Por Antônio Nestor Canelas
“As abelhas operárias podem partir
até os zangões podem ir embora.
a rainha é sua escrava”
haikai de Clube da luta
Esta espécie de relato-crônica abaixo pode ser lida dentro do mesmo espectro político em que se encontram os textos Emancipação ao contrário: relatos de dois ex-trotskistas, que é o da ruptura. Entretanto, lá naquela outra margem, eles estavam a se afogar pela força da correnteza em que se encontravam; deste lado, fica o alerta, estamos a nos afundar diante da própria calmaria das nossas águas.
A mescla da primeira com a terceira pessoa no texto faz parte do próprio processo de ruptura (com a autocondescendência), diante da então cumplicidade daquele que escreve com aquilo que descreve.
* * *
Através de um complexo de Midas às avessas, o “meio libertário” sofre da mesma tragédia. A diferença é que Midas fora atendido, já o meio libertário acredita que fora atendido e a cena é como se Midas fosse ao mercado oferecendo cobre acreditando ter ouro em mãos. O ativista libertário diz “eu sou revolucionário” e, consequentemente, tudo que eu toco é revolucionário. Basta que eu aumente meu número de atividades – meu ativismo – para que o processo revolucionário esteja cada vez mais perto.
Assim, atividades triviais e cotidianas – geralmente pré-capitalistas – como plantar, andar de bicicleta e confeccionar itens de uso pessoal tornam-se, magicamente, revolucionárias. No meio libertário é possível também jogar futebol revolucionário, ter banda revolucionária, ter relação amorosa revolucionária, etc.
A possibilidade de ser anarco/anarca qualquer coisa é incrível, numa ausência de medida que contempla um conjunto aberto que tende ao infinito. É fascinante como, num passe de mágica, sustentar uma das mais difíceis posições políticas da história da luta de classes, aquela que já enfrentou na Rússia máquinas de guerra como o Exército Vermelho e o Exército Branco (ao mesmo tempo), fascistas e liberais na Espanha, passou a ser possível através de fazer qualquer coisa e colocar o prefixo anarco/anarca antes.
Ao invés de buscar a construção de suas próprias formas autônomas – e sólidas – de organização, a solução que o meio libertário encontrou para o impasse histórico que a esquerda autonomista se encontra diante da esquerda bolchevique é o exercício de uma série de atividades lúdicas, em oposição radical à “burocracia e autoritarismo” desta. (É a “luta de classes” idílica)
O meio libertário ou assumiu que a luta de classes acabou, e então “suas” derrotas para a esquerda bolchevique não são fruto das próprias concepções de ambos, mas de alguns momentos históricos encerrados, ou assumiu que estas concepções estão aí novamente, e então reconhece que elas irão se repetir, mas desta vez, quando a repressão bater novamente, propõe-se a diáspora das bicicletas (escrito Frágil nas costas) ou viver em comunidades da miséria como a Colônia Cecília (opção rural) ou ainda viver em alguma okupA (opção urbana), mais conhecidas como o albergue dos anarco-turistas.
No campo da fé, o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) é a religião oficial do movimento. A palavra do papa Marcos traz alívio e conforto para o nosso ativismo desenfreado. Mas esta fé contempla a conhecida solução milagrosa de sobrevivência da causa com fiéis não-praticantes, já que está evidente que a disciplina zapatista e a questão da tomada dos meios de produção está fora do horizonte de debate no meio libertário. [*] Já o caso histórico do Exército Negro (Guerrilha Makhnovtchina) é um belo exemplo – e somente – para acusar o autoritarismo dos vermelhos, mas aplicar coletivamente uma página do que Makhno disse, nem pensar.
Mas como todo não-praticante mantemos flertes com intensidades diversas com outras religiões como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), que apesar de sofrer algumas restrições por causa do “marxismo” da direção do movimento, tudo se pacifica regado ao bom e velho saudosismo ocidental de algum Paraíso Perdido, (o campo… a natureza…), aquela velha cena tradicional e reacionária do amigo/familiar que vai visitar seus próximos no campo e acha tudo lá belo e harmônico, enquanto todos levantam antes do sol para trabalhar.
Agora, como os vegetarianos radicais (Vegans, Freegans, Frente de Libertação Animal) do meio libertário articulam seu sentimento de anti-industrialização – numa operação complexa que une primitivismo com universo sem carne – com sua solidariedade ao MST e ao EZLN é para mim ainda um mistério. Talvez sejam eles voluntários para ocupar os lugares dos bois na canga de arar a terra. Quanto aos trabalhadores de frigoríficos – que sofrem LER (não só os funcionários públicos a têm), quando não têm dedos/mãos decepados – azar é o deles, ninguém mandou ir trabalhar com carne.
* * *
Diagnosticar o ser autoritário, principal ou única categoria de investigação do meio libertário, é seu motor político-existencial. Aliás, acusar a esquerda tradicional de autoritária está geralmente a serviço da justificativa permanente de toda sorte de liberalismos e individualismos. Os defeitos da esquerda tradicional transformam-se automaticamente em virtudes do meio libertário. (A bem da verdade, Makhno, quando não Bakunin e Durruti inclusive, são considerados degenerados do meio libertário, pois autoritários iguais à dita esquerda tradicional). Ou seja, todo revolucionário autêntico está fadado a ser “autoritário” para o meio libertário.
O que está absolutamente fora do horizonte do meio libertário é o fator proletário em todas estas pautas em que ele transita. Está recalcado do seu pensamento (o anti-intelectualismo é operante) o fato de que andar de bicicleta não faz cócegas na Ford, GM, Fiat, etc. (muito menos resolve a questão da mobilidade urbana para as massas), que fazer hortas urbanas nem belisca a BRFoods, Kraft e Bünge, e que produzir artesanalmente adereços ou utensílios quaisquer não passam perto da Hering, Zara, Malwee, etc. e que morar em oKupAs não combate as grandes construtoras e imobiliárias, etc.
E então, indignar-se dentro do meio libertário diante do Comando Revolucionário dos Anarquistas Unidos (CRAU) na televisão é hipocrisia ou falta de autocrítica séria (aquela com desdobramentos políticos). Todavia, infelizmente, a concessão ao ecologicamente correto e a cumplicidade com a sinistra Revolução da Colher não é exclusiva aos “anarquistas”.
Mais tragicamente, assim como os libertadores de animais, o meio libertário e sua principal ferramenta de luta, o boicote, simplesmente “esquecem” que há ainda proletários a unir-se no mundo e locais de produção a ser tomados.
Nota
[*] Salvo o texto de Leo Vicinius aqui publicado.
Belo texto!
Só faltou acrescentar o fato de que é necessário uma certa condição social para viver no mundo encantado da anarcolândia. Ou seja, não é por outro motivo que a anarcolândia é basicamente coisa de classe média – tem até anarcoterapia-, com uns dois pobres perdidos no meio.
apesar de bastante simplista, o texto mete o dedo em umas feridas que precisavam ser cutucadas.
vamos ver como virá a reação, se é que virá.
achei muito interessante o texto, mas bem simplista, chega a ser até meio vazio de grandes argumentos, repetindo coisas que são faladas já há algum tempo por pessoas que criticam o movimento dito “libertário” ou “anarquista”. textos como esse que, em especial, trazem visões demasiadamente genéricas e/ou particulares, me deixam sempre com um pé-atrás. como seria o texto de alguém que passou pelo movimento libertário e possui visões positivas do movimento? qual crítica, aqui, é movida pelo que acontece na realidade e qual é movida por um pré-conceito generalizado? Ex: como saber se TODAS as Okupas são realmente “anarco-albergues para turistas”? E uma última observação: a maneira com que o autor do texto se refere ao ELZN e seu principal porta-voz, o comandante Marcos, deixa a entender que o texto é muito mais pessoal do que analítico, muito mais subjetivo do que proposto a estudar o movimento libertário, ao invés de desclassificá-lo em sua totalidade.
Porém, essa foi apenas a minha interpretação pessoal do texto.
O Leon se posicionou muito bem, as suas referências são extremamente aleatórias e vazias, mas é claro que a sua crítica é sim construtiva. Quando você se coloca como um ex-libertário e apresenta este texto nota-se que você de forma alguma foi um libertário. Prova desconhecer o posicionamento de Canson, responsável por separar o movimento em vulgar e não vulgar, também conhecido como direta e esquerda libertária. Os não vulgares não acreditam apenas em boicotes e na economia como solução e pensa justamente nesse seu discurso de “há ainda proletários a unir-se no mundo e locais de produção a ser tomados”. Deve-se também lembrar a obra “Propriedade segundo John Locke” que sufoca todo este trecho infeliz usado na abertura do texto. Saudações!
As marchas e manifestações públicas na Argentina são um fenômeno estético bastante interessante. Ver verdadeiras colunas avançando pelas grandes avenidas com estandartes imensos, quantidade de pequenas bandeiras dos grandes partidos trotskystas, um passo firme, com muita música e cantos mil. As infindáveis pessoas que passam pela avenida, oS carroS de som vão acompanhando puxando as letras e as palavras de ordem e transportando também as bandeiras, de forma que elas eram distribuídas entre os militantes (jovens, maciçamente). É claro, para que cada um levasse uma bandeira própria teriam todos que se comprometer em tê-la em casa e trazê-la consigo na viagem de casa até o ato. Então eles se organizam para que algumas caminhonetas (com o som) as leve, garantindo sempre muitas e muitas. Você, como militante, basta chegar lá e te entregam a bandeira e pronto, você sai marchando. A impressão é de que um desconhecido qualquer poderia se aproximar e pedir uma para ele também e que saia marchando, apoiando a causa ainda que apenas naquele breve momento da marcha, participando do jeito que lhe parece confortável (como num protesto ou manifestação “de esquerda” qualquer, talvez pense ele).
Vejo neste fenômeno estético uma bela contradição, na qual um certo fetiche da imagem e da forma está intensamente relacionado com a capacidade de mobilização e de convocação: o esforço em oferecer algo para o outro, a tentativa de comunicar a idéia do partido numa modalidade acessível a todo habitante que more naquele espaço, que possa estar na rua aquele dia, uma ampla e organizada idéia da universalidade do seu projeto. E tudo isso com um alcance, uma facilidade de alguém que quer apenas estar lá com a bandeira. O meio libertário simplesmente abre mão deste perfil de trabalhador? Não se importa em ter seu apoio, contar com sua simpatia se não for para “voluntarizar-se”? Ao insistir em temas como o transporte em bicicletas ou a permacultura, não estariam buscando o que há de menos comum na sociedade? Não estariam desenvolvendo idéias e construindo suas atuações completamente por fora dos fenômenos de massas e da ficção social compartilhada pelo grosso dos trabalhadores, sejam eles precários ou especializados? É como se eles tivessem que antes adotar um outro estilo de vida que não o deles para poder compartilhar estas idéias e apoiá-las.
Em chave quase idêntica vejo o fenômeno da obsessão do anarquismo em “difundir-se”, as vezes mais empenhado em reescrever a história do movimento do que criar alguma relevância qualquer na sua prática atual.
Nesse sentido, não é o fato de que exista 1 anarco-albergue apenas que seja apenas uma casa de hippies, ou se de fato existe 1 anarco-albergue que realize o modelo da casa revolucionária por excelência. Mas a organização e as pessoas que se organizam neste tipo de prática política pouco ou nada tem a ver com o que está acontecendo no resto do mundo dos trabalhadores (se queremos colocar desta maneira), suas pautas e demais organizações abrangentes em sua capacidade de mobilização e auto-organização. Estamos falando aqui do grosso da população dos grandes centros urbanos, seus objetos de consumo, seu salário, seu acesso aos bens públicos, seu trabalho, a forma como gasta suas horas.
Estou longe de desqualificar o movimento libertário se o penso como parte integrante da luta de classes, as idéias libertárias seguem tendo extremo valor para as práticas de horizontalismo, solidariedade e radicalismo. No entanto, lembrando uma frase do Zizek direcionada contra o Occupy Wall Street, no campo do político não se deve “apaixonar-se por si mesmo”. O quanto que a ênfase no estilo de vida e na criação de “pequenas comunidades de consumo” não representa esta paixão que afasta a militância da busca pelo outro, pela alteridade social dos que escolhem e dos que não tem escolha nenhuma por um estilo de consumo (de amor, de transporte) diferente? (o que me faz lembrar, inclusive, da tradicional hortinha urbana).
Excelente texto. É muito difícil se autodenominar “libertário” quando se vê o capitalismo como relações de produção – sempre pensando como sabotar uma empresa, ou organizar os proletários não organizados. Desse meio libertário, sempre admirei aqueles que são precários, trabalham na produção capitalista, e tocavam o terror nos comandos de greve. Mas esses anarquistas e proletários são raridade hoje em dia. Realmente o anarquismo é a nova moda “alternativa” da classe média.
Li com igual atenção o texto indicado no inicio sobre a ruptura de dois militantes com o trotsquismo e considero que este do Antonio Nestor realmente pode ser visto como uma complementação necessária a uma posição que a cada dia se afirma: a premência de se estruturar organizativamente um terceiro campo político que rejeite na teoria e na prática as ortodoxias marxistas e o “meio libertário”, para dar conta da tarefa de enfrentá-los no cotidiano das lutas sociais e assim, talvez, conseguir obter sucessos menos efêmeros na luta contra o capitalismo em qualquer de suas manifestações.
Parabéns pela coragem Antonio Nestor Canelas!
Leon,
Eu concordo que a abordagem do texto é pessoal e não exatamente analítica. Quanto a isso o título do texto e a breve abertura já deixam esse tom bem demarcado. Ele é um texto pessoal, (mas eu não estava sozinho no “mundo encantado da anarcolândia”, e é sintomático que o texto foi caracterizado como “recorrente” e “pessoal” ao mesmo tempo) Depois, quanto à visão simplista do texto, também alertada pelo Ned ludd, eu posso concordar ou discordar com essa posição porque pra mim não se trata desses termos para um texto de ruptura. (Os ex-trotskistas não começam nem terminam seus relatos falando das virtudes do trotskismo, mas somente daquilo que os levou a abandonar esta fileira). Subjetivamente, eu reuni um número de elementos o suficiente para que me levassem a uma ruptura política, e aí o texto é simplista e não analítico porque eu não me proponho a entender, problematizar ou analisar as contradições do “meio libertário”, porque pra minha militância os elementos que reuni no texto não são nem pré-conceitos, eram atividades que eu mesmo fazia e que acreditava estar contribuindo para a luta anticapitalista, hoje eu analiso que não estava. Então, pra mim, a questão não é comparar as bicicletadas de ONG’s com a bicicletada do critical mass/massa crítica pra dizer que esta última não é vulgar, porque simplesmente nem a bicicletada da ultra-esquerda irá me contemplar, porque quem pega dois ônibus por dia pra ir trabalhar, vai fazer esse trajeto de bicicleta, antes e depois de trabalhar, 8, 9, 10 horas!? E os diversos portadores de necessidades? E as gestantes, crianças e idosos, etc. etc.? A bicicleta branca pra mim não é uma alternativa, nem a preta e vermelha. E para as Okupas, o exemplo segue o mesmo, tomar temporariamente imóveis que a própria classe dominante está deixando apodrecer ou de reserva e transformar isso numa luta por moradia, (dentro de uma estética/estilo de vida bastante limitado/excludente) é um modelo muito precário de luta por moradia.
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Y.Shirk,
Confesso desconhecer o posicionamento de Canson sobre um movimento libertário vulgar e outro “não vulgar”, Todavia, eu conheço a posição do Makhno, que em um texto de nem duas páginas deixa bastante claro que o “rolê libertário” já existia lá no processo da Revolução Russa:
“A desorganização conduziu os anarquistas à impotência política, dividindo-os em duas categorias:
• a primeira foi a dos que se dedicaram à sistemática ocupação das residências burguesas, nas quais se alojaram e viveram para o seu bem-estar. Eram os que eu chamo de turistas, os diversos anarquistas que vão de cidade em cidade, na esperança de encontrar um lugar onde permanecer algum tempo, espreguiçando-se e desfrutando o máximo possível de conforto e prazer.
• a segunda se compunha dos que romperam todos os laços honestos com o anarquismo (ainda que alguns deles, na URSS, façam-se passar agora pelos únicos representantes do anarquismo revolucionário) e se lançaram sobre os cargos oferecidos pelos bolcheviques, no momento mesmo em que o poder fuzilava os anarquistas que permaneciam fiéis ao seu posto de revolucionários e denunciaram a traição dos bolcheviques. “ (Sobre a disciplina revolucionária)
Ou seja, respeitando a figura histórica de Makhno, minha ruptura grosso modo é nada mais do que com esta primeira categoria que já estava lá na URSS.
A ruptura com a segunda categoria, mereceria um outro texto, porque aí eu estaria fazendo aquele modelo de texto mais diplomático que faz longos parágrafos panorâmicos elevando os pontos positivos para no final timidamente apontar as fragilidades. Meu movimento é inverso, as fragilidades já comprometeram o projeto, e para falar dos pontos positivos do “meio libertário” eu precisaria falar do especifismo /anarcosindicalismo, (que curiosamente ainda reivindica uma parte dentro do meio libertário), só que aí os problemas já são outros. Então, retomando, esse texto reuniu somente aqueles elementos mais degenerados do meio libertário, que são hoje exatamente a herança liberal dentro da luta proletária. O aspecto simplista dele é esse posicionamento/direcionamento.
Sobre eu de forma alguma ter sido libertário um dia, eu não nego este passado relativamente breve, todavia não faço questão de reivindicá-lo pra defender aqui que fui um dia um verdadeiro libertário. Talvez eu era ao mesmo tempo um ativista e um militante, (eu não descrevo nele as atividades militantes que fazia paralelamente às do meio libertário), sendo que hoje fiz a opção pela figura militante, com todos os desdobramentos históricos e políticos desta opção.
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Lucas,
Tenho a impressão de que teu comentário qualificou muito daquilo que eu tentei dizer, que é basicamente o rompimento com qualquer ilusão “comunitarista” (a dos que andam de bike, as dos que plantam na cidade, etc.), que vem assumindo o lugar que a luta comunista ocupava no imaginário de quem buscava transformar a realidade.
A conferir:
MOVIMENTO FICTÍCIO E MOVIMENTO REAL
Escrito por Alfredo Bonanno, traduzido para o espanhol por Pablo Serrano e publicado (*) no n° 16 de Ekintza Zuzena. Claro e didático, no melhor sentido do termo, embora pareça óbvio para certos especialistas e catedráticos do “movimento anarkista”, é obra de quem sabe o que está dizendo – quando menos, porque se trata de observador-participante dos fatos que relata.
Ironizando a megalomania dos anarcoburocratas, a presunção analfabeta dos mandarins libertários e outros cacoetes dos onipresentes mascates da liberdade, o autor nos faz lembrar de farsescas personagens (durrutis fujões, proudhons avarentos, floras tristans promíscuas etc., além dos inumeráveis tipos ou poses: o guerrilheiro heróico, a poetisa feminista, o(a) punk de butique, o troglodita anarcristão, o sindicalista combativo etc.), que compõem uma ruidosa malta, duplamente notória pelo oportunismo que lhe sobra e pela vergonha que lhe falta.
Alfredo e Pablo são dois anarquistas revolucionários que intermitentemente têm sido forçados a aceitar a nefasta hospitalidade carcerária dos estados democráticos sob os quais vivem.
(*) em português, na Biblioteca Virtual Revoluionária: http://www.reocities.com/autonomiabvr/
“Está recalcado do seu pensamento (o anti-intelectualismo é operante) o fato de que andar de bicicleta não faz cócegas na Ford, GM, Fiat, etc. (muito menos resolve a questão da mobilidade urbana para as massas), que fazer hortas urbanas nem belisca a BRFoods, Kraft e Bünge, e que produzir artesanalmente adereços ou utensílios quaisquer não passam perto da Hering, Zara, Malwee, etc. e que morar em oKupAs não combate as grandes construtoras e imobiliárias, etc.”
Assim como está recalcado no pensamento do autor do texto que andar de carro não fortalece a luta por transporte público de massa, que comer carne e produtos do agronegócio não combate nem em um milímetro a despropriação do homem do campo e que comprar produtos industrializados também não liberta os trabalhadores em situação análoga à escravidão. Basicamente o que se propõe? Nada. Fiquemos todos na odiável expressão “zona de conforto” e façamos greves e outras formas de luta (sim!) combativas (sim), mas nos esqueçamos de que 2/3 da população mundial hoje em dia vive desempregada, sub-empregada ou na economia informal.
Não vejo como fazer greves e outras formas de luta coletiva, direta e combativa pode significar em algum grau manter-se numa “zona de conforto” e esquecer que “2/3 da população mundial hoje em dia vive desempregada, sub-empregada ou na economia informal”… Não seria justamente o contrário? Não seria encarar como uma atividade militante deixar de comer carne e andar de bicicleta, isso sim, ficar na zona de conforto da vida pessoal?
Katia Motta,
Mas vc conhece alguem que diz que andar de carro e comer carne eh lutar contra o capitalismo, (ou a favor dele, tanto faz –
porque eu desconfio bastante de que os capitalistas ficariam satisfeitos apenas com os gostos de consumo e/ou meio de transporte dos explorados)
Porque eh isso que o texto esta criticando: quando se transforma uma atividade trivial, quando nao escolha pessoal para aqueles que tem a condicao da escolha, em uma bandeira de luta. E o meio libertario, na minha leitura, tem sido a vanguarda da estetica do cuidado de si.
Sempre tentei me envolver com as mais variadas lutas, mas a cidade que eu vivia era pequena e as lutas organizadas para eram poucas e normalmente aparelhadas por partidos. Me mudei para uma grande cidade e pude entrar em contato com vários grupos e organizações libertárias. Para mim era chance de aprender e ver como funcionavam na prática.
Me aproximei de uma dessas okupas. O pessoal lá não bebia, não fumava, no banheiro tinha um aviso de que se deveria fazer xixi sentado para supostamente aquebrantar a própria masculinidade (sempre me perguntei se a pessoa que havia escrito aquilo era mesmo uma mulher ou um cara que nunca tinha feito xixi e cocô na mesma sentada), além disso eram vegans e contra o trabalho.
Eu vi por diversas vezes uma dessas pessoas aconselhar membros de uma ocupação urbana a deixarem seus trabalhos para “não ajudarem o sistema” e como alternativa instigavam a criação de uma horta agroecológica. Isso me causava repulsa, pq se tratavam de pais e mães de família… como iriam sustentar seus filhos à base de horta? Mas o pior mesmo é que eles não tinham uma dessas hortas no squat e normalmente iam ao fim das feiras-livre para recolher com os vendedores aquilo que não mais seria comercializado. Um dia eu vi esse pessoal, todos muito bonitos, bem criados, fortes (embora lhes faltasse b12, as unhas fossem quebradiças e a memória lhes fosse um pouco fraca) todos preocupados em correrem pelas barracas para pegarem os restos de comida antes dos mendigos chegarem. Este pra mim foi o dia do basta.
Não sei o que é pior se um ex-libertário, um ex-bolchevique, todos se portam como o casal que se separa e mantém o ódio da ex parceira ou parceiro. Tem que fazer de sua vida um combate permanente em tudo aquilo que deixou de acreditar, que se arrepende de ter feito. Nossa mídia está enfestada de ex-trotskistas, ex-comunistas, que hoje tem grande espaço para criticar qualquer posição que não seja o elogio ao individualismo e ao sagrado mercado. É interessante um texto que versa( de forma ironica ou não, pouco importa) sobre os comrtamentos ditos “anarcos”. Mas poderia fazê-lo sem cair no preconceito e desrespeito. Porque criticar quem opta por fazer de sua vida diária um comportamento menos “sendo comum”, optando por ser vegetariano?, o que prejudica a luta social de quem opta por usar bicicleta ao invés de carro, e o que isso impede que o debate anti-sistema seja realizado? Será que os anarquistas/libertários precisam aceitar todo o modo de vida que criticam como única forma de vida para que sua crítica seja aceita??? Criticar quem decide viver em uma ocupação ou a luta dos zapatistas no teclado de um computador é muito confortável, mas quem sabe não seria melhor, pelo menos mais honesto, conhecer essa realidade, o que pensam essas pessoas, antes de sair desrespeitando tudo como a direita midiática faz o tempo todo. O anarquismo tem enormes contribuições seja em suas teorias como suas práticas, uma delas que creio é mais significativa do que discutir “comportamentos” é talvez sobre o Estado. Os anarquistas espanhóis se viram nesse dilema durante a guerra civil, quando tomaram o poder na Catalunha e ocuparam espaços na institucionalidade, tendo inclusive ocupado cargos de ministro ( Garcia Oliver foi ministro da justiça da Espanha e Federica Montseni, ministra da Saúde, no governo republicano). Porque não discutir questões como esta, tão importantes quanto discutir o atual estágio da luta de classes, ou a situação da classe operária, como apontou o artigo. Mas sem hierarquizar, o que seria “mais importante”, ou “menos”, pois essa é uma postura, decididamente pouco libertária, ou melhor, digna de um ex-libertário mesmo.
Bacana a discussão. Acrescentaria algumas coisas:
Como não há regras claras e um sistema punitivo aberto e bem explicado, rola muita fofoca no meio libertário. Problemas no meio são inicialmente expostos pelas conversas secretas até virarem um boicote ao condenado. Isso sem que a pessoa tenha direito a uma acusação formal e direito de defesa. O boicote, isolamento, é a principal arma punitiva.
O meio é fratricida. Com a mesma força com que lutam contra o sistema, os militantes do meio libertário lutam uns contra os outros. Muitas vezes, as sangrias internas são o principal foco de atenção. A arma do boicote e isolamento, queimação de pessoas, é disparada tal qual uma metralhadora.
Outro foco de desgraça é a discussão sobre sexo livre. Rola troca de parceiros, sexo coletivo e, quase sem exceção, tudo termina em muita encrenca. É o fim de amizades, coletivos, e até lutas particulares.
Embora a pregação contra os líderes, o meio libertário é mestre em produzir os seus chefes próprios. Grupos ou pessoas vão adquirindo proeminência, respeito, e acabam se tornando os emissores, os que dão a linha, os que indicam caminho. Isso vai até um ponto em que realmente se estabelece uma hierarquia entre os “respeitados” e os comuns. Já ví assembleia na qual era simplesmente impossível que um desconhecido tivesse a oportunidade de falar. E já ví mesas em que um desconhecido falava mas ninguém prestava atenção, aguardando pela fala dos “responsa”.
O meio libertário adquiriu uma certa hegemonia em determinar o que se considera por revolucionário hoje em dia. Entretanto, os trabalhadores passam longe do que é esse meio. E a maioria dos trabalhadores que conheço são contestadores, embora utilizem mais a sabotagem e não o enfrentamento aberto. Ao se fixar nessa imagem do revolucionário vendida pela anarcolândia, acaba-se escondendo a atividade contestadora dos trabalhadores comuns.
Esse debate todo me levou à seguinte pergunta: se não são os partidos nem é a anarcolândia, o que é ser revolucionário hoje?
Ainda existe a figura do revolucionário?
Gostaria de ver umas respostas boas.
Abraço!
Antônio,
Você perguntou: «Ainda existe a figura do revolucionário?» Mas não será que você mesmo respondeu? «[…] a maioria dos trabalhadores que conheço são contestadores, embora utilizem mais a sabotagem e não o enfrentamento aberto». Talvez a questão fique resolvida se deixarmos de olhar para um lado e passarmos a olhar para outro.
Eu não sei. Gostaria de saber. Estou realmente travado nessa questão.
Tem outra coisa que me incomoda. Como disse, a maioria dos trabalhadores que conheço são contestadores. Eles falam mal da polícia, do governo, dos patrões, do sistema. Possuem muita noção. Esse papo de que trabalhador comum não possui noção de classe é mentira. Mas eles ficam na sabotagem. Faltam, enrolam, sabotam, destroem, roubam coisas. No entanto, embora possuam uma postura combativa, ficam na sabotagem, só vão para o enfrentamento aberto raramente, quando tem os quebra e coisas do tipo. Os trabalhadores que conheço são insatisfeitos, são sabotadores, mas também não confiam na esquerda organizada…isso deixa tudo muito confuso.
No geral, estou de acordo com o que disse o Antônio. Mas talvez não devêssemos falar em “figura revolucionária”. O que importa haver é uma força social revolucionária, de modo que a simples existência de uma figura, ou de um figura, já indica a fragilidade dessa força social.
Por outro lado, e talvez como pressuposto da existência dos figuras, não vejo hoje, no Brasil pelo menos, que a maioria dos trabalhadores seja contestadora, acho que tende, isto sim, para o conservadorismo. Obviamente que é um comportamento diuturnamente fabricado e que não elimina a ocorrência de situações de contestação, mas dificilmente rompem com o individualismo reinante . Mas aí já acho que é outro assunto.
Taiguara,
Refleti sobre seu comentário e acho que ele me ajudou a responder um pouco a minha pergunta. Embora eu não concorde totalmente quanto a questão do conservadorismo. Nos setores mais precários, em que toda família tem um parente preso ou já passou pela cadeia, esse conservadorismo não existe, ou não é tão forte assim. A propriedade privada é totalmente desrespeitada: invadem terrenos, fazem gatos na água, luz, roubam no mercado, na empresa, dão calotes nos bancos, quebram os ônibus, xingam a polícia…são o inferno. Trata-se de pessoas que não cabem na imagem de santos que uma certa esquerda gosta. São parte de uma classe trabalhadora vida loca.
Mas ai vou para o seu ponto. Eles fazem tudo isso de uma forma individualizada. Invadem lá um terreno mas é cada um por si, o que gera problemas até na estruturação da ocupação. Fazem gatos mas é também no cada um por si e ai fica aquele monte de fio bagunçado. Assim, talvez possamos entender que aquelas pessoas que ajudam essa classe vida loca a ocupar um terreno não de forma individualizada mas coletiva e organizada é que são revolucionárias. Uma vez que transformam um ímpeto contestador individualista num ímpeto contestador coletivista. E há uma grande diferença entre um terreno invadido por uma soma de individualidades, cada um por sí, e um terreno invadido coletivamente.
Antônio, tem um livro de um “figura” chamado João Bernardo que discute a passagem de formas individualistas e passivas para formas coletivas e ativas de luta, entre outras questões. Ver “A economia dos conflitos sociais”.
Saudações!
O mundo muda a partir de cada um, os movimentos vinham de fora, a militância era externa.. teve seu tempo. Por sorte, chegou o momento em que cada um começou a fazer sua revolução, a mudança de fato, a interna. Quem entendeu isso passou a se reinventar, e quem não entendeu… Então, andar de bicicleta, não comer animais, consumir pouco, respeitar a vida e as pessoas, desejar mais crescimento pessoal e menos dinheiro no banco, viver de forma mais honesta consigo mesmo, estar preparado para a ação certa no momento certo… essa é a revolução libertária. É esse o resultado do exercício do anarquismo libertário: mudança pessoal, sabemos que não vamos parar a Montsanto, nem a Ford, nem o resto.. por enquanto não.
é verdade, Marcia. O importante é pensar no reino de Deus, cuidar da vida após a morte e não se deixar levar por discursos superficiais. Se cada um cuidasse um pouco melhor de sua própria alma o mundo seria um lugar mais calmo e ameno, com menos bagunça.
A revolução já está ao nosso alcance, só não a vive quem não quer.
http://www.youtube.com/watch?v=iYMAOi5cJ4A
Além do comentário acertado do Lucas, e da alta precisão conceitual que o link colado por ele garante à análise do comentário da Marcia, vejo que é isso mesmo, o refluxo das lutas é de tal monta que a pessoa romântica e inocente reproduz cada vírgula da ideologia individualista burguesa e, honestamente consigo própria, pensa que é “libertária”, “anarquista”, “rebelde”, “contestadora” e que está “mudando o mundo”. O capitalismo de “selos verdes” de “sustentabilidade ambiental e responsabilidade social” agradece o novo consumidor proveniente da esquerda.
Em tempo:
http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/04/1438019-sou-de-esquerda-mas-ninguem-acredita-diz-fhc.shtml
Somos John Galt, unidos na individualidade.