Faleceu há poucos dias uma personagem mítica da resistência à ditadura fascista de Salazar. Pode ser-lhe aplicado, com propriedade, o título da foto que ilustra este destaque: perícia e coragem.
Nascido em Ferragudo, em 1922, pequena aldeia de pescadores do Algarve, numa família de ferroviários, aos 18 anos Palma Inácio alistou-se na Aeronáutica Militar onde aprendeu a profissão de mecânico de aeronaves e tirou o curso de piloto civil. Foi nessa altura que estabeleceu relações com Humberto Delgado e com círculos contestatários a Salazar.
Durante a II Guerra, com 20 anos, vendo as povoações algarvias atormentadas pelo racionamento, ele pegou num avião Tiger e lançou alimentos sobre as aldeias. Numa entrevista explicou: «havia falta de comida, sobretudo daquela que os portugueses mais gostavam, o bacalhau. E havia na Figueira da Foz uma grande seca de bacalhau que tinha ao lado um campo de aviação pequeno. Nós íamos lá, aterrávamos, comprávamos o bacalhau, embrulhávamos em plástico e depois lançávamos».
Em 1947, com 25 anos, participou numa tentativa de golpe de Estado (o “Golpe dos Militares”), ao lado de vários oficiais generais e de alguns civis, com a missão de sabotar aviões na base aérea de Sintra, onde tinha feito o serviço militar. A operação correu mal e, depois de sete meses de clandestinidade, foi preso no Aljube. As celas onde mantinham os presos isolados tinham quatro metros por um. Chamavam-lhes “curros” ou “gavetas”. Foi torturado e passou muitos dias em supressão de sono (tortura do sono). Quando o chefe da prisão lhe disse “Vais morrer aqui”, respondeu-lhe “Vamos a ver”. Ao que o polícia retorquiu “Só se fugisses, mas é impossível”. “Vamos a ver”, respondeu. Através das grades da cela, passou meses a observar os movimentos do sentinela que, mesmo por baixo, andava para trás e para diante. Descobriu que a única janela sem grades ficava dois andares acima, no corredor onde era a sala em que o médico recebia os presos uma vez por semana. Na manhã de 16 de Maio de 1948, com quatro lençóis atados, enrolados nas pernas e escondidos pelas calças, juntou-se aos outros reclusos na fila para a consulta. Num breve momento de ausência do guarda, prendeu os lençóis à janela e desceu, saltando depois, de uma altura de 15 metros, de forma a cair mesmo nas costas do sentinela a quem empurrou. E pôs-se em fuga. Só quando parou de correr, chegado ao refúgio que lhe tinham arranjado, é que reparou que tinha espetada no pé uma farpa de 10 centímetros, da passadeira de madeira por onde andava o sentinela e que ele quebrara ao cair.
Depois, Palma Inácio andou por Marrocos, Estados Unidos e Brasil, onde integrou grupos antifascistas que do exterior procuravam acabar com o regime de Salazar. O brevet de piloto garantiu-lhe a sobrevivência. Na manhã de 10 de Novembro de 1961, com mais quatro operacionais, tomou de assalto o Super-Constellation da TAP que fazia o percurso Casablanca/Lisboa. Esta operação, com o nome de “Operação Vagô”, tinha por objectivo lançar 100.000 folhetos a denunciar as eleições para a Assembleia Nacional que se iam realizar dois dias depois e incitar à revolta contra a ditadura. Cerca de 45 minutos após o início do voo, Palma Inácio entrou no cockpit e apontou um revólver à cabeça do comandante, explicando que o avião estava a ser assaltado. Ao aproximar-se do aeroporto de Lisboa, o comandante fez uma simulação de aterragem mas, no último momento, acelerou, ganhou altitude e afastou-se do aeroporto. Voando baixo sobre Lisboa (quase rasando a estátua do Marquês de Pombal) para evitar os radares, conseguiu escapar aos caças da Força Aérea que tinham descolado de uma base militar com ordem para interceptar e abater o avião. Sempre a baixa altitude, passou pelo Barreiro, Setúbal, Beja e Faro, enchendo os céus de Portugal com os 100.000 folhetos. Já de regresso a Marrocos, escapou de dois navios de guerra portugueses, voando a meia dúzia de metros acima da água por entre os navios, impedindo-os de utilizarem a artilharia sob pena de dispararem um contra o outro. A calma sempre mantida a bordo deveu-se ao bom ambiente criado pelo grupo assaltante que nunca mostrou as armas aos passageiros nem à tripulação, a qual, além de ajudar a distribuir os panfletos, manteve os passageiros entretidos servindo bebidas. Só quando aterraram em Tânger, no meio dos festejos pelo êxito da operação, é que os passageiros, na maioria estrangeiros, perceberam o que se tinha passado. Apesar das pressões do Governo português para que Marrocos o extraditasse, Palma Inácio conseguiu ir para o Brasil.
Em 1965, considerado pela PIDE como um dos indivíduos mais perigosos, passeava-se calmo e sorridente, sempre elegantemente vestido e com o seu cachimbo, pela exposição “Portugal Hoje” que o regime fascista montara no Rio de Janeiro. Os pides, esgueirando-se aterrorizados e impotentes, perseguiam-no pelos corredores do pavilhão, até se irem sentar na mesa ao lado da dele, numa casa de fados de Copacabana, onde passava as noites a conviver animadamente com o cantor Max e outros portugueses. Quando lhe perguntavam se não tinha medo de se expor assim, respondia que eles ali nada podiam contra ele e que, quanto aos seus projectos futuros, “eles só não podem saber nem o dia e hora, nem o local”. Fazia desporto e mantinha uma grande disciplina física e mental porque tinha de se “manter em forma para tudo o que ainda há a fazer”. Mal sabiam os que, no seu pequeno e modesto apartamento, com ele jogavam o “poker desconfio” (jogo de bluff e dissimulação que ensinou aos que com ele mais conviviam) que, para financiar futuras acções de guerrilha, estava a preparar-se para um dos mais espectaculares golpes contra a ditadura: o assalto à dependência do Banco de Portugal na Figueira da Foz.
Concretizado em Maio de 1967, este foi um golpe que muito feriu o regime de Salazar. Não só pelo descrédito e chacota que provocou na população, como porque constituiu um rude abalo nas finanças: levou cerca de 30 mil contos (uma fortuna para a época). Fugiu num avião para Vila do Bispo, no Algarve, de onde foi de carro para Espanha e depois para França. Foram recusados todos os pedidos de extradição feitos pelas autoridades portuguesas às congéneres estrangeiras que consideraram tratar-se de uma operação de carácter político.
Em Paris, com o seu grupo (que viria a constituir a LUAR – Liga de Unidade e Acção Revolucionária), Palma Inácio planeou a tomada da cidade da Covilhã (Beira Interior), fazendo explodir todos os seus acessos, nomeadamente estradas e pontes. Falhada a operação, Palma Inácio foi capturado pela PIDE, levado para Lisboa e depois para o Porto, onde ficou preso à espera de julgamento. Serrando as grades da cela com uma serra que um cúmplice meteu dentro de um pão levado pela irmã de Palma Inácio numa das visitas que lhe fez, fugiu da sede portuense da PIDE, situada na Rua do Heroísmo, contígua ao cemitério do Prado do Repouso, pelo qual se escapou sem deixar rasto.
Em 1973, foi de novo preso, depois de ter entrado clandestinamente em Portugal para assaltar um banco na Chamusca. Toda a raiva da polícia política contra Palma Inácio desabou sobre ele na primeira noite em que foi barbaramente espancado em Caxias [prisão política perto de Lisboa].
Cinco meses depois, na sua cela, recebeu, em código morse feito pela buzina de um carro, as primeiras notícias de que um golpe militar estava em marcha. No dia seguinte, 26 de Abril, chegou a ordem de libertação dos presos políticos. Palma Inácio foi o último a sair porque alguns militares se recusavam a considerar o assalto ao Banco como um acto político e resistiram à sua libertação.
Depois da “revolução dos cravos”, a LUAR transformou-se em partido político, mas nunca teve sucesso eleitoral. Palma Inácio, “O Velho” (para os que o tratavam pelo seu nome de guerra), antifascista, lutador pela liberdade e pela democracia, tornou-se militante do Partido Socialista e passou os últimos anos muito doente, num asilo em Lisboa. No dia da sua morte, 14 de Julho de 2009, altos dirigentes do PS homenagearam-no como “uma figura romântica que viveu o pós-25 de Abril em exemplar modéstia e em autopromovido apagamento”. Apesar da doença e da idade avançada, só agora têm finalmente razões para ficarem descansados… Passa Palavra
Foto do destaque: “Perícia e coragem”, Gemerson H. Dias, 2006.
Que cara legal !
procuro o amigo Gandra que fez parte do partido luar a ultima vez que o encontrei foi em 1976 carlos leitão amigo de paris