Os governos de Lula e Dilma representam uma ampliação de margem de manobra dos movimentos sociais ou um novo patamar de cooptação? Por Marcelo Lopes de Souza

Leia a 1ª parte deste artigo.

“Participação popular” patrocinada pelo Estado: promessas, ilusões e realidades

Ao mesmo tempo em que, na década de 1990, os movimentos da “primeira geração” dos “novos ativismos” experimentavam seu declínio e os da “segunda geração” mal haviam despontado, começavam a multiplicar-se as experiências de gestão e planejamento participativos, muito impulsionadas pela experiência de Porto Alegre com o orçamento participativo a partir de 1989, sob o prefeito Olívio Dutra, do Partido dos Trabalhadores.

Em um país como o Brasil, marcado pelas sequelas da crise da dívida externa e dos decorrentes “ajustes estruturais” (e dos inevitáveis ajustes fiscais, privatizações etc.) e em que as finanças do Estado (nos vários níveis da administração pública, mas sobretudo nos municípios) se acham em uma situação deplorável, a questão sociopolítica por trás da “participação” como instrumento de “governança” passa a ser indescolável de uma espécie de convite para co-gerir a crise, em última instância. É claro que isso não elimina o fato de que existem ou existiram experiências participativas interessantes e relativamente arrojadas (lamentavelmente, uma ínfima minoria [vide SOUZA, 2006]); não se trata, por conseguinte, de desqualificar generalizadamente esquemas tais como orçamentos participativos e conselhos gestores de política urbana, visto que alguns deles — ainda que, a rigor, muito poucos, como acabei de dizer — têm sido, pelo menos parcialmente, úteis como mecanismos redistributivos indiretos, apesar de suas limitações. [1]

O problema é que, para além das limitações intrínsecas aos canais e instâncias de planejamento e gestão participativos (examinadas pormenorizadamente pelo autor em trabalhos anteriores: ver, por exemplo, SOUZA, 2006), tais canais e instâncias potencialmente também acarretam, para os movimentos sociais, determinados riscos, notadamente o risco da cooptação, tangenciado no parágrafo anterior  —  risco esse que não deve ser subestimado. Quão grande é e tem sido ele? Como evitá-lo ou, pelo menos, reduzi-lo? Uma parcela da sociedade civil já começou a perceber que é comumente exaustivo (e não raro infrutífero, e às vezes até mesmo perigoso) negociar com o Estado e utilizar canais participativos por ele instituídos. Isso não justifica, decerto, nenhuma postura simplista no estilo “bem, então esqueçamos por completo e de uma vez por todas as instâncias participativas”; entretanto, torna-se patente a necessidade de se evitar qualquer inocência a esse respeito. Esquece-se ou subestima-se, com frequência, o fato de que o Estado é, em última instância, uma estrutura heterônoma. Em face dessa essência do aparelho de Estado, uma vez que a admitamos, ter como objetivo tentar influenciar o Estado por meios institucionais é algo que só se pode conceber, na melhor das hipóteses, como um objetivo tático (e, mesmo assim, a ser tratado com extrema cautela), e jamais como um objetivo estratégico ou um fim em si mesmo.

Pode-se admitir que, devido à natureza contraditória dos processos políticos e do próprio Estado, conjunturas favoráveis e brechas e potencialidades legais e institucionais estão muitas vezes presentes; e, conquanto não se perca de vista a necessidade, por parte dos movimentos, de se avaliar, diante de cada situação específica e a todo momento, os riscos de cooptação (sobre isso, discorri extensamente em SOUZA, 2006: Cap. 10 da Parte II; SOUZA, 2012), é razoável reconhecer a necessidade de preparar-se para explorar essas conjunturas, brechas e potencialidades. Se e como uma instância participativa institucionalizada constitui, acima de tudo, uma oportunidade ou um risco, isso é uma questão que só pode ser respondida caso a caso. O ensinamento que já se pode extrair da análise das experiências brasileiras que surgiram nos últimos vinte anos é que, além de a multiplicação de instâncias ditas participativas [2] não representar, de per se, nada que mereça dar margem a um grande otimismo, o cuidado de se avaliar com acuidade e exigência o caráter promissor ou ardiloso de cada situação concreta é algo que se deve cultivar o tempo todo. Na verdade, a proliferação de instâncias participativas inconsistentes pode, inclusive, não só levar, por uma questão de baixa eficácia e frustração de expectativas, ao desgaste e até a um descrédito menos ou mais generalizado de determinado tipo de esquema (conforme já alertei, há muito tempo, a propósito do orçamento participativo: cf. SOUZA, 2000) ou da bandeira da “participação popular” em geral (como em SOUZA, 2006), mas colaborar, de fato, para a cooptação de movimentos e suas organizações e da população em geral. Nessa situação, de um ângulo que contemple a lógica e os interesses “sistêmicos” (reduzir contestações e quebrar resistências), a multiplicação de instâncias participativas de pouca consistência não deixará de revelar, sim, uma relevante dimensão de funcionalidade e eficácia… para o controle social.

E quanto ao governo Lula (e, na sua sequência, o governo Dilma)? Representaria ele, em primeiro lugar, uma ampliação de margem de manobra dos movimentos sociais, como muitos quiseram acreditar, ou… um novo patamar de cooptação? Comece-se discutindo um pouco o quadro experimentado, particularmente, pelos ativismos urbanos ligados diretamente às lutas por habitação e infraestrutura, quadro esse que pode servir, aqui, como um exemplo emblemático.

Sob a égide do governo Lula foi criado o Ministério das Cidades. Apresentado como uma solução institucional arrojada e inovadora — uma instância estatal de nível ministerial, capaz de articular diferentes áreas e agentes com a finalidade de facilitar o enfrentamento de problemas urbanos complexos —, o referido ministério, a bem da verdade, desde o início padeceu de diversos problemas: seu pequeno tamanho (e reduzido número de técnicos), os poucos recursos de que dispôs durante os primeiros anos (mais ou menos correspondendo ao primeiro mandato de Lula) e, como se isso não bastasse, também disputas e problemas estruturais internos. Apesar disso, durante os primeiros anos, basicamente equivalendo à gestão de Olívio Dutra (ex-sindicalista, ex-prefeito de Porto Alegre — o primeiro prefeito petista da capital gaúcha — e ex-governador do Rio Grande do Sul), o Ministério das Cidades conseguiu promover alguns estudos e debates mais ou menos relevantes. Os seus primeiros anos, decididamente, contrastam com o convencionalismo que dele se apossou após a substituição de Olívio Dutra por Márcio Fortes (político conservador, indicado no bojo de um dos muitos acordos que Lula e o PT tiveram de fazer, em nome da “governabilidade”). Desde então e até agora, o Ministério das Cidades, hoje em dia gerenciador de vultosos recursos (graças ao Programa de Aceleração do Crescimento, fortemente direcionado, entre outras coisas, para aquecer a indústria da construção civil, mediante a contratação da construção de casas populares — não necessariamente para a camada mais pobre da população de baixa renda, curiosamente…  — e de grandes obras de infraestrutura), perdeu completamente a aura de instituição inovadora que ainda tinha, aos olhos de muitos, em seus primeiros tempos.

Sintomático de um certo convencionalismo (para não dizer conservadorismo) que atravessa o Ministério das Cidades, no fundo, desde o seu começo, mas que foi agravado nos últimos anos, é a forma superficial como o assunto da “participação popular” é tratado, e a maneira ainda mais superficial e acrítica como a Lei Federal de Desenvolvimento Urbano, o Estatuto da Cidade, é tratada nos documentos oficiais. Não deve restar dúvida de que o Estatuto da Cidade (Lei n.° 10.257 de 2001) representou um certo avanço em alguns aspectos, no contexto do ordenamento jurídico formal brasileiro — inclusive no que concerne à tal participação popular, que se acha mencionada em sete artigos diferentes, três dos quais em um capítulo específico sobre “gestão democrática da cidade”. Contudo, a importância do Estatuto da Cidade tem sido amiúde exagerada (e seus defeitos, entre os quais contradições, lacunas, redundâncias e a presença de instrumentos úteis para a acumulação de capital, como as operações urbanas) têm sido muito pouco debatidos, bem no estilo do que poderia ser chamado de “tecnocratismo de esquerda”. Um exemplo claro disso é a maneira como começa uma mensagem enviada por e-mail em 5 de outubro de 2006 pela “Rede Plano Diretor”, do Ministério das Cidades:

O país está assistindo ao espetáculo do planejamento de seus municípios. Atendendo ao comando do Estatuto da Cidade, a Lei Federal 10.257, mais de 1500 municípios, de forma inédita na história brasileira, estão elaborando seus Planos Diretores de forma autônoma e participativa.

“Espetáculo do planejamento”… “[F]orma autônoma e participativa”… É forçoso reconhecer que há, no mínimo, um enorme exagero em tais palavras. Pergunte-se, primeiramente: como a participação popular é tratada no Estatuto? A maneira como ele se refere a ela é, quase sempre, ou indefinida — admitindo-se uma interpretação que privilegie, dependendo da Prefeitura, um processo deliberativo ou meramente consultivo —, ou, então, a tônica é claramente consultiva. [3] Poderia o Estatuto da Cidade ter amarrado melhor a previsão de participação popular no planejamento e na gestão urbanos, de modo a minimizar o risco de que uma pseudoparticipação seja implementada tão somente com o objetivo de se cumprir, formalmente, a Lei 10.257? Seguramente, isso teria sido possível — mesmo sem se perder de vista o fato de que, enquanto lei de abrangência nacional, o Estatuto não poderia entrar em minúcias excessivas, devendo reservar-se a maior parte do detalhamento para leis locais, em nome do bom senso e da salvaguarda do princípio da autonomia municipal. Seja lá como for, o que parece estar havendo, provavelmente na maior parte dos casos, é um arremedo de participação popular, e não algo minimamente consistente. [4]

Igualmente sob a égide do governo Lula foi instalado o Conselho Nacional das Cidades. Na realidade, ele havia sido já criado (sob o nome Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano) por meio da Medida Provisória 2.220, de 4 de setembro de 2001, mas foi regulamentado (e rebatizado) pelo Decreto n.° 5.031, de 2 de abril de 2004, já durante o primeiro mandato presidencial de Lula. Esse Conselho representa, aparentemente, um avanço, enquanto marco institucional e canal participativo formalizado, em nível nacional. Apesar disso, faz-se mister reconhecer que, em qualquer escala, conselhos podem ser tornados letra morta ou, até mesmo, manipulados (mediante o fornecimento de informação insuficiente ou enviesada, por exemplo)… Para começar, entra em cena, como obstáculo, o problema das atribuições e das competências. A despeito de o Art. 1.° do decreto que regulamentou o Conselho das Cidades estabelecer que o Conselho é “deliberativo e consultivo”, o Art. 2.°, que arrola as suas atribuições e competências, evidencia que estas são, fundamentalmente, de caráter consultivo, e não deliberativo (cf. DECRETO N.° 5.031). Não é à toa que, por diversas vezes, o Fórum Nacional de Reforma Urbana defendeu, ainda que timidamente, que o Conselho Nacional das Cidades deveria, através de projeto de lei, passar a ter um caráter deliberativo. Vã esperança?… O fato é que, tal como ele existe, o Conselho Nacional das Cidades é, sobretudo, uma instância de legitimação das políticas governamentais, e não tanto de autêntica participação popular.

O destino inglório do Ministério das Cidades e os limites do Conselho Nacional das Cidades são, ao mesmo tempo, a “ponta de um iceberg” e fatores de retroalimentação de uma capilaridade perversa: a de um processo de burocratização de diversos ativismos urbanos. A burocratização se estabelece quando uma organização de ativistas começa a funcionar como uma “repartição pública”, um apêndice do Estado, e, internamente, seus líderes se comportam como “funcionários” personalistas e “caciques”, afastando-se mais e mais da base social e comprometendo a força social do ativismo. É isso que, nos últimos anos, aconteceu de modo evidente: adensou-se todo um circuito de “ativistas-funcionários”, direta ou indiretamente vinculados a partidos governistas (e, às vezes, a ONGs também).

Rumo a uma “reinvenção” das lutas urbanas?

Alguns ativismos urbanos vêm tentando, em meio a esse cenário de desolação política (fragmentação e cooptação), reagir e se reorganizar. Um dos melhores exemplos são os sem-teto, que, pelo menos em São Paulo, vêm buscando trabalhar (sem muita sistematicidade e sem muito sucesso, infelizmente) por uma reinvenção da bandeira da “reforma urbana”, como emulação da “reforma agrária”.

A tentativa de resgate da bandeira da reforma urbana por uma parcela do movimento dos sem-teto é digna de nota. ”Resgate”, aliás, é, nesse caso, um termo realmente apropriado: depois de um importante momento de condensação em meados dos anos 1980, em que a perspectiva de influenciar a elaboração da nova Constituição do país por meio de uma “emenda popular” funcionou como um catalisador, o ideário da reforma urbana ficou, na década seguinte (e em grande parte até hoje), refém do “tecnocratismo de esquerda” daqueles que pareceram acreditar que leis e planos progressistas e bem feitos (a começar pelos planos diretores) poderiam compensar o refluxo dos movimentos sociais e, por si só, promover grandes transformações sócio-espaciais (ver, sobre esse problema, SOUZA, 2006). Se a ideologia do “tecnocratismo de esquerda” já havia capturado, nos anos 1990, muitas energias dedicadas, na década anterior, à mobilização popular pela reforma urbana, com o governo Lula esse fator ideológico e seus efeitos foram grandemente catalisados. Diante disso, é alvissareiro que a mais conhecida organização do movimento dos sem-teto, o MTST, cuja atuação se concentra em São Paulo, tenha como um de seus lemas principais, justamente, “na luta pela reforma urbana”, mesmo que a sua compreensão do que seja ou possa vir a ser essa reforma careça ainda de sofisticação e detalhamento.

Quanto ao hip-hop, apesar de dividido entre uma vertente basicamente “comercial” e uma crítica (ou “de protesto”), ele possui, no Brasil de hoje, ao menos parcialmente, ainda algumas nítidas características de um movimento social, ou, mais especificamente, político-cultural. Se a esmagadora maioria dos estudiosos e pesquisadores urbanos críticos brasileiros — aqui incluídos aqueles vinculados à luta pela reforma urbana — claramente privilegiou, até pouco tempo atrás, a exploração de classe em detrimento da consideração séria e aprofundada da “lógica” própria de outros tipos de opressão, é um mérito dos rappers como Racionais MCs e MV Bill tematizar e sugerir o debate da discriminação racial em meio a letras que, com uma contundência e uma plasticidade impressionantes, apresentam sem retoques o quotidiano dos pobres das grandes cidades brasileiras: segregação residencial, estigmatização sócio-espacial, violência policial etc. [5]

Outro movimento significativo é, justamente, aquele pelo passe livre. Algumas lutas importantes já haviam sido travadas no início ou em meados da década passada, como em Salvador e em Florianópolis (“Revolta da Catraca”). Com o tempo, a organização e o movimento irradiaram-se pelo país. A importância que tem, para o trabalhador pobre, que mora na periferia e depende de ônibus, trem e metrô, o problema de um transporte ineficiente, relativamente caro e de má qualidade, não pode ser subestimada. Trata-se de uma questão explosiva, vocacionada para ser o estopim de revoltas populares de grandes proporções. Não é à toa que, há muitos anos (na verdade, há décadas), entre as principais explosões de violência popular menos ou mais espontânea estão, justamente, as depredações de trens e ônibus, em decorrência da perda das últimas gotas de paciência diante de meios de transporte precários. [6]

Os movimentos sociais precisam se articular. E vários já vêm fazendo isso (por exemplo, a cooperação esporádica entre grupos de hip-hop e organizações de sem-teto em São Paulo, ou o fórum de organizações de movimentos sociais que, em 2009, foi criado no Rio de Janeiro, sob o sugestivo nome de (Re)Unindo Retalhos, mas que infelizmente teve vida curta); porém, trata-se de algo ainda incipiente. Talvez essa articulação seja, inclusive, uma condição para evitar que cada movimento, tomado em si mesmo e considerado de um ângulo político, se enfraqueça ou se deixe cooptar e venha, com isso, a perder o ferrão crítico. Na realidade, pode dizer-se que os movimentos precisam, em parte, até mesmo se reinventar.

Há, porém uma outra questão, relativa ao papel do governo supostamente de esquerda do Partido dos Trabalhadores, e que precisa ser colocada agora. É aquela relativa ao sentido (ou aos sentidos) das lutas atuais, e especialmente da recente onda de protesto — “sentido”, aqui, tanto como significado político / histórico quanto como rumo, direção, tendência.

A violência esteve longe de ser uma constante durante a onda de protestos de junho de 2013, a despeito de ânimos às vezes mais exaltados, o que é compreensível, e de danos colaterais mais ou menos previsíveis, sob a forma de saques e depredações. O bom humor e a criatividade prevaleceram, a despeito de alguns confrontos violentos. Porém, isso não é motivo para regozijo, muito menos para apenas lamentar “episódios de vandalismo”, como previsivelmente fizeram questão de ressaltar a mídia corporativa e os setores conservadores. Isso porque uma das fontes de violência, para além de demonstrações de força por parte de manifestantes e de confrontos com uma polícia brutal, foram choques entre diferentes setores da multidão de manifestantes. No Rio de Janeiro, para exemplificar, neonazistas espancaram militantes de esquerda em meio aos protestos do dia 20 de junho. Um caso extremo, certamente; mas, ao mesmo tempo, um caso extremo que é sintomático de um problema mais amplo: a onda de protestos foi rapidamente disputada por setores nacionalistas e conservadores, o que levou, em algumas situações, a um isolamento das forças de anticapitalistas e libertárias, a começar pelo MPL, que haviam iniciado a onda de protestos.

A presença crescente de palavras de ordem e interpretações conservadoras e  mesmo moralistas foi grandemente facilitada, justamente, porque os conservadores compraram a história do “governo de esquerda” do PT, convenientemente, pelo seu valor de face. A onda de protestos, que teve como estopim a luta contra o aumento das passagens de ônibus em várias cidades e foi iniciada por forças de esquerda, passou a ser parcialmente pautada por setores de classe média que levantavam bandeiras “bem-comportadas” como as críticas rasas à corrupção, aos políticos, aos partidos (de esquerda, principalmente…). Nesse ponto, cumpre voltar à comparação com a “Rebelião Argentina” para mostrar uma outra diferença: na Argentina, a despeito das estruturais ambiguidades e limitações da pequena burguesia (que rapidamente voltou a ser “a mesma classe média de sempre”, como me disse uma ativista da organização Libres del Sur, de Avellaneda [Grande Buenos Aires], em 2007), não havia um governo supostamente “de esquerda” a confundir os corações e as mentes — esse problema surgiu depois, com o neoperonismo de Nestor Kirchner. Também aqui, uma comparação com a “Primavera Árabe” parece, de novo, mais adequada: no Magreb e no Oriente Médio, a resistência contra ditaduras pareceu unir, temporariamente, setores muito diferentes, até mesmo opostos. E os que prevaleceram, no final, foram, lamentavelmente, os grupos e as orientações menos comprometidos com uma real transformação social…

Pausa para comparação: e as lutas no campo?

Desde a sua fundação, duas décadas e meia atrás, o MST, principal organização de trabalhadores rurais, à qual se vinculavam em fins da década passada cerca de 350 mil famílias, expandiu-se e, aparentemente, adensou as suas propostas (ou “linhas políticas”, para usar o jargão da entidade). Durante o V Congresso Nacional do MST, em 2007, do qual participaram 17.500 delegados de 24 estados brasileiros (além de 181 convidados internacionais, representando 21 organizações camponesas de mais de trinta países diferentes), foram reafirmados princípios e metas que, além daqueles vinculados diretamente à luta pela reforma agrária (tais como a luta contra a violência no campo e pela erradicação dos infames focos de trabalho escravo existentes no interior do país, o estabelecimento de um limite máximo do tamanho da propriedade da terra, a necessidade de desapropriação dos latifúndios, o controle da produção de agrocombustíveis pelos camponeses e trabalhadores rurais e a defesa das sementes e espécies nativas), englobam também questões mais gerais (tais como a crítica ao neoliberalismo e ao imperialismo, a necessidade de consideração das causas estruturais dos problemas que afetam o povo brasileiro, a recusa das privatizações do patrimônio público e o reforço dos laços de solidariedade e colaboração com organizações e movimentos de outros países) e, por fim, propostas e princípios indiretamente vinculados à reforma agrária (como todos aqueles relacionados com a proteção ambiental).

A resistência dos sem-terra e de suas organizações não foi fácil entre 1985 e 2002, em decorrência da violência desencadeada pelos grandes proprietários rurais (que em 1986, pouco após a criação do MST, fundaram uma entidade de âmbito nacional para representar os seus interesses, a União Democrática Ruralista [UDR]), violência essa não raro flanqueada, amparada ou encoberta pelo próprio aparelho de Estado — a começar pela desproporcional brutalidade policial contra trabalhadores rurais, tal como exemplificada pelo massacre de Eldorado dos Carajás (PA), ocorrido em 1996, em que a Polícia Militar abriu fogo contra 1.500 trabalhadores sem-terra que faziam uma marcha de protesto ao longo de uma rodovia, matando 19 deles. A partir de 2003, sob o governo de Luis Inácio Lula da Silva, a situação dos sem-terra e de suas organizações, a começar pelo MST, tornou-se mais complexa.

Por um lado, mesmo com a correlação de forças dentro do governo privilegiando o agronegócio em detrimento da pequena produção familiar, certos compromissos históricos e algumas pressões populares redundaram em uma postura ambígua do Governo Federal: ao mesmo tempo em que havia tensões constantes com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) — órgão governamental que analisa se as terras ocupadas por sem-teto são ou não produtivas (e, caso sejam declaradas como tal, está aplainado o terreno legal para a expedição de uma ordem judicial de reintegração de posse, com a subsequente retirada compulsória dos trabalhadores) —, tinham lugar, por meio do Ministério do Desenvolvimento Agrário, repasses de verbas que acabavam beneficiando entidades como o MST, que usa o dinheiro para financiar projetos e atividades. Por outro lado, como a polêmica que se instalou em 2009, envolvendo precisamente esses repasses de verbas, demonstrou, o Estado capitalista, sempre contraditório e complexo, tem-se mostrado, nos últimos anos, especialmente ambivalente em face dos sem-terra e de suas reivindicações e interesses. Como se já não bastasse a tensão interna ao próprio Governo Federal, representada pela existência de dois ministérios rivais e vinculados a interesses antagônicos (o Ministério da Agricultura, que tem sido porta-voz dos interesses do agronegócio e dos grandes proprietários, versus o Ministério do Desenvolvimento Agrário, mais sensível aos movimentos sociais), o Judiciário brasileiro tem, muitas vezes, tido uma postura bastante conservadora: ninguém menos que o ex-ministro-chefe do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, foi o principal responsável pelo questionamento da legalidade e da legitimidade dos repasses de verbas que beneficiavam entidades como o MST. (Ao que o MST, aliás, respondeu exigindo que se levassem em conta, então, imparcialmente, todos os tipos de apoios governamentais, a começar pelos subsídios e créditos oferecidos aos empresários do agronegócio, que muitas vezes produzem em condições ambiental e socialmente muito criticáveis…)

Pressionado por entidades e partidos conservadores e, cada vez mais nitidamente, também pela grande imprensa (basicamente controlada por alguns poucos grupos empresariais), que tem obtido um sucesso em jogar uma boa parte da opinião pública de classe média das cidades contra os trabalhadores sem terra, o próprio Governo Federal não tem podido impedir a crescente criminalização e judiciarização dos movimentos sociais e ativistas engajados na luta pela reforma agrária. Tem-se tornado comum processar e levar à barra dos tribunais líderes dos sem-terra, especialmente aqueles vinculados ao MST, como uma forma de intimidação; ao mesmo tempo, a grande imprensa tem, com suas coberturas geralmente parciais e tendenciosas, contribuído para pintar uma imagem dos ativistas sem-terra como “desordeiros” e “bandidos”. Um exemplo foi a entrada de integrantes do MST, em 2009, em uma fazenda do interior do estado de São Paulo, situada em terras da União e irregularmente ocupada (“grilada”) por uma empresa transnacional, a Cutrale; os ativistas do MST destruíram, em protesto, milhares de pés de laranja, pelo que foram intensamente atacados pela mídia — a qual, além de acrescentar exageros (como a falsa informação segundo a qual os ativistas teriam destruído dezenas de tratores e depredado a sede da fazenda), ignorou o fato de que a propriedade se achava em situação irregular. Diante de mais esse caso, a postura dos representantes do Governo Federal foi, para variar, geralmente ambígua: defenderam o direito dos sem-terra de fazerem as suas reivindicações, mas rechaçaram os seus “excessos”. Enquanto isso, sem levar em conta adequadamente a irregularidade da posse daquelas terras pela Cutrale, o Judiciário limitou-se a ordenar a pronta desocupação da propriedade pelos sem-terra…

A despeito disso tudo, os sem-terra, em geral, e o MST, em particular, têm conseguido sobreviver politicamente, evitando, ao mesmo tempo, derrotas explícitas mais decisivas.  Mas os desafios têm sido, como se pode facilmente constatar, muito grandes, mesmo (ou melhor: principalmente!) com o Partido dos Trabalhadores no Palácio do Planalto. E a questão é que, por mais que isso ainda seja um tema delicado no âmbito da esquerda brasileira, o MST apresenta várias deficiências e contradições. Ou seja: não seria correto, ao menos de um ponto de vista comprometido com princípios e valores como coerência anticapitalista, horizontalidade e autogestão (ou, mais amplamente, autonomia, em sentido forte [7]), fechar os olhos para os diversos problemas internos do MST, como se todas as suas dificuldades fossem exógenas.

Além de aspectos como o estilo centralizador e hierárquico (muito diferente, por exemplo, do Movimento Passe Livre), há também outros gargalos. Críticos corajosos têm chamado a atenção para o fato de que, sob o governo do PT, o MST foi, aos poucos, abrindo mão de sua independência, aproximando-se do governo e  — pasmem!  —  até mesmo de interesses empresariais, apesar da luta declarada contra o agronegócio (PASSA PALAVRA, 2013). Para aqueles que, “pela esquerda”, criticam construtivamente e analisam o MST há muito tempo, isso não chega a surpreender, como se pode ver por PASSA PALAVRA (2011 e 2012). Nada disso, evidentemente, deslegitima a luta dos sem-terra, que não pode ser reduzida às diretrizes de uma organização, por mais importante que ela seja (ou tenha sido). Mas, à luz do estilo radicalmente democrático de uma organização como o MPL, cabe reavaliar o papel histórico de organizações que trazem o “velho” dentro do (aparentemente) “novo”.

Notas

[1] Na verdade, resumindo muito a argumentação acerca da participação popular no planejamento e na gestão urbanos desenvolvida pelo autor em diversas ocasiões (SOUZA, 2002 e, com mais profundidade, SOUZA, 2006), esquemas participativos realmente ousados e consistentes merecem ser valorizados porque, assim como um horizonte político-filosófico radical atua como uma “vacina” contra o otimismo excessivo ou ingênuo diante de soluções e medidas no interior do status quo (binômio capitalismo + “democracia” representativa), uma preocupação “pragmática” com os ganhos coletivos possíveis mesmo nos marcos de uma sociedade heterônoma, por outro lado, serve de “vacina” contra um “essencialismo” que encara a mudança sócio-espacial radical como um evento dramático, e não como um processo complexo, o que, entre outros inconvenientes, pode conduzir ao imobilismo e a sérias dificuldades para a disseminação eficaz de conteúdos críticos junto à população. Tentar elucidar e saber valorizar não somente a estrutura, mas também a conjuntura; não somente a estratégia, mas também a tática; não somente o longo e o longuíssimo prazo, mas também o curto e o médio prazo–  obter êxito nisso, enfim, vai além de uma valorização tática de ganhos de curto e médio prazo (redistributivos, institucionais e legislativos), mas permite, ainda, valorizar igualmente as possibilidades de ganhos político-pedagógicos dentro de uma perspectiva de acumulação (complexa, nunca linear) de longo prazo, ao mesmo tempo em que se está constantemente vigilante para tentar evitar a cooptação. Por conseguinte, reconhecer em certas instâncias participativas algo potencialmente positivo (geralmente, diga-se de passagem, conquistado e negociado, e não meramente “doado” de cima, ao menos nos casos verdadeiramente interessantes) nada tem a ver, necessariamente, com um “reformismo” estreito, um “gradualismo” avesso a rupturas e um “incrementalismo” irrealista, mas, antes, com lucidez.

[2] Ver, sobre essa multiplicação, e a partir de diferentes enfoques: AVRITZER, 2002 e 2003; TATAGIBA, 2002; RIBEIRO e GRAZIA, 2003; SOUZA, 2000 e 2006.

[3] Passagens de caráter indefinido ou ambíguo são: Art. 2.°, inciso II; Art. 4.°, inciso III, alínea f; Art. 33, inciso VII; Art. 40, § 4, inciso I; Art. 43, inciso I; Art. 44; Art. 45. Com um caráter nitidamente consultivo é aquilo que se acha previsto no Art. 2.°, inciso XIII, e no Art. 43, incisos II e III. Nitidamente deliberativo, somente o Art. 4.°, inciso V (que cita o referendo popular e o plebiscito, mecanismos que, de toda forma, já haviam encontrado acolhida na própria Constituição Federal), e o Art. 43, inciso IV (que cita a iniciativa popular de projeto de lei e de planos, coisa que, igualmente, já se achava prevista na Constituição). Note-se, ademais, que há uma forte redundância entre vários dos artigos que mencionam a participação no Estatuto. Mais sentido faria uma menção em um número menor de artigos  –  sem prejuízo da extensão temática!  –  mas, em contrapartida, mais minuciosa e melhor refletida.

[4] Ver, sobre isso, por exemplo, SOUZA (2006).

[5] Consulte-se, sobre o hip-hop: HERSCHMANN (2000), ROCHA et al. (2001) e RODRIGUES (2009).

[6] Ver, sobre os protestos de outras épocas, TELLES e BAVA, 1981; MOISÉS e MARTINEZ-ALIER, 1985; NUNES, 1985.

[7] Vale a pena reproduzir este longo trecho de Castoriadis: “Autonomia: autos-nomos, (dar-se) a si mesmo as suas leis. (…) Em que sentido pode um indivíduo ser autônomo? (…) A autonomia do indivíduo consiste em estabelecer uma outra relação entre a instância reflexiva e as outras instâncias psíquicas, assim como também entre o seu presente e a história por meio da qual ele se fez tal como ele é, permitindo-lhe escapar à servidão da repetição, refletir sobre si mesmo, sobre as razões de seus pensamentos e sobre os motivos de seus atos, guiado pela intenção do verdadeiro e pela elucidação de seu desejo. (…) Posso dizer que estabeleço eu mesmo a minha lei  –  uma vez que vivo necessariamente sob a lei da sociedade? Sim, em um caso: se eu puder dizer, reflexiva e lucidamente, que essa é também a minha lei. Para que eu possa dizer isso, não é necessário que a aprove: é suficiente que eu tenha a possibilidade efetiva de participar ativamente da formação e do funcionamento da lei. A possibilidade de participar: se eu aceito a ideia de autonomia como tal (não somente porque ela é ‘boa para mim’), o que, evidentemente, nenhuma ‘demonstração’ pode me obrigar a fazer, nem tampouco pode me obrigar a colocar de acordo as minhas palavras e os meus atos, a pluralidade de indivíduos pertencendo à sociedade leva imediatamente à democracia, como possibilidade efetiva de igual participação de todos, tanto nas atividades instituintes como no poder explícito (…).” (CASTORIADIS, 1990:131-4)

Referências bibliográficas

AVRITZER, Leonardo (2002): Modelos de deliberação democrática: uma análise do orçamento participativo no Brasil. In: SANTOS, B. de S. (org.): Democratizar a democracia. Os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
———- (2003): Apresentação. In: RIBEIRO, Ana Clara Torres e GRAZIA, Grazia de (2003): Experiências de orçamento participativo no Brasil (1997 a 2000). Petrópolis: Vozes [em co-edição com o Fórum Nacional de Participação Popular].
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HERSCHMANN, Micael (2000): O funk e o hip-hop invadem a cena. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.
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Ilustrações: obras de Jean Hélion.

Os leitores portugueses que não percebam certos termos usados no Brasil
e os leitores brasileiros que não entendam outros termos usados em Portugal
encontrarão aqui um glossário de gíria e de expressões idiomáticas.

Leia a 3ª parte deste artigo.

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