Por Ricardo Noronha
Leia aqui a primeira parte desse texto.
Outro país
Não é segredo para ninguém que a formação social portuguesa se destaca no contexto europeu tanto pelos índices de pobreza quanto pelas profundas desigualdades que a atravessam. Não se trata apenas, note-se, da permanência de um padrão de subdesenvolvimento herdado da longa noite fascista ou de um conjunto de problemas que caberia resolver no espaço de uma geração: a desigualdade e a pobreza estão de tal forma enraizadas e difusas ao nível das relações sociais e das mentalidades que constituem elementos estruturantes da vida cultural e política do país, para além de fazerem mover a grande engrenagem daquilo a que chamamos a economia. É esse elemento estrutural que explica a existência de um Partido Comunista (PCP) de características únicas no contexto europeu, ocupando em conjunto com o Bloco de Esquerda um espaço de dimensões sem paralelo à esquerda da social-democracia. Há naturalmente outros factores a ter em conta, de natureza propriamente política, mas o dado fundamental é a coexistência, no interior de um mesmo país, de mundos sociais e culturais ostensivamente distintos, organizados em torno de valores e atitudes e representações que a custo se compatibilizam no quadro jurídico-institucional.
Sem negar as polarizações clássicas entre litoral e interior, norte e sul, campo e cidade, importa sublinhar que todas elas são atravessadas uma linha divisória de natureza mais propriamente cultural e política relativamente à forma de conceber as relações de poder, exploração e dominação. Onde uns as naturalizam e cristalizam num estado de coisas tido por inamovível, no interior do qual se podem negociar pequenas alterações e melhorias, mas nenhum tipo de transformação profunda, outros há que questionam e combatem essas relações em busca de uma vida outra, situada para lá da secular miséria e do ancestral atavismo. Como muitas outras em distintas partes do planeta, a formação social portuguesa encontra-se dividida em duas partes, uma das quais deseja a conservação do que existe e a outra exactamente o contrário.
Dá-se o caso de essa divisão se ter tornado aqui particularmente aguda há quarenta anos e de estarmos ainda em condições de identificar com assinalável precisão o dia e a hora em que os pratos da balança se inclinaram decididamente para um dos lados. O regime cuja consolidação teve início a 25 de Novembro de 1975 resultou de um enfrentamento entre dois campos antagónicos e representa a vitória de um sobre o outro. Sem correr o risco de ser original, importa sublinhar que esta espécie de democracia de que somos hoje desconsolados espectadores se ergueu sobre o cadáver das múltiplas formas de poder operário e popular, de participação e acção colectiva de milhares de pessoas, de uma democracia, em suma, que se exercia mais do que se consumia. Não se tratou de uma vitória obtida num qualquer campo de batalha e erguida sobre uma pilha de cadáveres, como a que ocorreu em Espanha no epílogo da guerra civil, mas da aceitação tácita de um pacto laboriosamente negociado, que deu início a um longo ciclo de progressivo recuo caracterizado pela “defesa das conquistas de Abril”.
Uma herança pesada
O Bloco de Esquerda não surgiu do nada e, sendo fastidioso recapitular exaustivamente a história das organizações que tomaram a iniciativa de o fundar, não parece despropositado sustentar que elas eram herdeiras de um entendimento das coisas profundamente influenciado pela experiência colectiva vivida durante o processo revolucionário e pelas múltiplas possibilidades que ela abrigou. E ainda que não faltassem aí problemas de vária ordem (que nos convidam a rejeitar a imagem de um passado idílico), é certo que havia nas suas fileiras uma percepção mais ou menos clara de que se sofrera uma derrota de grandes proporções e que pouco havia a defender, que as instituições e leis vigentes pertenciam ao campo oposto e deviam ser desafiadas/subvertidas sempre que possível e oportuno, que havia muitas formas de ver o mundo e outras histórias para contar, contra um presente feito de mesquinhez e novo-riquismo. O seu espaço encontrava-se “à esquerda do possível” (para parafrasear um livro editado à época [1]) e nele se tacteava em busca de formas de passar à ofensiva. No caso do Partido Socialista Revolucionário (PSR), a década de 90 caracterizara-se por um esforço para apoiar e ampliar todos os esforços de questionamento das ideias dominantes, numa época assinalada por um acelerado crescimento económico e um feroz consenso privatizador, a par de uma euforia feita de obras públicas e europeísmo acrítico. Não apenas o jornal Combate, onde inúmeros temas e ideias encontravam um espaço de todo inexistente noutras publicações, mas também os primeiros esforços de activismo LGBT na figura do Grupo de Trabalho Homossexual, o intransigente combate à extrema-direita levado a cabo pelo SOS Racismo, as campanhas contra o serviço militar obrigatório e pela legalização das drogas ou a proposta cultural da cooperativa Abril em Maio, para além de uma rede de militantes no movimento estudantil que contribuiu para oferecer uma inestimável postura de desafio e contracultura juvenil à luta contra as propinas e as provas globais. A fusão de tudo isso com o que restava da implantação local e sindical da União Democrática Popular (UDP) tinha tudo para dar forma a uma nova organização política interessante, de resto fortalecida pela capacidade da pequena Política XXI para se mover na esfera mediática convencional e dessa forma ampliar a ressonância de cada tomada de posição e iniciativa do novo “partido-movimento”. O Bloco de Esquerda apresentava-se, no momento da sua fundação, como um novo fôlego para levar a cabo os combates de sempre e é de certa forma a isso que faz referência a resolução da Mesa Nacional de 1 de Junho, quando fala da necessidade de “retomar o espírito fundacional do Bloco, agregador e intransigente, que vá além dos limites partidários e envolva os ativistas e os movimentos sociais”. Feita a genealogia possível da oscilação que levou o Bloco de Esquerda noutra direcção, talvez seja oportuno identificar alguns elementos menos evidentes desse processo, seguindo o fio que liga os textos oficiais, ou as afirmações dos dirigentes, aos esforços de intervenção nos movimentos sociais e às reflexões desenvolvidas no âmbito do combate de ideias.
Movimentos cada vez mais estáticos
O facto de ser um partido com uma cultura organizativa diferente do PCP confere ao Bloco de Esquerda uma heterogeneidade substancialmente mais acentuada no que diz respeito ao tipo de intervenção que os seus militantes levam a cabo no âmbito dos movimentos sociais, mas é possível identificar alguns traços comuns à maioria e, desde logo, uma evolução semelhante ao longo da última década e meia. Algumas áreas de intervenção nos movimentos sociais permaneceram relativamente inalteradas, como é o caso do SOS Racismo, onde a intransigência no combate ao racismo não parece ter cedido um milímetro e não houve pejo em denunciar um conjunto de afirmações racistas produzidas por um dirigente do Bloco de Esquerda em Elvas contra a comunidade cigana da localidade [2]. Mas em muitas outras áreas de intervenção, quase todas, sobressai uma oscilação dos posicionamentos dos militantes e activistas do Bloco de Esquerda em direcção a uma esfera cada vez mais institucional, em que uma ideia de respeitabilidade fundamentalmente conformista parece guiar todos os gestos e escolhas, impondo-se quase inconscientemente como a forma natural de fazer as coisas. Nos campos das questões de género e de orientação sexual, por exemplo, é notório que o discurso oficial, tanto do Bloco de Esquerda propriamente dito como de organizações como a União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), se furta cada vez mais a enfrentar o patriarcado e a heteronormatividade que dominam o espaço público, oscilando de um paradigma em que predominava a subversão/questionamento do que era tido por “normal” em direcção a um outro, em que predomina o desejo de inclusão/reconhecimento no interior dessa categoria. O corolário de semelhante oscilação tem sido a progressiva conversão de movimentos sociais e associações numa actividade de grupo de pressão junto das instituições e de prestação de serviços junto dos grupos/sectores cujos interesses se pretende defender e representar.
No que diz respeito à sua intervenção em questões laborais a evolução assemelha-se. Quando o Bloco de Esquerda foi fundado destacou-se muitas vezes o facto de uma lista dinamizada por militantes seus ter ganho a maioria nas eleições para a Comissão de Trabalhadores (CT) da Wolkswagen-Autoeuropa, a maior fábrica em Portugal. Desde então essa maioria manteve-se, entre altos e baixos, mas os seus resultados mais evidentes são os elogios que recebe periodicamente por parte do patronato, que contrapõe a sua flexibilidade negocial à rigidez da Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP) e a apresenta como um novo paradigma desejável de gestão das relações laborais. António Chora, o coordenador da CT (e fugazmente deputado do Bloco de Esquerda em 2006), pauta o seu discurso público por um vocabulário que a custo se distingue do Departamento de Recursos Humanos da empresa, afirmando tantas vezes quantas as necessárias que já salvou vários postos de trabalho por via negocial e que a CT procura activamente competir com outras fábricas do grupo (leia-se com outros trabalhadores) para que novos modelos sejam produzidos em Palmela [3]. O facto de todas as decisões fundamentais da CT no âmbito dos acordos de empresa serem submetidas a votação por parte dos trabalhadores é evidentemente um elemento positivo e se Chora foi repetidamente reeleito ao longo de 15 anos certamente que estes se encontrarão satisfeitos com o seu desempenho, mas importa assinalar que as escolhas ocorrem aqui dentro de um quadro definido pela administração da empresa e a partir de uma posição permanentemente defensiva, moldada pelos imperativos da cadeia produtiva global em que esta está inserida. Ao contrário das Comissões de Trabalhadores formadas durante o PREC num contexto de ofensiva por parte dos/as operários/as em greve [4], a CT da Autoeuropa exprime acima de tudo o desígnio de manter a paz social e assegurar uma gestão das relações laborais dentro da empresa sem conflitos nem atritos.
No domínio da precariedade, os militantes do Bloco de Esquerda tomaram a iniciativa de organizar desde 2007 (em conjunto com mais pessoas, naturalmente) o Mayday (em Lisboa e no Porto), tendo constituído uma Associação de Combate à Precariedade a partir do grupo Precários Inflexíveis [5]. Diversas iniciativas têm sido meritórias e em geral só se deve saudar o empenho manifesto na intervenção junto de uma fracção da classe trabalhadora que é cada vez maior, mas que conhece dificuldades evidentes ao nível da sua organização, em virtude da profunda assimetria de poder relativamente à respectiva entidade patronal. Há, contudo, no discurso da associação — apesar da enfática repetição de exortações iniciadas com uma enigmática primeira pessoa do plural e terminadas com um ponto de exclamação — uma tendência recorrente para conceber e descrever os precários como vítimas impotentes da exploração patronal, cuja indignação deve ser canalizada para quem de direito (leia-se, o parlamento, o governo e os tribunais do trabalho), expressa por porta-vozes e organizada na forma de petições ou abaixo-assinados [6]. O que mais se encontra no seu site são denúncias de situações de ilegalidade promovidas pelo patronato com o beneplácito do Estado, mas poucas são as perspectivas avançadas relativamente à forma de as combater. Acresce a isso uma certa obsessão com a visibilidade mediática, como se a luta contra a precariedade fosse sobretudo concebida à luz da preocupação de demonstrar simbolicamente uma influência crescente junto dos movimentos sociais e, ainda que as suas relações com a CGTP se tenham pautado recentemente por um registo de colaboração, é difícil não ficar com impressão de que tudo isto foi concebido como uma plataforma para a criação de um sindicalismo rejuvenescido, capaz de conquistar espaço ao PCP nos locais de trabalho [7]. Ou seja, a par de tudo o que fazem de positivo, os Precários Inflexíveis parecem obedecer a uma lógica de competição entre forças partidárias por áreas de influência no seio dos movimentos sociais, com tudo o que isso implica do ponto de vista da sua perda de autonomia e de capacidade de unir os esforços de quem combate a precariedade e o desemprego. É de resto difícil avaliar o horizonte que concebem para esse combate, uma vez que a atitude persistentemente ordeira e atinada que tem pautado a sua actividade leva a pensar que a “solução” para “resolver” a precariedade será um reforço da representação parlamentar dos partidos políticos à esquerda do PS, capaz de levar a cabo alterações legislativas que ilegalizem os abusos patronais.
As pessoas não compreendem?
A coerência que percorre a intervenção dos militantes do Bloco de Esquerda nestas diversas áreas é a mesma imagem difusa dos explorados e dos oprimidos enquanto vítimas, incapazes de tomar nas próprias mãos o seu destino e de serem sujeitos das transformações que desejam, como se apenas na forma do contrato e da lei, por via da delegação da sua vontade na figura de representantes e dirigentes, fosse possível mudar o que quer que seja (sempre pouco, sempre pequeno), incontornavelmente no quadro institucional vigente, como se a história se tivesse cristalizado no círculo fechado do parlamentarismo, com a sua alternância viciada e a sua lógica de mercado eleitoral. A tentação de fazer de cada momento de mobilização e conflito uma encenação, cujo formato e discurso se vê concebido em função do imperativo da visibilidade mediática, sacrifica tudo o que há de vivo e imprevisível num movimento a uma relação que só conhece personagens-tipo (“o activista”, “a enfermeira precária”, “a mãe lésbica”, “o imigrante de 2ª geração”, etc.) e espectadores, um enredo já escrito e a mediação de um qualquer chefe de redacção ou editor no momento de decidir o respectivo enquadramento noticioso.
A partir do momento em que esses pressupostos são incorporados enquanto “a realidade” e transformados em evidências — o material mesmo de que é feita a Política e o Activismo com maiúsculas — não parece difícil prever que o círculo de pessoas interessado em semelhantes práticas permanece inevitavelmente estreito e circunscrito aos militantes, quando não aos funcionários e aspirantes a deputados. Não se trata aqui de fazer um julgamento moral ou uma acusação, apenas de constatar que a concepção da luta social como uma variável dependente do jogo institucional tende a esvaziar o espaço da primeira a favor da segunda, porque remete a iniciativa para fora do campo de acção das pessoas que se mobilizam, retirando-lhes simultaneamente o poder de transformar as suas vidas e o entusiasmo que resulta dessa possibilidade. Sublinhe-se aliás que, apesar do culto da “eficácia” e dos “resultados concretos” que não poucas vezes se pode observar entre os apologistas desta forma de intervenção e organização, é sobretudo uma rotina tarefeira e burocrática que costuma impor-se num terreno deixado aberto pela desmobilização. A integração dos movimentos sociais na dinâmica das instituições é a melhor maneira de os condenar à irrelevância. O mais profundo indício disso mesmo é a ascensão, apogeu e queda da plataforma “Que se lixe a troika”, sobre a qual já muita tinta correu [8]. Depois dos seus integrantes terem negado qualquer forma de ingerência partidária e repetidamente afirmado a sua autonomia, eis que João Semedo, coordenador do Bloco de Esquerda, aproveitou uma entrevista para o inserir (juntamente com o igualmente “apartidário” Congresso das Alternativas) no âmbito da actividade política do seu partido:
Quando olho para a nossa actividade política, fomos uma força importantíssima no lançamento do Que Se Lixe a Troika e na sua capacidade de pôr milhões de pessoas na rua. Estivemos de alma e coração no Congresso das Alternativas. Respondemos ao apelo do Mário Soares. Um partido que está num momento de fragilidade não é capaz de fazer isto [9].
Continua a observar-se, no discurso de diversos dirigentes do Bloco de Esquerda e, ao que tudo indica, na elaboração dos cálculos estratégicos num cenário de progressiva erosão eleitoral, o pressuposto de que “as pessoas não entendem” isto e aquilo. Era já essa a justificação de Luís Fazenda para a apresentação de uma candidatura autárquica do Bloco de Esquerda em Lisboa: as pessoas não entenderiam que o Bloco fosse oposição ao Partido Socialista (PS) a nível nacional estando com ele coligado na Câmara Municipal de Lisboa (CML). E, mais recentemente, Ana Drago sustentava que “as pessoas não conseguiram compreender” como é depois de o Bloco ter “tentado um envolvimento com sectores críticos do PS, corporizado na candidatura de Manuel Alegre” tivesse depois feito “um corte com o PS, apresentando uma moção de censura e não permitindo qualquer possibilidade de gerir o agravamento dos juros da dívida pública” [10]. Ainda antes, Francisco Louçã lamentava ter faltado à reunião com a Troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional) em Maio de 2011, porque essa “atitude não foi compreendida por uma grande parte do eleitorado” [11]. O leitor mais benevolente para com estes dirigentes do Bloco de Esquerda poderá argumentar que se trata de uma figura discursiva, mas não será esta repetição insistente de que os outros “não compreendem” um traço constitutivo do pensamento político de quem assim se exprime? [12]
Retomando o ponto de partida deste texto, o elemento determinante para esta configuração reside no posicionamento face à divisão fundamental que percorre a formação social portuguesa. Uma postura que reivindique a herança de todos os movimentos de luta contra a secular ordem de exploração e violência que caracterizou o desenvolvimento capitalista nesta parte do mundo implica assumir uma posição minoritária e partir daí para transformar as relações sociais, a política e o mundo, à luz de uma cultura emancipatória igualitária e de um entendimento radical do significado da palavra “democracia”. Não se trata de glorificar uma identidade minoritária e muito menos de diabolizar uma reflexão estratégica empenhada em conseguir, em cada momento, a mais ampla base social de apoio para um determinado combate. Simplesmente, certos combates são pura e simplesmente impossíveis, ou estão persistentemente condenados à derrota, se não forem acompanhados de uma disputa no domínio das ideias, capaz de alimentar horizontes mais amplos do que aqueles que a actual configuração do espaço público e do debate político autorizam. A luta pela hegemonia, se norteada apenas pela preocupação de não descolar daquilo que é maioritário em cada momento, fica inevitavelmente reduzida ao que é autorizado pelo senso comum, conferindo a derradeira palavra a quem dispõe de mais instrumentos para o moldar.
Desse ponto de vista, têm sido feitos alguns esforços para questionar evidências, disputar o senso comum e construir narrativas e imaginários alternativos, por parte de militantes do Bloco de Esquerda. Os escritos de Francisco Louçã enquanto economista são bastante mais interessantes e valiosos do que as suas intervenções enquanto tribuno parlamentar e dirigente partidário, independentemente dos seus méritos enquanto orador [13]. Outros militantes têm-se esforçado em participar nesse combate pelas ideias que moldam o senso comum [14]. A revista Vírus tem publicado alguns artigos e dossiers preciosos para disputar as representações dominantes de alguns dos temas e problemas fundamentais do nosso tempo [15]. Apesar do tom um pouco áspero com que se dirigem uns aos outros, diversos militantes do Bloco de Esquerda vêm debatendo em blogs, jornais e outras plataformas as respostas possíveis à política de austeridade e, ainda que esse debate esteja reduzido à óptica da soberania e da governamentalidade, não deixa de representar um esforço meritório para rasgar as diversas cortinas de fumo que legitimam a lógica da inevitabilidade. A campanha eleitoral do Bloco de Esquerda para a Câmara Municipal do Porto teve, independentemente de quão severa possa ser a avaliação, a notória preocupação de elaborar uma ideia própria de cidade e de vida possível dentro dela. Não é difícil imaginar que haja muitas mais pessoas e dinâmicas interessantes que escapam a esta curta enunciação, mas a distinção essencial a introduzir neste debate reside na forma de encarar a inteligência alheia. Enquanto o paternalismo não tiver dado lugar ao pressuposto de que cada uma delas abriga uma sabedoria incalculável e repleta de possibilidades, será difícil que o Bloco de Esquerda deixe de fazer parte do problema. É que esse menosprezo pela capacidade que cada um tem de ser o seu próprio comité central é apenas uma outra forma de tratar a desigualdade e a pobreza como a ordem natural das coisas, elaborando sobre elas um discurso piedoso que deixa tudo na mesma. E para isso, já há esquerda que sobre.
Notas
[1] Francisco Louçã, João Martins Pereira e João Paulo Cotrim, 1993, À esquerda do possível, Lisboa: Edições Colibri.
[2] Aqui
[3] Exemplos não faltam: aqui ; aqui ; aqui ; aqui.
[4] Para um trabalho dedicado a este tema, ver Suárez, Miguel Angél Pérez, Contra a Exploração Capitalista – Comissões de Trabalhadores e Luta Operária na Revolução Portuguesa (1974-1975).
[5] O seu manifesto pode ser consultado aqui. Sobre o Mayday em Lisboa, ver aqui. Para uma comparação com o Mayday original, organizado pela primeira vez em Milão em 2001, ver aqui.
[6] Ver, por exemplo, a proposta de uma “lei contra a precariedade”, aqui.
[7] Aqui, o momento em que os militantes do Bloco no movimento reúnem com os deputados do Bloco no Parlamento.
[8] Trabalhos jornalísticos acerca da dimensão do controlo partidário no seu seio estão disponíveis aqui e (com menor rigor e fiabilidade) aqui.
[9] Aqui.
[10] Aqui.
[11] Aqui.
[12] No mesmo registo, vejam-se as considerações ligeiramente incompreensíveis de uma candidata independente do Bloco de Esquerda ao Parlamento Europeu, aqui.
[13] Para uma análise ao livro colectivo redigido por vários dirigentes do Bloco de Esquerda e intitulado Os donos de Portugal¸ bem como ao documentário com o mesmo nome realizado por Jorge Costa, ver a recensão que escrevi na revista Imprópria – Política e Pensamento Crítico, Unipop, nº2, pp.112-125.
[14] Ver, nomeadamente, José Soeiro, Miguel Cardina e Nuno Serra (Coord.), 2013, Não acredite em tudo o que pensa. Mitos do senso comum na era da austeridade, Lisboa, Tinta da China, pp.254.
[15] Aqui.
Subscrevo inteiramente e divulgo, como com a primeira parte, um dos contributos de análise mais úteis que tenho lido sobre o BE vindos do seu exterior.
Parabéns, Ricardo.