos, relato sobre a plenária nacional dos movimentos sociais realizada dia 5 de agosto.

    Comentando rapidamente sobre isso, acho que já é um avanço o fato que a onda de protestos tem “acordado muita gente”, e forçado um pouco a nossa “esquerda” (ou pelo menos os que se auto-intitulam assim) a conversarem entre si (pois todos nós sabemos como é grande o sectarismo que vivemos).

    Pois bem, não vou entrar em detalhes, até porque não tenho informações e nem legitimidade para isso (pois não participei nem da construção e nem da plenária).

    Mas, me chama muito a atenção não apenas, na mesma linha do artigo do Navarro, a centralidade da reforma política (que passa a ser o eixo articulador desses movimentos), mas sim a colocação explicita que trata-se de uma “reforma estruturante”.

    Será que eu que estou “louco”, ou a completa falta de auto-crítica beira quase a falsificação de conceitos e questões históricas em relação as lutas emancipatórias?

    Para mim uma “reforma” estrutural diz respeito a estrutura das relações sociais de produção, revertendo a dominação do capital sobre o trabalho…

    Logo, ao meu ver, o problema é ainda maior que uma adesão cooptada governista, pois diz respeito a insistência de uma via de luta “Estado-centrista”.

    Parece que nada ouvimos dos alertas de Rosa (Reforma ou Revolução), e menos ainda dos limites e crises tanto do reformismo histórico (que iludiu tantos com o chamado Welfare State), ou mesmo com a tragédia que foi o estalinismo (a ponto da grande dificuldades que temos hoje de simplesmente usar a palavra “comunismo”, tamanho o preconceito que se gerou).

    Em síntese, com todo o respeito a muitos militantes de primeira linha, que sem dúvida estão dispersos nesses movimentos, além de faltar a devida, constante e necessária auto-crítica, falta, de forma ainda mais dramática, uma crítica (e aprendizado) com a experiência histórica das lutas e seus retrocessos.

    Sem embargo, me parece que vivemos sim é uma severa crise de teorias de transição.

    Se no lado das visões “Estado-centristas”, que inclui as de assalto direto violento do Estado (mais extremistas), e as visões e posturas ora bem intencionadas, ora puramente oportunistas, do reformismo (“humanização” do capital), há que se considerar que uma linha de lutas de enfoque mais libertário ou de ação direta, também tem seus limites ou desafios.

    Ou seja, e aqui me permita discordar um pouco do ótimo artigo do Navarro, também tenho algumas reservas sobre os desdobramentos da onda de protestos.

    Claro que o fato de parcelas da população terem indo as ruas é um sinal claro do grande mal estar que a civilização capitalista está provocando, sob a nefasta crise estrutural do capital, e o repúdio aos partidos, sindicatos e movimentos demonstra o quão burocráticos eles se tornaram.

    Mas infelizmente a maioria do povo, mesmo a classe trabalhadora, inclusive este que lhes escreve, sofre de uma alienação severa. E alienação não é apenas ausência de um intelecto crítico, vale lembrar, mas sobretudo da nossa dependência estrutural ao capital, de vender nossa força de trabalho para sobreviver, e é claro que isso interfere, e muito, na postura ideológica e nas formas e condições de luta política, levando reiteradamente ao impasse de querer “mudar tudo sem mudar nada”, enfim, a esmagadora maioria da população deseja melhores condições de vida, menos exploração, etc… mas não situam a raiz disso, ou seja, a propriedade privada, o intercâmbio mercantil, e a forma de trabalho assalariado/precarizado/subordinado, querem mais salário mas não abolir o próprio trabalho alienado e subordinado.

    Nisso, há o desafio das lutas libertárias e horizontais, pois para mudar estruturas sociais, penso ser fundamental ter força política e projeto coletivo consistentes, e como convergir forças e projetos, evitando a dispersão, e também evitando a burocratização?

    Talvez um caminho importante esteja justamente no trabalho, no trabalho concreto, pela via do trabalho associado. Mas não na forma reformista e igualmente fragmentada da economia solidária ou das cooperativas populares, mas dentro de um projeto político estruturante de reaquisição das forças alienadas do trabalho, enquanto coletivo e classe orgânica, e não enquanto grupos soltos (que forma um tipo de “autogestão liberal”)…

    Talvez, enfim, convergir e construir coletivamente bases materiais para uma efetiva autogestão social/societal esteja na ordem do dia, e, na minha modesta opinião, já com algum atraso histórico…

  6. Muito bom artigo. Concordo com muitas partes, mas discordo da ideia e pressupostos subjacentes e do seu argumento geral.

    Minha principal discordância é o ponto de partida ontológico: o texto rejeita a visão do estado como uma arena (à la Gramsci), preferindo ver o estado como uma entidade monolítica, contra a qual movimentos sociais progressistas devem estar em oposição sistemática e permanente. Isto é, o pressuposto subjacente é que há uma clara distinção entre estado de um lado (considerado como um ator e não como uma arena), sociedade do outro.

    Também acho que a leitura da forças correlação de forças subestima a direita organizada, reduzindo esse setor à “mídia”, como se a oposição fundamental de forças fosse esquerda institucional vs. esquerda radical.

    Também subestima o papel dos setores de classe média não-organizados, que engrossaram os protestos de maneira decisiva, aderindo ao movimento inicialmente puxado por uma organização progressista, mas que no momento seguinte logrou “contrabandear” uma série de pautas próprias às ruas e por fim transformou a natureza do movimento em algo distinto.

    A classe trabalhadora organizada aderiu às manifestações com um mês de atraso, com baixa adesão, rachado, trazendo pautas de interesse próprio e não conducentes a uma transformação geral da sociedade. Em parte, isso é explicado pela natureza do movimento sindical, cujas duas centrais mais representativas se opõem entre a co-optação e ao peleguismo pragmático. Em comum, porém, é o declínio da ideia de que a transformação social partirá dessas forças organizadas.

    Seja como for, o artigo percebe qualquer tipo de aproximação dos movimentos sociais com o governo como um movimento de cooptação. É uma leitura possível, mas é reducionista. Movimentos sociais têm (ou precisam ter) uma ampla gama de repertório de ação coletiva. Protesto de rua, piquetes e violência são alguns deles. Outros envolvem lobby, petições, pressão, declarações na mídia e encontro com autoridades. São várias estratégias possíveis e, mesmo as mais “institucionais” não implicam cooptação necessariamente, e a escolha de cada uma delas depende de uma série de fatores (internos e externos ao movimento).

    Evidentemente que, para um anarquista, uma reforma política ainda no marco do capitalismo e da democracia liberal não resolve em nada a luta para a emancipação coletiva e as contradições fundamentais do sistema capitalista. Nem todo movimento social é progressista. Nem todo movimento progressista é transformador. Nem todo movimento transformador é revolucionário.

    Mas, mesmo para os que são revolucionários, para quem faz a leitura de que não é possível no curto prazo implantar um projeto revolucionário, mas é possível alguma transformação ainda dentro deste marco institucional burguês, a disputa pelo Estado é fundamental e, logo, pressionar por uma reforma política é “estrutural”.

  7. Complementando

    Em virtude do comentário anterior, queria apenas ressaltar (para evitar interpretações equivocadas) que ninguém mais, em sã consciência, afirmaria que não é necessário disputar o Estado, e as disputas dependem, obviamente, das condições concretas estabelecidas.

    Apenas ponderei que, a disputa pelo Estado a partir de uma base material alienada tende a ser uma disputa ambígua, na qual o poder burocrático é que nos consome, e não o contrário, que seria a emergência de uma autêntica hegemonia da classe trabalhadora. Posso estar errado, mais ao meu ver a história está farta de fatos dessa natureza.

    Sem dúvida há que se defender, resistir, questionar o Estado, mas, arrisco colocar para o debate, não seria importante também questionar e, a depender da nossa capacidade de auto-organização, de se superar o trabalho assalariado e suas formas alienadas e precarizadas (como a informalidade, auto-emprego)?

    Será que a conquista do Estado é o primeiro estágio da transformação social, ou é decorrência ou desdobramento de novas relações sociais de produção, que ai sim podem ter força política, material e ideológica suficientes para enquadrar, e possivelmente superar, o Estado burocrático do Capital?

  8. Faltou incluir MST e MPL entre essas organizações.São o cavalo de tróia do PT e suas versões recicladas nas lutas proletárias.

  9. Há dois pontos importantes do texto na crítica à militância organizada de matiz governista:

    a) A política de desmobilização sistemática, ao invés de se engajar no protesto popular.
    b) A criminalização dos Black Blocs, que, como se revelou no 7 de setembro de 2013, na verdade é uma criminalização de qualquer manifestação de esquerda não cooptada pelo governismo. E com exceção das balas de borracha, a atuação da PM não difere muito do que ela faz nas favelas.

    A repressão aparece quando não é possível desmobilizar. O neopetismo tentou implantar uma forma de dominação oligárquica “suavizada”, “sofisticada”, baseada na desmobilização e incentivo ao consumo popular. Mas quando isso não funciona mais, opta-se pelo método tradicional: a repressão terrorista. Prisões arbitrárias, agressões gratuitas, processos judiciais, sequestros, espancamentos, torturas, às vezes sem critério algum, atingindo manifestantes, transeuntes e jornalistas sem distinção.

    Eu discordo em parte em relação à reforma política. É claro que não precisamos aderir à proposta governista. No entanto, existe a “Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político” (www.reformapolitica.org.br), fruto de uma discussão entre militantes e pesquisadores.

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