Perante a multiplicação das medidas de austeridade, há que dar o exemplo e castigar a ousadia de quem recusa a inevitabilidade da precariedade, do desemprego e da miséria. Por Observatório do Controlo e Repressão
Teve início no dia 22 de maio deste ano, em Lisboa, o julgamento de Miguel Carmo, sob a acusação de crime de resistência e coação sobre funcionário do Estado por, supostamente, haver arremessado uma cadeira sobre uma linha de agentes da Polícia de Segurança Pública (PSP), no contexto da manifestação da greve geral de 22 de março de 2012. Apesar deste dia ter sido marcado por confrontos entre manifestantes e polícias, não existem outros acusados além do arguido. O objetivo deste artigo não reside na descrição dos acontecimentos – de resto já amplamente analisados aqui –, mas na análise do discurso que sustenta a acusação judicial, assente numa série de categorizações relativas a um conjunto de figuras presentes naquele dia, da polícia ao manifestante. Referimo-nos, em particular, ao despacho editado pelo Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP), onde se encontra resumido o inquérito que presidiu tanto à acusação contra Miguel Carmo como ao arquivamento de vários outros casos.
O grupo do Saldanha
A obscura conspiração denunciada neste auto inicia-se logo nas primeiras páginas, com a descrição de uma manifestação convocada para a Praça do Saldanha [em Lisboa] sob o mote «Greve Geral, Ocupar Tudo». Esta, “não comunicada às autoridades” (p. 4), terá ficado marcada pelo comportamento de manifestantes que “Logo nos primeiros momentos do desfile […] assumiram uma atitude de confronto e provocação, nomeadamente contra os elementos da PSP que integravam o dispositivo de segurança, invertendo o sentido de marcha repentinamente numa tentativa de desorganizarem e desconcentrarem os agentes da PSP que os enquadravam e acompanhavam no desfile, mas também, mais à frente, com agressões que lhes desferiram, com pontapés, com empurrões, com puxões e ovos” (pg. 5). O auto chega mesmo a afirmar, mais à frente, a existência de uma tentativa de “puxar dois elementos policiais que acompanhava o desfile da manifestação para o interior do grupo de manifestantes, desconhecendo-se com que objetivo” (p. 11).
Se a inversão do sentido da manifestação poderá constituir uma tática que visa a criação de um efeito surpresa, a imputação da mesma a uma atitude de confronto e provocação das autoridades policiais apenas poderá ser realizada através da descontextualização e da desvirtuação. Estes “actos de provocação e vandalismo” originaram, como reza o auto, “inúmeras queixas e reclamações, nomeadamente por parte dos responsáveis destas instituições” (pg. 5). Na verdade, as inúmeras queixas limitam-se às produzidas por 2 agentes policiais (por danos no fardamento ) e 4 representantes de entidades privadas (bancos e lojas) por custos de limpeza das montras . Nenhum trabalhador, em greve ou não, apresentou queixa.
A grande parte do documento dedica-se contudo à interpretação dos acontecimentos vividos no Chiado [em Lisboa], já após a manifestação que partiu do Saldanha se ter juntado à que fora convocada pela Plataforma 15 de Outubro e se iniciou no Rossio. A detenção de um indivíduo, por alegadamente ter deflagrado um petardo (estivador de profissão, seria mais tarde ilibado de todas as acusações), despoletou a solidariedade dos manifestantes. O auto refere que a detenção terá sido “muito difícil, porque o referido indivíduo resistiu violentamente à ação policial e tentou evitar a sua detenção”, (p. 7), um argumento que parece servir para justificar a violência com que foi realizada. A partir daí “os manifestantes que se encontravam nas proximidades entraram de imediato em confronto com os agentes da PSP que procediam à extração do indivíduo do local. Para tentarem obstar àquela detenção, esses manifestantes atingiram os agentes detentores com empurrões, socos e pontapés” (p. 7). Mais uma vez, a iniciativa do confronto é imputada aos manifestantes, “obrigando estes agentes ao uso dos seus bastões policiais para os repelirem” (p. 8). Terá sido neste contexto, segundo o DIAP, que o arguido arremessou uma cadeira. Analisando as imagens recolhidas por diversos meios de comunicação social (veja aqui e aqui), torna-se evidente, ainda antes da investida do Corpo de Intervenção (CI), que foi formada uma linha policial para repelir à bastonada os manifestantes que se aproximavam, provocando ferimentos evidentes.
A responsabilização dos manifestantes pela violência ocorrida, com menções aos “vários copos, garrafas de vidro, caixas de guardanapos, chávenas, pires de café, pedras de calçada, bem como várias cadeiras daquelas esplanadas” (p.8) supostamente lançadas sobre os agentes (sem causar quaisquer feridos), evolui rapidamente para o campo da ficção barata: “Dos elementos recolhidos nos autos resulta que toda a atuação dos manifestantes foi claramente organizada para provocar uma reação por parte da PSP (o que resulta bem claro, por exemplo, do uso do som rítmico, de chamamento e de incitamento, dado pelos tambores que alguns deles transportavam e tocavam com mais intensidade nos momentos fulcrais de confronto)” (p .10) . O seu objetivo, conforme sentenciado, seria provocar “uma intervenção de força por parte da PSP” (p. 10), intervenção essa que, de facto, aconteceu, tendo sido responsável pelo ferimento de dezenas de pessoas.
Os manifestantes face à polícia
A produção de um tipo de manifestante violento é inseparável, a nosso ver, da tentativa de justificação da repressão verificada, apresentada como uma mera operação de preservação da ordem pública. A análise da atuação do CI, com base nas participações apresentadas por várias das pessoas feridas, não só reproduz esta tese, como a reforça.
As denúncias realizadas por dois manifestantes, após se declarar a inexistência de “elementos suficientes para esclarecer as circunstâncias em que foi produzida” (p. 25) a intervenção do CI, chegam mesmo a ser avaliadas com suspeição e desconfiança:
“Apesar das testemunhas ouvidas se encontrarem todas na zona da intervenção do Corpo de Intervenção, contrariamente ao que aconteceu com estes queixosos, aquelas testemunhas não sofreram qualquer agressão porque se afastaram para as laterais quando se aperceberam que o Corpo de Intervenção iria intervir. Surgem-nos assim naturais dúvidas sobre as circunstâncias que motivaram a permanência destes queixosos no local e sobre as exatas circunstâncias que terão envolvido a intervenção dos elementos do CI sobre si” (p. 28, 29).
Tais dúvidas, porém, parecem conduzir, nas próprias palavras, a uma única certeza:
“A única certeza que temos quanto ao sucedido no local é de que naquele dia e local houve vários agentes da PSP atingidos/agredidos com objectos e que estes agentes tentavam concretizar uma detenção que alguns manifestantes, por sua vez, tentavam impedir. A intervenção do Corpo de Intervenção só surgiu quando aqueles agentes da PSP se viram impotentes para dominar o ímpeto da violência dos manifestantes, estando assim inteiramente justificada” (p. 29).
Relativamente à participação realizada por José Goulão, repórter fotográfico ferido durante a intervenção do CI, a identificação do agente responsável não foi suficiente para justificar a acusação, uma vez que os ferimentos se localizavam na parte de trás da cabeça. “Nestas circunstâncias pode ter ocorrido algum empurrão, por parte de algum elemento do CI ou até por parte de outros manifestantes, que conduziu ao desequilíbrio e queda do denunciante” (p. 37). A alegada existência de indícios insuficientes do cariz da atuação policial, com direito a 3 páginas de reflexão sobre a natureza jurídica deste conceito, não será, contudo, considerada na análise do comportamento do arguido.
O arguido
Numa primeira análise, tanto o arguido como os atos alegadamente por si realizados são considerados inseparáveis de uma dinâmica de grupo. Embora o seu comportamento se tenha destacado, segundo o auto, pela maior investida contra a linha policial – “O arguido arremessou a referida cadeira com toda a força contra os agentes que formavam a referida linha policial” (p. 49) – o mesmo terá decorrido “em conjugação de esforços e intentos com cerca de 30 a 50 indivíduos cujas identidades não foi possível apurar” (p. 49).
Como tal, e dada a sua articulação com dezenas de indivíduos, podemos pressupor que, ou o arremesso da cadeira foi de tal ordem imponente que conduziu ao destaque do arguido entre a multidão, ou a sua identificação ocorre por outros motivos. Ao analisar o seguinte auto de notícia produzido por um dos agentes, aqui publicado pelo próprio arguido, constatamos que a sua identificação, não tendo sido realizada no local (isto apesar de ter arremessado “com toda a força” uma cadeira), acabou por se basear na memória visual do agente “com a ajuda de elementos audiovisuais amplamente difundidos na Internet, e também com informações recolhidas junto do Núcleo de Informações desta Polícia”. Através destas, acrescenta, conseguiu “perceber que se trata de um indivíduo que é presença habitual neste tipo de manifestações/concentrações, pautando sempre a sua conduta de forma agressiva para com as Forças de Autoridade”.
O auto de acusação menciona, além dos testemunhos das várias pessoas envolvidas nos acontecimentos, o recurso a “diversos registos individuais captados sobre aqueles acontecimentos”, bem como a fotogramas recolhidos nas “edições de alguns jornais que saíram com notícias sobre o que se sucedeu naquela manifestação” (p. 15). O que o auto não refere é que, aparentemente, os depoimentos das testemunhas de acusação foram determinados por outro tipo de registos e informações, emanados de um organismo que ninguém sabe muito bem o que é e o que faz.
Um artigo do jornal Público (leia aqui), editado em finais de novembro de 2012, classifica o Núcleo de Informações da PSP como uma “unidade de natureza secreta integrada na Unidade Especial de Polícia”. Apresentando um cariz “muito restrito, existe há pouco mais de uma década e não aparece na estrutura orgânica da PSP que é divulgada publicamente por o seu trabalho de recolha de informações (sobretudo som e imagem) colidir, de certa forma, com o do SIS [Serviço de Informações de Segurança]”. É importante referir que foi esta a unidade que tentou aceder, à margem de qualquer mandato judicial ou parecer da Comissão Nacional de Proteção de Dados, às imagens da manifestação da greve geral do dia 14 de novembro de 2012, marcada por uma violenta carga policial e pela detenção ilegal de vários manifestantes.
Em suma
Ao tecer considerações sobre o caso de José Goulão, o repórter fotográfico ferido na manifestação de 22 de Março, o auto de acusação refere que as dúvidas em relação ao seu depoimento decorrem da especificidade dos seus ferimentos, avançando-se uma interpretação distinta – “o impacto da sua queda ao chão” – considerada “mais compatível com as regras de experiência” (p. 34). Não deixa de ser irónico que este tipo de atuação do CI seja encarado como uma espécie de reportório, conforme a retórica apresentada, com as suas regras de experiência.
A estratégia aqui descrita parece, no entanto, ir para lá do uso indiscriminado do bastão. Dois anos após aqueles acontecimentos, e perante o desnorte das forças policiais e o consequente ferimento de manifestantes, jornalistas e transeuntes, o Ministério Público decide concentrar o ónus da responsabilidade de tudo o que aconteceu naquele dia numa só pessoa. É difícil dissociar as inúmeras menções ao cariz violento do seu comportamento, e do grupo a que alegadamente pertence, das informações providenciadas pelo Núcleo de Informações da PSP, uma unidade que atua à margem de qualquer regulação institucional. Ambas parecem integrar uma agenda que une várias estruturas do Estado e que, nesse sentido, pretende responder ao atual contexto político, económico e social. Perante a multiplicação das medidas de austeridade, há que dar o exemplo e castigar a ousadia de quem recusa a inevitabilidade da precariedade, do desemprego e da miséria. Apesar da mira da justiça se dirigir a uma só pessoa, este julgamento tem como réus todas as pessoas que estiveram no Chiado naquele dia.
Os leitores portugueses que não percebam certos termos usados no Brasil
e os leitores brasileiros que não entendam outros termos usados em Portugal
encontrarão aqui um glossário de gíria e de expressões idiomáticas.