Ser jovem hoje tem mais a ver com saber o que está sendo viralizado neste instante do que com explorar com genuína curiosidade. Por um Jovem
I
Estão aprendendo no berço mesmo a viver num mundo onde mais importante do que imitar um ser humano adulto é imitar uma máquina. Mas não qualquer tipo de máquina. A máquina que permite comunicar-se. Isso pudemos observar muito bem quando os mais velhos passaram a recorrer aos mais jovens para aprendizado e conhecimento técnico. A máquina de comunicação revolucionou o sistema financeiro com seus cabos de telégrafo cruzando os oceanos, mas as crianças de então não tinham seu próprio telégrafo pessoal para dominar o seu uso em seus momentos de ócio infantil.
A expansão abismal de liberdade que a comunicação permite por meio do fácil acesso aos conteúdos e da interação traz consigo não apenas a evidente ansiedade que assola as nossas gerações, mas também o risco da letargia, da inanição a causa de um conformismo pessimista. Os mais jovens deveriam se aproveitar desta relação íntima de berçário para potencializar a tecnologia em favor de sua liberação, mas isso não deve ser visto como uma tarefa para especialistas. Urge que as pessoas deixem de olhar seus computadores como meras janelas para a internet e para seus relacionamentos afetivos, que percebam que existem muitos potencias outros aí, que um computador pode muito mais do que gerenciar os pequenos dramas pessoais. Compartilhar esse conhecimento, facilitá-lo e entendê-lo como uma ferramenta de autonomia pessoal e coletiva para valorizar e democratizar esse poder. Isso tampouco é algo restrito a faixas etárias menores, é algo que diz respeito à cultura geral.
Correm apenas o risco que é incitado todos os dias pela publicidade, privada e estatal, de beijarem o reflexo no lago. A juventude, orgulhosa de si, atravessa a membrana aquosa para dentro do lago gelado: transforma-se em organização ou decide que permanecerá para sempre juventude, sem planos para acabar.
II
Sujeitos excluídos da participação real nos assuntos importantes e categorizados como algo que ainda não. A juventude aparece no momento em que o corte é produzido: alguns acima e outros abaixo. A idade passa a ser um critério naturalista para hierarquizar opiniões, ideias e participação. Na mediação entre o momento de aprendizagem pura e o da aprendizagem pela participação direta surge um tumor que vai crescendo e expandindo esse limbo de “ainda não”, adultos adolescentes. Os indivíduos de idades mais avançadas desta maneira conseguem isolar uma enorme porção dos indivíduos mais novos das decisões relevantes nos órgãos deliberativos e organizativos, e por meio das lideranças juvenis arrebanham corpos e mentes para um trabalho indigno. Essa é uma organização que expressa em termos de prática social e política o momento do eterno presente, a qualidade na qual um indivíduo se sente mais livre por representar um papel que lhe é bem indicado: sentir-se jovem, sentir-se de uma forma especificamente jovem, conceber-se como um indivíduo em formação e valorizar não o que há de externo na formação, aquilo que forma, mas sim a configuração indeterminada interior. Abandona-se a totalidade, o contexto no qual e pelo qual o indivíduo é formado e passa-se ao culto do indeterminado. Mas da juventude somos sempre excretados, vamos deixando de ser aos poucos, sem perceber, sem decisão e sem elaboração: o tempo cronológico ignora nosso percurso como seres de sentido. No fundo é disso que trata o elogio da juventude, o niilismo de um tempo feito para passar, elevar à categoria mais alta a indeterminação de uma ideia que representa o desfazer-se automotriz, o desfazer-se não por uma causa externa ou por contradições próprias. A areia que escorre entre os dedos, por baixo dela surge enfim a ruína de nossa carne. Elevar isso a uma categoria política é um equívoco infeliz dos tempos.
III
Não há muito o que dizer. Os que querem seguir jovens para sempre são aqueles que terão dinheiro para comprar a sua juventude, até que a própria vida trata de excretá-los. Pessoas em geral tediosas, que mais parecem personagens da letra de uma música popular, personalidades limitadas a papeis de sitcoms norteamericanos. Procurando a juventude pela via que passe longe da organização, buscarão comunicar-se o melhor possível, acompanhar os códigos novos, os trending topics do momento, a consequente atualização das novas versões da vida a cada aniversário, onde os acontecimentos (happenings) não inauguram um novo tempo, marcam o começo e o fim de uma campanha publicitária, a nova versão de um produto tecnológico. Ser jovem hoje tem mais a ver com saber o que está sendo viralizado neste instante do que com explorar com genuína curiosidade.
IV
A arte jovem encarna de forma extraordinária a precariedade intelectual dessa mesma juventude. De maneira análoga à arte negra, à arte feminina, à arte marginal, a arte jovem surge como interesse essencialmente por ser assumida como uma arte ruim, uma arte pior. O aspecto etário do rebaixamento crítico trabalha de duas maneiras: no campo especulativo é o “comprar barato para vender caro”, no campo estético é o elogio à mediocridade como contexto geral de trabalho e produção econômica.
Tomemos o popular serviço de compra de filmes e séries em streaming “Netflix”. Através dele a indústria do entretenimento é capaz de vender aos usuários o próprio mecanismo de análise de tendências do consumidor. Com os dados sendo atualizados continuamente, a indústria diminui seus riscos de investimento e pode assim alocar seus capitais de acordo com as taxas de lucro esperadas em cada categoria. No momento em que produzir filmes de lutas entre robôs gigantes se torna muito caro e dá pouco retorno em relação ao total investido, pode escolher-se um gênero “barato”, com pequeno público e um repertório de obras produzidas com baixo orçamento. Para dinamizar esta nova fonte de renda, filmes feitos para um público minoritário começam a ter participações de atores famosos e cenas com efeitos especiais, expandindo o universo de consumidores a partir dos dados colhidos, os quais indicam quais variáveis devem ser alteradas para atrair o público desejado (quais atores, quais tipos de roteiro, que tipo de temas, quais músicas de trilha-sonora, etc). Assim são produzidas as tendências estéticas de um mercado de entretenimento de massas. Obras deixam de ser produzidas como resposta a uma tendência estética. Elas passam a ser produzidas para serem a própria pesquisa sobre consumo de um departamento de marketing desta indústria. Estamos na transição da arte-mercadoria para a arte-pesquisa-de-consumo. Desta forma o capital economiza o trabalho de terminar objetos e passa a ser dinamizado como puro fluxo de informação. Os filmes deixam de ter uma forma autônoma autossuficiente e passam a se tornar sequências (coisa que nas últimas décadas era tido quase como ridícula, como “Rambo 7”), por sua vez as sequências temáticas de filmes dão lugar às séries de alta produção.
A arte jovem é barata pois é virgem de crítica, aparece no mercado ainda sem um preço. Ao manter um investimento baixo e generalizado, a especulação consegue controlar diversos âmbitos e campos de produções e, eventualmente, “colher” a valorização de um ou outro artista cuja valorização no mercado cobrirá os gastos totais dos investimentos e somará lucros, seja em valor monetário seja em capital simbólico — branding, patrocínios diretos, entre demais mecanismos que prendem o artista ao capital que nele investe (investimento feito em dinheiro ou cubos, tanto faz).
Por meio do investimento precário o jovem aprende a dedicar-se a uma arte “de guerrilha”, tendo recorrido quase sempre a autofinanciamentos, dependendo dos resultados comerciais de sua produção, ou então envolvendo-se com ideologias que estimam a baixa qualidade técnica e material de sua produção. O sentido meritocrático que até estes últimos ganham, aqueles que acusam os museus de conservadores por nunca exporem quadros “como os seus”, rouba dos artistas jovens o tempo do projeto e o tempo do pensamento. A obra se torna uma exibição de virtuosismo. Não o virtuosismo dos mestres da tradição, mas o virtuosismo contido na publicização da obra: o encontro entre o marketing de massas e a cultura popular. Os graffiti e a remixagem são exemplos de práticas artísticas que foram alçadas ao cume do mercado e logo absorvidas pelo mainstream publicitário por terem um profundo apelo ao gosto popular e uma modalidade técnica que se encaixa perfeitamente à lógica da máxima publicidade da obra (e quando ser uma arte de rua não basta, nunca faltarão documentários para imortalizar essa arte tão fortemente vinculada com a efemeridade, contribuindo para a miséria intelectual deste meio).
O perigo para o senso crítico desta juventude mora na ansiedade causada pela falta de um juízo estético próprio. Dois são os extremos: De um lado rege o olhar do gozo alheio. A necessidade de produzir algo que seja respondido com gozo de outro. Produzir é sempre produzir para uma apreciação totalmente alheia, e lograr essa apreciação totalmente alheia conduz o artista ao grau máximo do virtuosismo comunicativo. Ele é capaz de captar atenção e nisso jaz seu valor como artista. Por outro lado, quando o que rege a produção é o retiro do mundo social, esta acumula seu valor por atingir um grau máximo de incomunicabilidade, a reprodução do idêntico como idêntico, o afeto puro feito coisa. A arte então perde sua capacidade formal de expressar um pensamento e se torna a pura capacidade individual de criar obras individuais que têm seu sentido estritamente inscrito na identidade do indivíduo. Mais do que a incapacidade de produzir uma obra que lhe seja “outra coisa”, o artista neste caso também está respondendo a uma demanda: o público quer assegurar-se de que todavia é possível alcançar a individualidade autêntica. De fato, ela “está presente”, e todos podem comprová-la em si mesmos, basta criarem suas próprias obras incomunicáveis (mas que sem a devida ajuda de uma equipe de críticos especialistas nunca chegará a valer muito dinheiro). A contra-face desta moeda é o hiper-realismo, igualmente vazio de qualquer significação que não a da pura identidade reforçada pelo uso cínico da técnica, acorrentada, escrava do senso comum. Dar ao público o que ele quer ver, um programa para levar os filhinhos pequenos e divertir-se num domingo à tarde.
V
A formação de artistas profissionais sempre demandará instituições de fomento (públicas ou privadas), dado que se trata de uma atividade que não produz riqueza em si. Ao contrário, em alguns casos consome, litros e litros de tinta, de cordas, de figurino. É desta formação que parecem abrir mão tão rapidamente porções grandes da juventude. Não por acaso. Na sua intimidade conquistada com as tecnologias de comunicação muitos percebem que seu conhecimento técnico abre portas para novas formas de produção. Por sua vez, a difusão desta arte deixa de passar por âmbitos dedicados à apreciação artística crítica (dos acadêmicos engomadinhos da elite à roda de bambas do morro) e começa a ser espalhada pela rede de informações aberta, aproximando cada vez mais a produção artística dos bens de consumo corriqueiros e cotidianos, um pano de fundo confuso para os pequenos dramas pessoais que ganham realidade apenas na medida em que se parecem com os produtos consumidos coletivamente. Tudo aquilo que não se adapta ao modelo comunicativo fica de fora do enquadramento de realidade, a experiência necessita de seu correlato informatizado para ter sentido. A produção artística que não se adapta ao mundo binário da informação é deixada de lado pelas novas tendências. A escultura desaparece do horizonte estético, a música se torna hegemônica por sua dupla natureza de código e fenômeno público-acústico.
De uma maneira geral, a falta de perspectiva e a ansiedade generalizada tornam o jovem um conformista. A natureza imediata e muitas vezes inesperada do êxito, quase aleatório, se traduz em um estado de mediocridade tensionada, uma espera triste por algo que a atice e a transforme de maneira mágica, sem nunca estarem certos de se realmente valem a penaos seus esforços de produção. Claro! Pois o valor atribuído à sua produção está completamente alienado no outro, faz falta o juízo estético crítico do próprio indivíduo. Nada mais natural então do que unir “trabalho” e “arte”, quando ambos têm dinâmicas tão parecidas, a alienação da produção. Além disso, brincar com estética é divertido, e já que para o jovem hoje trabalhar significa não saber como será o amanhã, se trata sempre de uma arte sem amanhã. Sem projeto. Sem um espírito que ultrapasse os 15 minutos. Uma arte que se desfaz em valor enquanto a juventude vai se desfazendo em morte, lenta e inexorável. É necessário que haja um amanhã para que a juventude possa entender-se como ser acabado, para que ela se realize como ser em movimento e não como um tanque de água pútrida esperando para ser reciclada, conformista, ressentida e conservadora.
Ilustrado com obras de Kazimir Malevitch.
Esse texto lembra algo bejaminiano, dos rituais de entrega da vida ao capital feita pelos estudantes que, sabedores do futuro lixo que vindouro, se entregam a tudo no hoje e no agora…
A diferença dos tempos de Benjamin pra hoje é que não há mais esperança entre os jovens e essa completa incerteza sobre o futuro acaba com o seu moral, consequentemente aparta qualquer possibilidade de terem forças para tentarem se completar. Se antes a vida estritamente enquadrada no âmbito burguês era o último passo para este acabamento na personalidade, hoje já nem isso há.
Nem pragmático nem paradigmático, um jovem que não é Törless ou Werther. Talvez “um rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco” – imerso em confusão e sofrimento nada literários.