Por João Valente Aguiar
Leia aqui a 1ª parte do artigo
Nesta segunda parte proponho-me discutir a integração económica europeia no seu plano transnacional propriamente dito. Sem querer esgotar o tema, parece-me que, se a esquerda não for capaz de reflectir sobre o processo de integração europeia que tem prosseguido, o nacionalismo será cada vez mais o seu substrato político. Se esta tendência não se inverter a maioria da esquerda anti qualquer coisa actualmente existente arrisca-se a se tornar cada vez mais num obstáculo para futuras lutas autónomas dos trabalhadores. A supremacia do nível transnacional sobre o nível nacional ou outro não advém de uma decorrência ideológica ou política, mas é uma consequência estrutural e objectiva da evolução, da complexificação e da modernização do capitalismo. Ignorar a centralidade deste nível só contribuirá para que o actual estado de ausência de lutas autónomas dos trabalhadores se prolongue.
1. Austeridade, fiscalidade e a mais-valia relativa e absoluta
Num discurso a 7 de Abril deste ano, Jens Weidemann, presidente do Bundesbank, problematiza o que considera ser a coexistência de problemas ao nível nacional – por exemplo a ausência de reformas que ajudassem ao aumento da inovação, criatividade e produtividade e o descalabro das contas públicas – e de «falhas na arquitectura institucional da união monetária»: ausência de um credor de última instância, ausência de integração fiscal e orçamental no plano europeu, dificuldades na articulação das políticas públicas. Considerando que, do ponto de vista da sua classe social, as reformas ao nível nacional têm tido um progresso considerável, Weidemann enfatiza que ainda existe «um longo caminho a percorrer». Recorrendo a analogias, o presidente do Bundesbank acrescenta ainda que «tal como numa maratona, a segunda metade do percurso é sempre mais dura do que a primeira», pelo que «a arquitectura da UEM [União Económica e Monetária] provavelmente coloca o desafio mais fundamental».
Nesse sentido, para Weidemann, o rumo imediato passa por dois tópicos:
a) exactamente da mesma forma como ocorreu com a banca, mas sem as contrapartidas que a dívida pública providenciou ao sector financeiro, fazer com que os Estados nacionais limpem os seus balanços; portanto, que regulem o nível de endividamento futuro e sejam capazes de manter um equilíbrio das contas públicas;
b) «quebrar o nexo entre o banco e o soberano em ambas as direcções», pelo que a «união bancária é um primeiro passo importante».
Sobre o tópico do equilíbrio das contas públicas diga-se que esta não é, no quadro do capitalismo, uma má medida em si mesma. Dentro do sistema, as medidas tanto podem apontar para cortes pronunciados nos serviços públicos como para cortes nos financiamentos directos a investimentos privados (PPPs) ou nas forças militares e repressivas do Estado. Neste aspecto, a orientação da sustentabilidade das contas públicas deriva sempre do resultado das lutas sociais. Se estas implicarem a conquista de reivindicações, o sistema da mais-valia relativa avança e incrementa os índices de produtividade. Se isso acontecer, então o Estado colecta impostos facilmente a partir do dinamismo da actividade económica, os níveis de corrupção e da economia subterrânea baixam e os cortes nos serviços públicos tornam-se injustificados. Quando tal não acontece, e com maior incidência no contexto de economias débeis e com baixa produtividade, o Estado colecta impostos de maneira cega, com impactos na própria actividade económica, bem como envereda por soluções próximas da mais-valia absoluta: corte no financiamento da educação e da saúde. Em suma, para os capitalistas, nos países intervencionados pela troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional), tem sido levado a cabo um processo pontuado por soluções próximas da mais-valia absoluta. Isto deve-se fundamentalmente ao baixo nível produtivo da generalidade dessas economias. Não por acaso, foi no único país que detinha elevados índices de produtividade do trabalho, a Irlanda, que conseguiu manter-se um nível muito elevado no que toca ao PIB per capita.
Por conseguinte, mesmo no cenário mais básico das lutas reivindicativas, a generalidade da esquerda portuguesa tem sido incapaz de mobilizar os trabalhadores contra o fecho de escolas, o despedimento de dezenas de milhares de funcionários públicos com contratos a prazo nas áreas da educação e da saúde ou o racionamento de medicamentos dirigidos para doenças graves. Numa perspectiva simétrica, a esquerda continua a demonstrar uma devoção inexplicável pelas instituições militares e policiais, quando qualquer política democrática de esquerda deveria defender o corte massivo do financiamento do Estado para aquelas instituições. Os países nórdicos têm uma carga fiscal mais baixa do que a portuguesa, mantêm serviços públicos de elevada qualidade, os mecanismos da mais-valia relativa funcionam e a presença da polícia e do exército nas verbas orçamentais é irrisória.
Assim, como pode a esquerda portuguesa aspirar a ser eleita ou respeitada pelos trabalhadores se, mesmo dentro do quadro institucional vigente, ela não é capaz de apresentar soluções concretas que não sejam apenas rejeições disto e daquilo? Mas se este é o cenário dentro do quadro institucional vigente, quando se discutem pretensas propostas de ruptura diga-se que em boa verdade as propostas ainda são mais dantescas. Defender a dissolução da União Económica e Monetária e substituir a integração europeia por economias nacionais autárcicas, como faz o Partido Comunista português (PCP), só tem cabimento no plano da ilusão ideológica. Mais ainda quando se defende um caminho político que, não rompendo com o capitalismo, se apresenta como totalmente desajustado. A esquerda nacionalista santifica o Estado nacional precisamente no momento em que, no plano económico, a integração europeia avança.
2. Os Bancos Centrais como espaço de regulação: a finança como a consagração da gestão plena
Tenho escrito múltiplas vezes que o chamado sector financeiro e bancário é menos um espaço de especulação e mais um ponto nodal de regulação e de expansão dos mecanismos da acumulação. A maioria dos economistas da esquerda estabelece uma equivalência entre o dinheiro e o valor proveniente da esfera da produção que teria ficado condensado em formas monetárias. Ora, o valor económico decorre das práticas de produção e o dinheiro é uma entidade simbólica que permite, por um lado, a contabilização (que não é o mesmo que valor quantificado) e, por outro, a integração das várias esferas e agentes da economia.
Ora, se o dinheiro fosse simplesmente mais-valia transformada em unidade monetária, isso significaria duas coisas.
Primeiro, esse procedimento abre portas à incompreensão da esquerda relativamente ao sistema financeiro, o que leva a esquerda do capitalismo financeiro a ver o dinheiro como uma entidade criada do nada e que estaria a sugar a riqueza da economia produtiva. Ora, se as formas monetárias e financeiras fossem mais-valia (seja na forma clássica, seja enquanto capital fictício), então seria incompreensível que um sistema assente na produção de mais-valia preferisse torrar o equivalente a seis ou sete vezes o PIB mundial em transacções financeiras, em vez de o investir na dita economia produtiva. Daí que para essa esquerda o problema esteja no sistema financeiro, que é visto como um sorvedouro e não como um integrador sistémico do capitalismo. Os capitalistas teriam de ser estúpidos ou cegamente equivocados para trocarem a exploração pela especulação. Curiosamente, quando essa esquerda perora contra a especulação, o que defende é a legitimidade da exploração e o seu reforço contra o que considera contra natura: a especulação. A inserção histórica da esquerda na ampliação dos mecanismos da mais-valia relativa ou da mais-valia absoluta encontra justificação ideológica na sua crítica aos especuladores.
Em segundo lugar, e na sequência do que expus, se fosse verdade que o dinheiro correspondesse tout court à mais-valia produzida, então para que é que os tais activos financeiros derivativos, que correspondem a seis ou sete vezes o PIB mundial, teriam de voltar à economia produtiva? Se isso fosse linear e se isso acontecesse, então a sobreprodução que já existe nos países capitalistas em crise multiplicar-se-ia exponencialmente e agravar-se-ia a crise económica de forma colossal. Na óptica destas teses, e levando o seu raciocínio à sua consequência lógica, defender o retorno dessa suposta mais-valia à economia produtiva seria agravar a sobreprodução, elevar o investimento ocioso a níveis impensáveis e, por conseguinte, baixar a famosa taxa de lucro que, coitada, já de si estaria moribunda.
Enfim, de quantos paradoxos se tece o irracionalismo económico da esquerda. . .
De facto, como se procurará evidenciar com palavras dos próprios capitalistas, o sistema financeiro surge como um espaço simultaneamente de rentabilização económica e de regulação sistémica dos riscos inerentes a uma economia que assenta na expansão. De acordo com Andreas Dombret, membro da Direcção do Bundesbank, a integração/regulação financeira a nível europeu teria de «ser consistente entre jurisdições» e «a regulação precisa de ser consistente entre sectores»; «em termos práticos isto significa que temos de lidar com o sistema bancário-sombra».
É elucidativo ver um alto quadro da tecnocracia europeia mencionar o papel nocivo do denominado sistema bancário-sombra. Mas se alguma esquerda vê este fenómeno a partir de conspirações de sociedades secretas que controlariam o mundo, os capitalistas com maiores responsabilidades de gestão supranacional perspectivam este fenómeno em termos económicos. Para começar, em termos de definição, segundo um técnico do Banco de Pagamentos Internacionaus (Bank for International Settlements, BIS), Hervé Hannoun, os bancos de investimento, bem como os bancos comerciais, conduzem muitos dos seus negócios no seio do sistema bancário-sombra. Por conseguinte, o recurso a veículos estruturados de investimento (SIV) e a outros instrumentos financeiros não-colaterizados aparentam ser transversais à generalidade do sistema. Nesse sentido, a crítica fundamental que sectores capitalistas têm feito a esta banca-sombra sublinha o problema que a multiplicação desregulada de instrumentos financeiros traz para o conjunto da massa monetária mobilizada.
Dito de uma maneira mais simples, o problema não está na criação de dinheiro a partir do nada, como alguns consideram, mas na acentuação de factores centrífugos e particularistas de cada banco. Este aspecto, que tem tido expressão no axioma de que a falência de um banco levaria a um crash de todo o sistema financeiro, está, pela primeira vez, a ser debatido profundamente pela alta tecnocracia. A união bancária europeia reflecte precisamente esse propósito: «os bancos individuais devem ser capazes de abrir falência como qualquer outra empresa» «sem desestabilizarem o sistema inteiro». Nas palavras de Mark Carney, presidente do Banco de Inglaterra, existe uma necessidade de «acabar com» a tese dos bancos «Too-Big-To-Fail [Demasiado Grandes Para Falir]». Isto implica a quebra do nexo entre o soberano e a banca e, adicionalmente, o que Dombret chama de «mecanismos de resolução» que operem numa «dimensão global», o que requer «uma grande dose de cooperação internacional».
Mais uma vez, é no reforço da integração europeia que residirão os processos de regulação financeira e não nos Estados nacionais. Curioso que a esquerda que se indigna contra a financeirização seja a mesma esquerda que acha que se pode controlar os movimentos de capitais a partir de um único país economicamente relevante. Nesta matéria, sem ser obviamente de esquerda, a tecnocracia europeia consegue estar à esquerda da esquerda nacionalista, factor demonstrativo do recuo que a esquerda europeia sofreu nas últimas três décadas.
Ainda na relação entre sistema financeiro, gestão e regulação sistémica, o presidente do Banco de Inglaterra chama a atenção para o papel dos bancos centrais para «reconstruir o capital social necessário»: a sociabilidade gregária que cola as práticas sociais num vasto conjunto coerente, num modo de produção, sem que a disrupção se sobreponha. Dito de outra maneira, Mark Carney identifica a necessidade de as instituições capitalistas supranacionais incrementarem a regulação entre a acção privada e individual nos mercados e o interesse colectivo da classe dominante. Nesse sentido, este alto gestor considera existir uma «tensão entre o capitalismo do mercado livre puro, que reforça o primado do indivíduo à custa do sistema, e o capital social que requer dos indivíduos um sentido vasto de responsabilidade para com o sistema», pelo que «um sentido do eu [self] deve ser acompanhado por um sentido do sistémico».
Estabelecendo uma ponte com o que se escreveu anteriormente a propósito do sistema bancário-sombra, trata-se aqui de um objectivo socioeconómico de reforçar o controlo das tendências centrífugas e de as integrar. O capitalismo é tanto mais bem-sucedido quanto mais consegue utilizar a gestão sistémica sem que esta coarcte a expansão dos negócios privados das empresas. Só uma visão dicotómica e mecânica pode conceber os princípios da gestão como contrários ao avanço da iniciativa empresarial privada. Os tecnocratas soviéticos fundiram os princípios da gestão com a centralização estatal. Pelo contrário, para os tecnocratas europeus a gestão é um processo de supervisão e de estabelecimento de equilíbrios.
Os banqueiros centrais raciocinam de modo a fornecer condições de crédito ao investimento e, portanto, relançar os mecanismos da exploração. Ou seja, diferentemente da tese alucinada de uma finança que delapidaria os bens da economia real, eles fundamentam a sua acção financeira em função do que perspectivam para o plano da expansão da mais-valia. Ao contrário, os economistas da esquerda nacionalista raciocinam em circuito fechado e atribuem aos banqueiros um papel de Shylock que não têm. Acima de tudo, os banqueiros e os empresários da área financeira, como Warren Buffett ou George Soros, são gestores plenos. Basta pensar que, se existe uma selecção e uma escolha dos financiamentos a investimentos baseada na análise entre risco e lucro esperado, isso significa que os empréstimos das entidades financeiras sofrem algum tipo de regulação. Se a especulação eleva o risco e as possibilidades de instabilidade económica, a possibilidade de conceder crédito ao conjunto da economia deriva da actuação do sistema financeiro. Com efeito, se o cérebro coordena o pulsar do próprio coração, oscilando o batimento cardíaco com a actividade física requisitada ao organismo, o volume de crédito bombeado para as empresas deriva de uma regulação das instituições bancárias e financeiras, de acordo com as circunstâncias colocadas. A taquicardia no sistema financeiro antes da última crise económica não apaga o papel central do sistema bancário como uma rede de gestão e de regulação. Como se tem demonstrado neste artigo, não é por acaso que as principais discussões relativas à regulação global da economia têm ocorrido em torno da integração sistémica e supranacional da banca.
Em suma, a expansão do capitalismo implica que prevaleça o eixo da recuperação e da integração sobre o da disrupção centrífuga. O carácter mais espantoso deste modo de produção é precisamente essa capacidade de integrar quase tudo e ainda conseguir criar a ilusão de falsas oposições políticas entre si e relativamente ao próprio capitalismo. E quanto mais tempo passa, mais o capitalismo se torna complexo e mais implica que uma sua crítica tenha de ser global, tanto no plano social e estrutural como no plano geográfico. Recuar para o Estado nacional não é sair do capitalismo. É quando muito o suspiro pelo regresso mitificado a uma etapa embrionária e ainda mais desigual do capital. Sem uma réplica transnacional de um projecto emancipatório dos trabalhadores oposto ao capital transnacionalizado, a humanidade continuará destinada a viver sob uma qualquer personificação social do capitalismo.
3. As escadas de Penrose da esquerda dos gestores da mais-valia absoluta
No dia 20 de Junho o jornal Público noticiou uma proposta de reestruturação da dívida que a Comissão Europeia teria requisitado a um reputado economista. Não entrando pelos méritos e pelos problemas que esta proposta pode comportar, veja-se antes de que modo isto se articula com o assunto deste artigo. Repare-se que esta proposta é apenas mais um dos pontos demonstrativos de que a tecnocracia europeia está a cumprir algumas das bandeiras centrais da esquerda em torno da reestruturação da dívida e de combate ao que comummente se chama de “excessos da financeirização” (SIVs, excesso de derivativos, etc.). A grande diferença é que a tecnocracia está a fazê-lo com a porta semi-cerrada, de modo gradual e aplicando essas propostas num âmbito transnacional (como a própria proposta do economista Charles Wyplosz acima retrata).
Ora, do ponto de vista político, isto tem duas consequências.
Por um lado, confirma-se que esta é uma esquerda dos gestores, já que algumas das suas propostas estão a ser concretizadas pelos capitalistas. A questão é que esta esquerda que se diz anti-neoliberal não é chamada a governar porque é muito mais nacionalista do que os tecnocratas. Quer dizer, estes têm levado a cabo as medidas de austeridade, apresentaram o Tratado Orçamental e criaram a União Bancária sempre numa perspectiva de simultâneo controlo orçamental e de elevação da integração europeia; entretanto, a esquerda acha que se pode resolver o excesso de endividamento dos Estados no plano nacional, quando muito numa base inter-governamental. A esquerda mostra, assim, que comunga de um mesmo quadro referencial de actuação, o que demonstra a sua presença na classe dos gestores. Todavia, essa esquerda corresponde a uma fracção mais incompetente e marginal dos gestores, na medida em que coloca os seus interesses ideológicos – o nacionalismo e a soberania nacional – acima dos interesses económicos – a necessidade de articulação e regulação financeira numa base supranacional. Se essa supremacia dos interesses ideológicos é a sua fraqueza no plano da actuação económica e justifica que a tecnocracia não a chame para participar na governação, de outro lado essa é a alavanca por onde a esquerda nacionalista pode cavar fundo ao defender propostas que, em última instância e em caso de um improvável cataclismo político, poderiam chegar a uma soma de capitalismos nacionais, isolados e estruturados na mais-valia absoluta.
Por outro lado, se a maioria da esquerda europeia se constitui, no actual contexto, como uma fracção marginal da classe dos gestores, dedicada a exercer unicamente o papel político e ideológico de fragmentar nacionalmente os trabalhadores, então isso significa que uma crítica da classe dominante terá de abarcar todos os seus sectores: das instituições de regulação supranacional às empresas transnacionais, do Estado central aos partidos, sindicatos e movimentos dessa esquerda.
Nas duas partes deste artigo procurei que a análise percorresse os nós que vão articulando, aproximando e distanciando algumas das instituições que compõem o polígono complexo, mas plástico e dinâmico, da classe dos gestores na Europa. Os diferentes níveis políticos, económicos e territoriais em que esta actua são o principal sustentáculo para a sua reprodução. É esse efeito de caleidoscópio que lhe dá a possibilidade de, num mesmo movimento, agregar diferentes, e até opostas, sensibilidades estratégicas quanto ao rumo a dar ao próximo ciclo económico e actuar por dentro de todas as esferas da sociedade, inclusive dentro de sectores potencialmente contestatários da classe trabalhadora.
Porém, esta actuação em todas as esferas da sociedade não obedece a um comando único e absoluto, ao contrário do que preconizam as teorias da conspiração sobre os directórios secretos da Maçonaria, de Bilderberg ou outros. Muito pelo contrário, o capitalismo liberal é assumidamente instável e literalmente vive da existência de um metabolismo social incessante e, ao contrário do que pensavam os gestores stalinianos, até certo ponto incontrolável centralmente. Dito de uma maneira abstracta, a complexificação da sociedade – isto é, a ampliação territorial e sectorial de novas oportunidades de negócio conduzidas por uns poucos biliões de anónimos, o desdobramento de actividades profissionais, científicas ou culturais num sem-número de micro-ocorrências pessoais que, por sua vez, providenciam um retorno de percepções, de acções e inclusive de novas mercadorias – é a força motriz para a evolução do capitalismo. Dito de uma maneira mais simples, o capitalismo constrói-se de baixo para cima, conquanto os de baixo não determinem o andamento e a configuração do edifício e as suas dinâmicas espontâneas na fábrica quotidiana estejam enquadradas em instituições controladas pelos gestores. Arrisco-me a dizer que, no capitalismo, quanto mais a vida quotidiana dos indivíduos é fenomenológica, mais as instituições estruturais (Estado, empresas, etc.) ganham coesão, sem nenhum destes pólos amordaçar o outro.
Relacionando este tópico com a esquerda dos gestores da mais-valia absoluta, o capitalismo não busca destruir as contestações sociais e políticas, até porque isso é impossível. Para os tecnocratas as lutas sociais têm duas funções. Como procurarei demonstrar noutro artigo a publicar brevemente (“Os BRICS e a esquerda da mais-valia relativa”), nos casos em que impera a mais-valia relativa as lutas sociais são parte fundamental do processo, desde que não extravasem um determinado quadro pré-definido e enquanto a cedência de reivindicações conseguir provocar efeitos subsequentes no aumento da produtividade do trabalho. Mas nos casos em que impera a mais-valia absoluta ou em que a crise económica está presente, as lutas sociais têm um único interesse para os tecnocratas: um efeito político de libertação da raiva e do desespero social perante as medidas de austeridade.
Nestes casos, as esquerdas nacionalistas, ecologistas e/ou multiculturalistas europeias desempenham um papel relevante na transformação da justa revolta social de parte dos trabalhadores num beco sem saída. Os ganhos para a tecnocracia acabam por ser consideráveis. Os trabalhadores que se revoltam em torno das propostas desta esquerda da mais-valia absoluta vêem as suas reivindicações laborais ou sociais concretas transformadas em apelos para a salvação da pátria ameaçada pela ingerência externa. Ou seja, a política reivindicativa de sectores da classe trabalhadora transforma-se numa bandeira geoestratégica, contribuindo para a fragmentação nacional dos trabalhadores. Ora, se a adesão de contingentes de trabalhadores à esquerda da mais-valia absoluta pode fortalecê-la, a verdade é que, enquanto os tecnocratas forem o centro hegemónico no seio da classe dos gestores, a função daquela esquerda continua reduzida a um papel de embotamento de lutas potenciais. Como sucede com quase todas as dinâmicas sociais estruturais e macro, nada disto é consciente, propositado ou maquiavelicamente manipulado. Só quem se limite a analisar os fenómenos sociais em termos político-partidários é que pode entrever voluntarismo onde há concretização espontânea de processos supra-individuais.
E aqui chega-se ao que me parece ser o grau zero para uma potencial reflexão anticapitalista: sem um pensamento racional que se alicerce a partir da interacção entre estruturas complexas e multidirecionais de relações supra-individuais e práticas colectivas aí inseridas, estaremos condenados a chamar anticapitalismo a formas institucionais capitalistas ainda mais autoritárias.
As fotografias que ilustram o artigo são de Valerio Vicenzo. As gravuras são de István Orosz.