Por Marcelo Lopes de Souza
Leia a 2ª parte deste artigo.
“Terrorismo”?!!
A atual conjuntura das lutas sociais no Brasil é complexa e confusa. No campo, a luta pela reforma agrária perdeu ímpeto nos últimos anos, em decorrência do enfraquecimento da organização Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), cuja influência foi sendo minada por uma mistura de cooptação governamental de parte de suas bases (por meio de políticas públicas compensatórias como o Programa Bolsa Família) com uma perseguição implacável por parte da mídia corporativa (e de uma ampla camada do Judiciário). De outra parte, nas cidades de um país que, há várias décadas, já é predominantemente urbano, mas no qual as lutas sociais mais visíveis e profundas andaram, entre os anos 1980 e até recentemente, curiosamente concentradas no campo, [1] os protestos antissistêmicos pareceram renascer em grande estilo em junho de 2013; no frigir dos ovos, contudo, o que se viu foi uma onda de protestos ambígua e contraditória, em que as forças anticapitalistas foram sendo gradualmente eclipsadas por manifestantes e bandeiras de luta genéricas e reformistas, sem contar o aparecimento de grupos claramente conservadores e oportunistas e até mesmo reacionários. [2]
Oportunismo, diga-se de passagem, tem sido uma marca da atual conjuntura. A morte do cinegrafista Santiago Andrade, atingido na cabeça por um rojão durante ato nas imediações da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, em 6 de fevereiro de 2014, desencadeou uma nova e particularmente intensa maré de ataques da grande imprensa contra os protestos sociais. Para além do corporativismo profissional que, na esteira da trágica morte de um trabalhador da imprensa, fez a grande mídia dar destaque a interpretações no mínimo precipitadas por parte de autoridades policiais (como a propósito da qualificação imediata de um homicídio nitidamente acidental e, portanto, culposo, como doloso) e a veicular mensagens alarmistas sobre “restrições à liberdade da imprensa”, o que é inegável é que o momento tem sido aproveitado para impulsionar uma maquinação em curso já há bastante tempo: a tentativa de manietar e amordaçar aqueles que decidem protestar contra as causas e os efeitos do capitalismo à brasileira, incluindo-se aí, com destaque, os descalabros em matéria de perversão e manipulação de prioridades (motivo condutor da oposição a megaeventos como a Copa do Mundo).
Tramitando no Senado desde o ano passado, o Projeto de Lei (PL) Nº 499/2013, de autoria do senador pelo Amapá Romero Jucá (PMDB), destina-se a tipificar o crime de terrorismo. Segundo o caput do Art. 2º do PL, terrorismo seria “[p]rovocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa ou tentativa de ofensa à vida, à integridade física ou à saúde ou à privação da liberdade de pessoa”. [3] Ora, é em tudo e por tudo evidente que, no Brasil de hoje, não é de “terrorismo” ou de “atentados terroristas” que se trata, apesar dos esforços cínicos do aparelho de Estado em apresentar a violência ocorrida em meio a protestos sociais [4] dessa maneira, a partir daí tentando justificar institucionalidades e estratégias repressivas específicas. Afinal, os assim chamados black blocs não estão buscando deliberadamente praticar quaisquer homicídios com a finalidade de aterrorizar ou criar comoção na população. [5] A rigor, a sua tática nem sequer se baseia no emprego deliberado da violência, mas sim na utilização de força destrutiva contra prédios (ou, esporadicamente, até mesmo mobiliário urbano) como expressão de revolta. [6] Mas o fato é que, em uma conjuntura marcada pela realização de megaeventos como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, reforçar as malhas de controle social passa a ser algo urgente e prioritário para o Estado. Este fará tudo ao seu alcance para que nada “dê errado” ou “saia do controle” (com os produtos da ineficiência e da corrupção no seio do próprio Estado sendo, provavelmente, as principais exceções, se é que, nesses casos, as expressões “dar errado” ou “sair do controle” fazem algum sentido…). Não por acaso, o Art. 4º do PL, em caráter complementar à definição oferecida no caput do Art. 1º, toma como alvo o que é chamado, ali, de “terrorismo contra coisa”: “[p]rovocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante dano a bem ou serviço essencial.” Previsivelmente, a lista de bens ou serviços essenciais não é pequena, e, na atual conjuntura, não poderia, obviamente, deixar de incluir os estádios esportivos:
§ 1º Considera-se bem ou serviço essencial, para efeito do caput deste artigo, barragem, central elétrica, linha de transmissão de energia, aeroporto, porto, rodoviária, ferroviária, estação de metrô, meio de transporte coletivo, ponte, plataforma fixa na plataforma continental, central de energia, patrimônio material tombado, hospital, casa de saúde, instituições de ensino, estádio esportivo, sede do poder Executivo, legislativo ou Judiciário da União, estado, Distrito Federal ou municipal, e instalação militar.
Pelas prováveis implicações de sua abrangência e de seu mal disfarçado casuísmo, o PL 499/2013 já recebeu a alcunha de “lei antimanifestação”. É preciso registrar, de toda maneira, que esse projeto de lei adquire ainda mais sentido quando consideramos não somente a “pequena conjuntura”, especificamente ligada à realização dos dois principais megaeventos em solo brasileiro em 2014 (Copa do Mundo) e 2016 (Olimpíadas do Rio de Janeiro), mas também a “larga conjuntura” que se consolida já nos anos 1990 e prossegue até hoje, em que sobressaem as diversas tentativas (que se espraiam desde os dois mandatos presidenciais de Fernando Henrique Cardoso até o de Dilma, passando pelos dois de Lula) de se regularizar e aprimorar o emprego das Forças Armadas em missões que a Estratégia Nacional de Defesa chama de “Garantia da Lei e da Ordem” (GLO). [7] Como alguns perceberam desde o início, a GLO compreende desde a repressão à criminalidade violenta ordinária (como já ocorreu várias vezes no Rio de Janeiro, de modo emblemático) até, potencialmente, a repressão a protestos populares e lutas sociais em geral. Diante desse quadro, o que podem e devem as forças críticas fazer: recuar, simplesmente, como deseja o Estado? Ou renovar a reflexão sobre seus esforços e suas estratégias de auto-organização política e divulgação de idéias?
Contra a força e a violência “míopes” nos protestos sociais (e mais ainda contra a “violência estrutural” do sistema)
O fato de a minha declaração de oposição à “violência estrutural” do sistema (exploração de classe, opressões as mais diversas, estigmatizações, embrutecimento cultural e estético) vir entre parênteses no título desta seção não quer sugerir que essa crítica é menor do que a que faço à força destrutiva e à violência antissistêmicas que ora chamo de “míopes”, e que têm sido praticadas por alguns grupos de manifestantes. [8] Pelo contrário: se a conjuntura me sugere a necessidade de uma tomada de posição que dá destaque a uma objeção ao uso pouco ou antipedagógico da força destrutiva e da violência como instrumentos de protesto, a consciência da estrutura obriga-me a sublinhar que, como pano de fundo para a força e a violência “míopes”, e realimentando-as todo o tempo — não raro em benefício dos objetivos sistêmicos de desmoralização e isolamento de dissidentes e de controle social —, está a “violência estrutural” [9] do próprio capitalismo e de seu Estado.
Já em fins do século XIX e no início do século XX, os atos terroristas praticados por alguns militantes anarquistas haviam despertado uma interessante polêmica. Eram, comumente, atos isolados, praticados por militantes solitários. A forma predileta de ação de protesto desse tipo era o magnicídio (e particularmente o regicídio e o tiranicídio), ou assassinato de representantes eminentes dos grupos dirigentes e classes dominantes. A esse tipo de protesto foi dado o apelido de “propaganda pela ação” (adaptação do francês propagande par le fait). Todavia, até que ponto a extinção violenta da vida de um potentado ou prócer de algum regime teria, realmente, um sentido politicamente construtivo, com a finalidade de incitar à revolução, ou seria, pelo contrário, no fim das contas um desperdício de energia revolucionária que poderia, inclusive, gerar toda uma série de danos colaterais, como o eventual sacrifício de inocentes e, em decorrência, o recrudescimento oportunista da repressão estatal? A controvérsia estava posta. E, para além do magnicídio, a polêmica em torno da necessidade da violência para a (re)construção sócio-espacial continua atual.
Líderes revolucionários marxistas, como Lênin e Trotsky, censuraram aquilo que consideravam formas de ação individualistas e pequeno-burguesas (esses eram e ainda são, aliás, os termos injustos frequentemente utilizados pelos marxistas para caracterizar os anarquistas em geral). Contudo, não foram apenas os marxistas que levantaram objeções àquela interpretação limitada da “propaganda pela ação”. Também vários anarquistas ilustres, como Élisée Reclus, Piotr Kropotkin e Errico Malatesta, mesmo demonstrando compreensão e hipotecando solidariedade aos companheiros acusados de praticar atentados contra pessoas influentes, em última análise não revelaram entusiasmo por esse tipo de prática insurgente — e, em alguns casos mais, em outros menos claramente, de algum modo mantiveram distância dele. Algumas vezes, inclusive, as posições dos libertários mudaram e foram, com o tempo, amadurecendo e tornando-se mais matizadas: no número de 25 de dezembro do jornal Le Révolté, assim se exprimia Kropotkin: “a revolta permanente pela palavra, pelos escritos, pelo punhal, pelo fuzil, pela dinamite […] tudo é bom para nós, desde que não seja na legalidade”; dez anos depois, mais sábio e menos juvenil, tendo extraído as devidas lições e feito um balanço preliminar dos resultados da “propaganda pela ação” no sentido restrito original, admitia ele que “uma estrutura baseada em séculos de história não pode ser destruída com alguns quilos de explosivo”.
Certamente, dada a sua pluralidade, o pensamento e a práxis libertários (ou mesmo o anarquismo e suas correntes, em sentido mais estrito) jamais adotaram uma interpretação única acerca do problema do emprego da violência nos processos de mudança sócio-espacial: suas potencialidades, suas limitações, sua dosagem, seus perigos e sua necessidade. O que se pode afirmar, entretanto, é que os pensadores mais expressivos tanto do anarquismo clássico quanto do neo-anarquismo (um Murray Bookchin, por exemplo) ou ainda do autonomismo libertário (como, em primeiro lugar, Cornelius Castoriadis) [10] se acautelaram e levantaram ressalvas ou mostraram reservas relativamente ao uso da violência — não para rechaçá-la a priori em nome de qualquer pacifismo, mas sim por não perderem de vista os perigos de seu mau emprego e sua banalização e os limites de sua eficácia, com sua subsequente e previsível perda de legitimidade.
Guardemos, claro, e acima de tudo, as óbvias diferenças entre distintos contextos históricos e geográficos. Como já foi dito na seção introdutória, é em tudo e por tudo evidente que, no Brasil de hoje, não é de “terrorismo” que se trata. E muito menos se deve confundir agressões deliberadas contra pessoas (algo evitado no âmbito da tática black bloc) com o ato simbólico de danificar objetos. Entretanto, isso não nos deve impedir de refletir com seriedade sobre as prováveis disfuncionalidades de certas formas de ação de protesto, versões atuais da “propaganda pela ação” em sentido estreito — a despeito de se tratar muito mais, hoje em dia, do emprego da força contra objetos inanimados do que propriamente do uso da violência. Uma tal reflexão se impõe principalmente quando eventuais excessos de uso da força destrutiva (e, às vezes, também da violência) ocorrem em meio a um quadro em que é patente a necessidade de investir muito mais do que até agora foi feito em agitação eficaz baseada em esforços de persuasão e organização popular através da difusão maciça e criativa de críticas, argumentos, contra-argumentos, princípios, dados, exemplos concretos e denúncias bem fundamentadas e bem expostas.
Notas
[1] Ver, sobre esse aparente paradoxo, o artigo de minha autoria “Cidades brasileiras, junho de 2013: o(s) sentido(s) da revolta”, em três partes (publicadas no sítio Passa Palavra, sucessivamente, em: 09 de julho de 2013; 16 de julho de 2013; 23 de julho de 2013).
[2] Consulte-se, sobre isso, ibidem.
[3] A íntegra do PL pode ser encontrada aqui.
[4] Violência essa, em alguns casos (quem ousaria duvidar?), possivelmente até mesmo manipulada por agentes do próprio Estado, com isso indo além da brutalidade policial explícita…
[5] Aliás, como oportunamente lembrou Pablo Ortellado n’O Globo, “as duas pessoas que dispararam o rojão [contra o cinegrafista Santiago Andrade] já declararam que não fazem parte do Black Bloc.”
[6] Por razões certamente variadas, que vão da ignorância à manipulação de informações, a grande imprensa não raro confunde os conceitos de “violência” e “força”, pondo tudo no mesmo saco. Sem querer entrar em pormenores técnicos de uma discussão que envolve aspectos filosóficos, sociais e jurídicos, a violência diz respeito a agressões entre indivíduos (ou de pessoas contra outros seres vivos), ao passo que a força (que, aqui, especificarei como “força destrutiva”) pode muito bem visar fundamentalmente à transformação/destruição/aniquilamento da matéria inerte, não viva.
[7] A Estratégia Nacional de Defesa, aprovada pela Presidência da república mediante o Decreto Nº 6.703, de 18 de dezembro de 2008, pode ser acessada aqui. Para uma discussão detalhada sobre o pano de fundo que é o processo de “militarização da questão urbana”, consulte-se, de minha autoria, Fobópole: O medo generalizado e a militarização da questão urbana (Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2008).
[8] A questão não é simples, e tampouco deve ser trivializada, na base de generalizações apressadas. Em primeiro lugar, porque não só ativistas e manifestantes em sentido forte praticam depredações; em algumas circunstâncias, também outras pessoas, de jovens não particularmente politizados e em busca de “adrenalina” até policiais infiltrados nas manifestações e interessados em desmoralizar e enfraquecer uma onda de protestos, podem danificar objetos e praticar saques. Além do mais, o próprio black bloc, mais uma tática do que propriamente um grupo, é tudo menos coeso, e muito menos unificado. Há margem, em meio à tática de ataques efêmeros e descentralizados contra objetos-símbolo do capitalismo, para uma razoável diversidade de estilos; com efeito, entre suas origens na Alemanha dos anos 1980 e o Brasil de hoje, parece ter havido uma certa mutação, que não se configura, porém, necessariamente como amadurecimento.
[9] A expressão “violência estrutural” é, tanto quanto eu saiba, da lavra do sociólogo norueguês Johan Galtung (nascido em 1930).
[10] Estou consciente de que “autonomismo libertário” é uma expressão essencialmente pleonástica, pois a autonomia, em sentido profundo, não pode ser outra coisa que não libertária. Porém, uma vez que certas correntes e interpretações neomarxistas, aparecidas desde os anos 70, se utilizam de oximoros tais como “marxismo autonomista” (associado a nomes como os de Antonio Negri e John Holloway), vale talvez a pena ressaltar bem aquilo a que estou me referindo.