O slogan de direito à cidade foi apropriado pelos agentes os mais diversos, não raro com propósitos de legitimação de intervenções e políticas estatais. No momento, o melhor que se pode dizer é que se trata de uma bandeira disputada. Vale a pena, realmente, disputá-la? Por Marcelo Lopes de Souza
A segunda parte desse artigo pode ser lida aqui.
Com Lefebvre (graças a ele e apesar dele) e para mais além de Lefebvre
Henri Lefebvre foi, durante quase a metade de sua vida adulta, filiado a um partido (cripto-)stalinista, o Partido Comunista Francês (PCF), do qual só se afastou por ter sido suspenso, após três décadas de pertencimento à referida agremiação. [1] O Lefebvre que hoje todos admiram e ao qual sempre aludem, porém, é outro. É aquele que emerge somente nos anos 1960, com obras influentes e inspiradoras como O direito à cidade, A vida quotidiana no mundo moderno, A revolução urbana, O pensamento marxista e a cidade, Espaço e política e A produção do espaço. [2] Até mesmo esse festejado Lefebvre tardio, contudo, não esteve isento de contradições e ambiguidades. É ele, afinal de contas, o filósofo que, depois de ter, como bom herdeiro da tradição marxista, desdenhado Proudhon (e os anarquistas em geral, os primeiros e grandes praticantes e divulgadores do princípio por trás da palavra autogestão, desde o século XIX), pôs-se a falar em “autogestão generalizada”, ao mesmo tempo em que poupava de maiores críticas a autoproclamada “autogestão” na Iugoslávia do marechal Josip Broz Tito, que por três decênios e meio comandou uma versão light de “socialismo burocrático”; é ele, também, o pensador que, depois de criticar a classe operária pelo anacronismo de suas organizações e de seu discurso, teve dificuldades para valorizar a práxis e a criação popular sem grandes ressalvas, por conta de um resquício leninista/vanguardista que o fez crer que somente os intelectuais críticos possuiriam uma visão de totalidade e da “obra” (em oposição ao mero produto), visão essa que escaparia à massa. [3] De todo modo, é inegável que, a despeito de suas hesitações e seus pontos frágeis, ele captou vários aspectos importantes das tendências econômicas, das características políticas e culturais e do sentido das lutas do mundo atual, que já estava perfeitamente esboçado entre os anos 60 e 70 do século passado.
Curiosamente, nos anos 1980 e ainda nos 1990, Henri Lefebvre e sua obra não eram muito mais que objeto de reflexão (e, às vezes, de adoração) acadêmica. Na França, aliás, nem isso: na Geografia francesa (já um tanto decadente três décadas atrás, em que pesem a credibilidade e o prestígio de alguns geógrafos, como Yves Lacoste), pouco se discutia Lefebvre – ou seja, ironicamente, na mesma época em que, avidamente lido e recitado de cor em alguns círculos universitários no Brasil, era ele também traduzido para o inglês, com isso ganhando seus escritos uma difusão muito mais ampla do que havia sido o caso até aquele momento. E, então, no início do século XXI, a explosão de interesse (e a onda de cooptação e banalização que a tem acompanhado): protestos e movimentos diversos – contra a gentrificação [4], por mais e melhores espaços públicos, contra negócios e negociatas imobiliários, contra megaeventos esportivos e suas consequências em matéria de segregação residencial e desperdício de recursos públicos -, na Europa e nos Estados Unidos, e logo em seguida em vários outros continentes e muitos outros países, passaram a ter na bandeira do “direito à cidade” um slogan que parecia cair como uma luva. Como não poderia deixar de ser, isso retroalimentou a curiosidade acadêmica. Mas não só. Como também não poderia deixar de ser, atiçou a vontade de governos e ONGs (cada vez mais seus apêndices charmosos dentro da “sociedade civil”) de usar a mesma expressão para adornar o discurso de programas oficiais e projetos ditos “de inclusão social”. De exigência radical (o direito à cidade como o direito à fruição plena da riqueza e da cultura socialmente geradas e concentradas nas cidades, o que pressupõe, segundo Lefebvre, uma outra sociedade), aquele slogan foi sendo apropriado pelos agentes os mais diversos, não raro com propósitos de legitimação de intervenções e políticas estatais. [5]No momento, o melhor que se pode dizer é que se trata de uma bandeira disputada. Vale a pena, realmente, disputá-la?
Apesar dos problemas (lacunas, obscuridades de sentido etc.) da obra de Lefebvre, sim, vale a pena continuar disputando essa ideia, que é largamente válida e ousada. Entretanto, a sua própria ousadia também tem limites intrínsecos, dentro dos marcos teóricos e político-filosóficos da obra lefebvriana (por mais que, lacunares às vezes e vagos outras tantas vezes, sejam eles admirável e irritantemente plásticos e ambivalentes, o que explica, ao lado da ignorância de certos pormenores, as tentativas de apropriação por parte tanto de marxistas heterodoxos quanto de alguns libertários). A questão é que, se examinarmos com cuidado a obra em questão, veremos, se estivermos abertos a essa possibilidade de interpretação, que o grande filósofo francês tematizou menos profunda ou contundentemente do que seria desejável todo um conjunto de assuntos, como a problematicidade da tecnologia (e da própria espacialidade) capitalista, as formas organizacionais específicas da “autogestão generalizada” e o problema do “Estado socialista” (e da serventia da forma-partido) – que são formidáveis desafios e gargalos para qualquer marxista, e de cuja embaraçosa discussão Lefebvre foi relativamente salvo, talvez, tanto por sua sensibilidade quanto por suas omissões e vaguidão…
Não se trata, porém, apenas do “direito à cidade” (nem mesmo nos marcos da compreensão lefebvriana sobre o alcance do “urbano”, mais ampla que a usual). Esse é o ponto crucial. O que está em jogo é a necessidade de um questionamento e de um enfrentamento prático, sem meias palavras e sem tergiversações (isto é, sem leninismo/ vanguardismo residual, sem ambiguidades), do “modelo (anti)civilizatório” capitalista em escala planetária, o que, na minha convicção, implica fazer face ao desafio de pensar e superar: 1) o Estado e o estatismo (propriamente capitalista ou “socialista”), e também a forma-partido e todos os modos hierárquicos, burocráticos e verticais de organização coletiva; 2) a matriz tecnológica e a espacialidade capitalistas; 3) a ideologia capitalista (de algum modo partilhada, ainda que de maneira distinta e recontextualizada, pelo marxismo típico e seu economicismo/produtivismo) do “desenvolvimento econômico”, com seus pressupostos economicistas, eurocêntricos, teleológicos e racionalistas. O que está em jogo, enfim, é o direito ao planeta, em que se exige repensar toda uma série de questões no que tange à organização espacial (apontando-se para a desconcentração econômico-espacial e para a descentralização territorial radicais, mas sem resvalar para autarquias, localismos e insularizações), à divisão social do trabalho, à exploração e à alienação (em que devem ser destacadas as tendências de agravamento e regressão, como a precarização e a “hiperprecarização” no mundo do trabalho), o etnocentrismo (em que cabem ser denunciadas com veemência as suas renovadas facetas em matéria de xenofobia, nacionalismos e racismos), os vários tipos de opressão (de classe, de gênero etc.) e a heteronomia em geral – tendo por base e parâmetro, em última instância, a autonomia, em sentido forte. [6] Para isso tudo, Lefebvre pode ajudar, mas é claramente insuficiente. A tradição libertária, dos anarquistas clássicos (como Élisée Reclus, Piotr Kropotkin…) a um neoanarquista como Murray Bookchin e a um autonomista libertário como Cornelius Castoriadis, ajuda, creio eu, muito mais. E, não com menos ênfase, a inspiração há de vir, sem dúvida, também e especialmente da práxis (às vezes confusa ou aparentemente confusa, às vezes inovadora e coerente; às vezes poderosa, às vezes de fôlego curto) de tantos movimentos e formas de resistência anticapitalista e emancipatória, sobretudo dos últimos dois decênios.
O esgotamento da conjuntura “participacionista” e o início de uma nova conjuntura
A década de 1990 testemunhou um entusiasmo – não raro uma verdadeira euforia – a respeito das possibilidades de uma modalidade de luta institucional [7] que apareceu pela primeira vez no mundo, de maneira significativa, na década de 1960: a participação popular direta (individual ou mediante organizações associativas) no desenho e na elaboração de projetos urbanísticos e políticas públicas de “desenvolvimento urbano” e congêneres.
Até os anos 1960, a luta institucional se referia, basicamente, à criação de partidos e à filiação a eles, vistos como instrumentos de luta para conquistar, gradualmente (via parlamentar como estratégia, “entrismo”, “guerra de posição” [8]) ou, dependendo das circunstâncias e do partido, por meio de uma ruptura (tomada violenta do aparelho de Estado, com o uso do parlamento, eventualmente, como expediente tático), o poder estatal. Era a perspectiva leninista (revolucionária) ou social-democrata (explicitamente reformista), posteriormente também eurocomunista (essencialmente reformista, apesar de certas aparências no início). [9] Já a década de 1960 vira, porém, também o capitalismo tardio e suas instituições, em meio aos “Trinta Gloriosos” (como ficaram conhecidas as três décadas de comparativa prosperidade bastante generalizada do pós-Segunda Guerra Mundial na Europa e nos EUA, na esteira de um forte crescimento econômico e da consolidação do welfare state e de ganhos salariais para os trabalhadores), serem desafiados por revoltas de grupos descontentes com a alienação cultural e a integração forçada ao modelo do consumismo de massas (notadamente os estudantes universitários) e, em certos casos, com fatores específicos como guerras (Guerra do Vietnã) e racismo (movimento pelos direitos civis dos negros nos EUA). A isto o sistema respondeu com esforços redobrados de integração e cooptação: projetos habitacionais, legislação antissegregacionista nos EUA, expansão do ensino superior e, entre outras coisas mais, também com… acenos no sentido de facilitar a participação direta dos cidadãos na concepção e na gestão de projetos e iniciativas.
Foi na década de 1990, porém, que a “participação popular” encontrou condições mais propícias para se sofisticar e generalizar pelo mundo afora. Nos anos 1960 e 1970, a maior parte da América Latina se debatia com regimes militares e as restrições por eles impostas ao exercício até de mínimas liberdades; vinte anos depois, no entanto, o cenário havia mudado. Na Europa e nos EUA, a retração da presença estatal de cunho keynesiano e o enfraquecimento paulatino do Estado de bem-estar, com a ascensão da agenda neoliberal, [10] substituía o desejo (e a possibilidade) de integração por uma exclusão seletiva (precarização do trabalho, diminuição ou deterioração de serviços públicos), fazendo a cooptação tornar-se ainda mais importante em nome da “governabilidade” (preocupação crescente), mas que teria, agora, de ser viabilizada com um recurso redobrado à promessa de “participação” e maior “democratização” (cogestão da crise…); na América Latina, a implosão da “matriz centrada no Estado” (state-centred matrix) [11] e a “redemocratização” em um contexto de fortes desigualdades (e introdução da agenda neoliberal) pedia ou exigia que se recorresse à promessa de “participação” como forma de diluir responsabilidades e oferecer a perspectiva de maiores transparência, responsabilidade e eficiência na realização dos gastos públicos. Um dos mais bem-sucedidos exemplos de experiência de “participação popular” (especialmente em matéria de marketing, apesar de uma consistência e de um arrojo também pouco usuais e por isso sedutores, ao menos no início) foi, justamente, latino-americano, mais especificamente brasileiro: o orçamento participativo de Porto Alegre, introduzido, em 1989, sob administração local do Partido dos Trabalhadores, mas que correspondia fundamentalmente a uma exigência que já tinha sido levantada no município anos antes por movimentos urbanos e suas organizações, notadamente a UAMPA (União das Associações de Moradores de Porto Alegre). Nos anos subsequentes à sua implementação, o orçamento participativo tornou-se uma coqueluche não apenas nacional (e cada vez mais transbordando os limites do PT, já que todos os partidos, até os conservadores, perceberam os dividendos político-eleitorais advindos da promessa dessa institucionalidade), mas verdadeiramente internacional, tornando-se uma “best practice” admirada e imitada em numerosos países, inclusive na Europa. De um modo geral, porém, as tentativas de emular o aparente sucesso de Porto Alegre não passaram de arremedos grosseiros e pouco ou nada consistentes. [12]
Quando, no começo da década passada, o orçamento participativo de Porto Alegre já dava claros sinais de “fadiga”, era o próprio modelo “participacionista”, mais amplamente, que já começava a caminhar para a exaustão ou saturação, e isso em escala internacional. É claro que, nas últimas décadas, houve no mundo uma pletora de situações político-institucionais particulares, com variações significativas entre países e até entre cidades (diferentes “regimes urbanos” [13]), e nem todas elas se prestaram a ser palcos privilegiados de experimentações desse tipo. Isso sem contar a diversidade de quadros culturais e situações econômico-sociais, impedindo qualquer generalização fácil. Entretanto, se a difusão consistente de soluções (em última análise, pseudossoluções) e promessas (em grande medida ilusórias) foi difícil, infinitamente mais fácil foi a disseminação de problemas e desafios postos para os interesses populares pelas formas típicas de manifestação das estratégias de acumulação no âmbito do “neoliberalismo urbano” [14], expressão local-urbana da agenda neoliberal: gentrificação, deslocamentos forçados de população (geralmente pobre e imigrante) e agravamento de situações de segregação, grandes empreendimentos, “privatização branca” do espaço público, investimento em megaeventos esportivos e respectivas obras de engenharia e infraestrutura preparatórias – em suma, produção de espaço em larga escala pelo grande capital, à revelia da maioria da população e não raro contra os seus interesses objetivos.
Quando a paciência começou a se esgotar e o charme e o poder de convencimento do modelo “participacionista” começaram a se dissipar como névoa diante de raios de sol mais e mais fortes, o peso da luta institucional passou a empalidecer rapidamente, em favor da ação direta. A população, indignada com problemas locais, regionais, nacionais e globais, começou a ganhar as ruas e praças, mas também espaços outros, fora das grandes cidades e metrópoles, como mostra o “território zapatista” em Chiapas, que surgiu para o mundo, de forma espetacular, em 1994, há exatos vinte anos. Novas ou renovadas práticas de auto-organização política foram se espraiando, com derrotas e vitórias se alternando: Seattle, Praga, Gênova (São Paulo…) e outros palcos de famosos “dias de ação global”; na Argentina, piqueteros, asambleas barriales,empresas recuperadas; no Brasil, os sem-teto (os sem-terra foram politicamente fortes até meados da década passada, vale dizer, até terem a força de sua principal organização minada por sua proximidade com o governo do PT e pela dificuldade para resistir tanto à competição com os subsídios sociais estatais quanto ao modelo ideológico da agricultura capitalista); no Magreb, a “Primavera Árabe”; na Espanha, o 15-M e osindignados; na Grécia, a exemplo da Espanha, as revoltas contra os ajustes estruturais na Zona do Euro; nos EUA, o Ocuppy Wall Street, cujo modelo tentou-se fazer replicar em muitas cidades do mundo; na Turquia, a revolta em torno do Gezi Park… E assim sucessivamente, até chegarmos às contraditórias e complexas Jornadas de Junho, em várias cidades brasileiras, em 2013. Entre todas essas situações, várias diferenças, mas também algumas convergências importantes, nada acidentais, que nos sugerem um padrão, o qual responde a problemas e condições que, em grande medida, são comuns: a predominante presença dos jovens, grandes perdedores com o capitalismo atual (é neles que se concentra o desemprego, é sobre eles que recai a principal sanha preventivo-repressiva do “Estado penitência” [15]); a frequente (mas não universal ou absoluta) sobrerrepresentação de estudantes e de um perfil de classe média; o uso de ferramentas como redes socais e a Internet em geral para facilitar ou viabilizar convocações e mobilizações, mas sem substituir a interação face a face nos espaços públicos revalorizados e dotados de nova e inusitada vitalidade; a presença de elementos discursivos e práticos da tradição libertária (horizontalidade, autogestão, descentralização, autonomia), embora muitas vezes mesclados com elementos discursivos e práticos da tradição marxista (em alguns casos, bem contraditoriamente, até mesmo leninista) ou mesmo com demandas de natureza reformista, o que demonstra o caráter “híbrido” ou “sincrético” típico dos movimentos e formas de protesto contemporâneos. [16]
Seja lá como for, novos espaços, em sentido literal ou metafórico, vêm sendo construídos e conquistados. Um balanço, mesmo que apenas provisório, não é tarefa trivial. Mas alguns traços positivos (potencialidades e vitórias, mesmo que parciais) podem ser identificados e relatados, ao lado, igualmente, de alguns gargalos e perigos.
Notas
[1] Nascido em 1901, Lefebvre aderiu ao PCF em 1928, época em que o partido já demonstrava uma tendência nitidamente stalinista e de subserviência à orientação de Moscou, consolidadas no início da década seguinte. A despeito de algumas tensões com a linha oficial do partido, ele permaneceu em suas fileiras até 1958. E que não se diga que “não havia alternativa”: para além dos agrupamentos trotskistas, basta lembrar, acima de tudo, do grupo Socialisme ou Barbarie (e da revista homônima), fundado em 1949 por Cornelius Castoriadis e Claude Lefort, que eram então marxistas heterodoxos.
[2] Foram por mim consultadas as seguintes edições: La vida cotidiana en el mundo moderno (Madrid, Alianza Editorial, 1972 [primeira edição francesa: 1968]); O direito à cidade (São Paulo, Moraes, 1991 [primeira edição francesa: 1968); La revolución urbana (Madri, Alianza Editorial, 4.ª ed., 1983 [primeira edição francesa: 1970); La pensée marxiste et la ville (Paris, Casterman, 1972); Espacio y política: El derecho a la ciudad, II(Barcelona, Península, 1976 [primeira edição francesa: 1972]); La production de l’espace (Paris, Anthropos, 1981 [primeira edição francesa: 1974). Sobre a longa passagem de Lefebvre pelo PCF e os “serviços sujos” que ele foi, como aliás muitos outros intelectuais a serviço de partidos stalinistas, forçado a fazer (o que incluiu de autocríticas a ataques praticamente “encomendados” contra dissidentes e adversários do partido), a tudo isso se sujeitando, deve-se registrar que os verbetes da Wikipedia dedicados a Lefebvre em francês e espanhol silenciam sobre esse lado sombrio de sua vida política, dando inclusive a entender que ele teria sido quase sempre um campeão da resistência ao stalinismo. Muito mais honesto é o obituário “Henri Lefebvre, 1901-1991”, assinado por Michael Kelly e publicado em 1992 no número 60 do periódico Radical Philosophy.
[3] Em O direito à cidade, Lefebvre não deixa dúvidas: a classe operária ou trabalhadora seria, por um lado, a única classe capaz de fazer a revolução; por outro lado, imersa na alienação (imersa na “quotidianidade”, por ele grandemente reduzida à carga negativa do “consumo dirigido”), essa mesma classe não teria “espontaneamente o sentido da obra” (e, portanto, da verdadeira criação do novo, da verdadeira emergência histórica), mas somente do “produto”. A tradição filosófica (e artística), essa sim, seria a depositária de tal sentido (cf. p. 144 da edição mencionada na nota anterior). Em outras palavras, a classe operária não perceberia a “totalidade”, e portanto teria dificuldades em compreender (leia-se: sozinha) que o seu “ser” a predestinaria a uma “tarefa histórica”. Esse “sentido (da obra)”, ela o receberia de fora: a saber, da “Filosofia”. Eis uma maneira elegante e intelectualizada de dizer o mesmo que Lenin: ou o proletariado se deixa guiar pela intelectualidade marxista (ela, sim, detentora de um sentido de “totalidade”), que atuará como sua ideóloga e tutora, ou o proletariado chegará, no máximo, ao reformismo. O longo trecho a seguir condensa muito tanto da agudeza (e da relativa originalidade) quanto do beco sem saída da concepção de Lefebvre; ele foi extraído de um artigo publicado em 1971: “(…) em um plano que poderiam ser caracterizado como de junção entre o teórico e o prático, Marx descobre que a classe trabalhadora precisa tomar lições, que o conhecimento não é imanente a ela; por exemplo, a classe trabalhadora [classe ouvrière], como classe, não sabe o que é o funcionamento geral da sociedade. Quando um partido político que a quer “representar” apresenta um programa, esse programa ignora uma parte muito importante do funcionamento global de qualquer sociedade; é isso que diz a crítica do programa de Gotha. A classe trabalhadora alemã, a mais desenvolvida, mesmo informada e educada por um partido que propõe uma agenda política, não capta o que é o funcionamento geral de uma sociedade, isto é, não só produção e trabalho, mas também a educação, a saúde, a escola, a universidade e, finalmente, toda a organização social. A empresa não coincide com a classe, e a classe enquanto classe não conhece o funcionamento global da sociedade, a forma de gerir a sociedade, o que significa que ela conhece mal a gestão do excedente social que lhe vai além. Devemos, portanto, ensinar-lhe. É aqui que entra o pensamento de Lênin. A classe operária, explorada, carrega o peso simultâneo da acumulação de capital da classe burguesa, tal como ela existe, e da própria ordem burguesa. Ela é a base da ação revolucionária; mas como uma classe, ela tem limitações. Ela não se alça, enquanto classe, a um projeto de classe da totalidade social. A espontaneidade é essencial; ela sofre ímpetos e recaídas; ela possui limites; a receptividade da classe trabalhadora existe, mas também tem os seus limites.” (Henri Lefebvre, “La classe ouvrière et-elle révolutionnareire?” L’Homme et la société, nº 21, páginas 149-156; o trecho se acha na página 151). Nessa passagem, de maneira contundente, o autor nos fornece uma indicação: 1) de que ele percebe que a classe, enquanto tal, remete a um único (ainda que essencial) aspecto da totalidade social (a esfera da produção), insuficiente quando a tarefa é compreender e revolucionar a sociedade inteira; 2) de que, para ele, a “classe ouvrière” continua sendo vista como o sujeito potencialmente revolucionário por excelência (em outros momentos do mesmo artigo, Lefebvre menciona, tangencialmente, os jovens e os estudantes, mas seu interesse se direciona basicamente para a “classe ouvrière”, que ele distingue do “proletariado”, encarado como uma massa mais ampla e heterogênea); 3) de que, para ele, a “classe ouvrière” precisa ser “instruída” e “educada” por um agentes de algum modo externos a ela (mais ou menos no sentido preconizado por Lênin e prenunciado por Marx na sua famosa crítica do programa de Gotha). É à luz disso que se precisa tentar avaliar o grau de (in)coerência de Lefebvre ao clamar por “autogestão generalizada”: se, por um lado, ele percebe certos limites do classismo estrito e do economicismo, fortemente entranhados na tradição de pensamento da qual ele provém, por outro lado lhe é sumamente difícil desembaraçar-se por completo do enfoque hierárquico e vanguardista que é igualmente tão próprio a essa tradição. Quanto à descoberta da autogestão por Lelebvre, vale a pena consultar, além de A revolução urbana, também L’irruption: de Nanterre au sommet (Paris, Syllepse, 1998 [primeira edição em 1968]) e “Theoretical problems of autogestion”, incluído no livro State, Space, World, organizado por N. Brenner e S. Elden (Minneapolis, University of Minnesota Press, 2009 [primeira edição francesa do ensaio de Lefebvre: 1966], p. 138-152).
[4] Essa feia palavra, canhestro aportuguesamento do inglês gentrification (derivado de gentry: pequena nobreza), designa, resumidamente, um processo de câmbio socioeconômico-espacial em que uma população residente de baixa renda é objeto de pressões e mesmo de remoção compulsória, sendo as residências de trabalhadores pobres substituídas por moradias de classe média ou de luxo, ou ainda por empreendimentos comerciais de alto status. Aos poucos, o termo vai deixando de ser um mero e hermético jargão técnico para adentrar o discurso político quotidiano, mormente dos movimentos sociais.
[5] Abordei esse problema no artigo “Which right to which city? In defence of political-strategic clarity” (Interface: a journal for and about social movements, 2[1], 2010, p. 315-333).
[6] Trata-se esse de um dos termos-chave do debate crítico-político dos últimos vinte anos, em torno do qual, no entanto, subsistem várias incompreensões e interpretações banalizantes (quanto a este último problema, vale registrar, de passagem, que a versão mínima mais usual entre os movimentos da atualidade – “autonomia em face dos partidos e das instituições do Estado” – é, para usar um eufemismo, muito insuficiente.) Não é viável tentar dissipar uma espessa névoa de confusões e polissemia em uma simples nota de rodapé, de maneira que prefiro remeter o leitor à fonte mais precisa e profunda que conheço, a esse respeito: a obra de Cornelius Castoriadis. Ver, por exemplo, a título de introdução: “Introdução: socialismo e sociedade autônoma”, em Socialismo ou barbárie: O conteúdo do socialismo (São Paulo: Brasiliense, 1983 [publicado originalmente em 1979, na França]); “La logique des magmas et la question de l’autonomie”, em Domaines de l’homme – Les carrefours du labyrinthe II (Paris, Seuil, 1986); “Pouvoir, politique, autonomie”, em Le monde morcelé – Les carrefours du labyrinthe III (Paris, Seuil, 1990); “La démocratie comme procédure et comme regime”, em La montée de l’insignifiance – Les carrefours du labyrinthe IV (Paris, Seuil, 1996). Para uma discussão detalhada da dimensão espacial da autonomia – assunto, infelizmente, negligenciado por Castoriadis -, consulte-se o meu livro A prisão e a ágora: Reflexões em torno da democratização do planejamento e da gestão das cidades (Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2006). Por fim, cumpre salientar, de todo modo, que estas alusões e recomendações referentes a um tratamento conceitual “rigoroso” não tencionam sugerir que a práxis deva, simplesmente, deixar-se conduzir por discussões filosóficas e científicas, e muito menos que estas pouco ou nada teriam a aprender com a ação e os discursos políticos concretos da atualidade. No fundo, é quase o contrário: por mais que seja lícito e mesmo necessário chamar a atenção para deficiências e lacunas e até contradições no âmbito do quotidiano das lutas, as maneiras concretas como os discursos e as práticas vêm sendo construídos constituem, por si e em si, um terreno repleto de lições a serem refletidas, inclusive acerca das brechas e portas de entrada através das quais as resistências vão dando vida, em circunstâncias variáveis e não raro muito adversas, a uma categoria essencialmente política que, se não fossem as suas apropriações às vezes “superficiais”, correria o risco de permanecer confinada a um ambiente de debate acadêmico.
[7] Conforme resumi algum tempo atrás (“Ação direta e luta institucional: Complementaridade ou antítese? [Primeira Parte]”, [27 de abril de 2012; http://passapalavra.info/?p=56901]), “[a]ção direta é como (principalmente) os anarquistas têm denominado, há gerações, a atividade de luta armada, mas também de propaganda, agitação e organização, com a finalidade de promover a revolução social e eliminar a exploração de classe e o Estado que lhe dá respaldo. Houve época em que, entendida como “propaganda pela ação” e privilegiando-se o enfrentamento armado, a “ação direta” foi confundida com o emprego da violência, tendo sido, às vezes, até mesmo reduzida ao terrorismo. Felizmente, mesmo entre aqueles que não rejeitaram ou rejeitam, na qualidade de último recurso ou amiúde como estrita necessidade, a resistência armada, a ação direta passou a merecer uma definição bem mais abrangente. Neste texto, consoante essa linha interpretativa, ela designa o conjunto de práticas de luta que são, basicamente, conduzidas apesar do Estado ou contra oEstado, isto é, sem vínculo institucional ou econômico imediato com canais e instâncias estatais.” A ação direta contrasta com a luta institucional, que, segundo o mesmo artigo, “significa o uso de canais, instâncias e recursos estatais, tais como conselhos gestores, orçamentos participativos ou fundos públicos. Aqui, entretanto, estabelece-se já uma distinção entre uma posição marxista-leninista e uma postura compatível com o campo libertário: a luta institucional abordada neste texto é uma luta institucional não partidária, ou seja, que não tem como pressuposto a criação de partidos políticos ou a filiação a partidos políticos por parte dos ativistas.”
[8] “Guerra de posição” é uma expressão inspirada na guerra de trincheiras da Primeira Guerra Mundial, utilizada no âmbito da teoria da hegemonia de Antonio Gramsci. A interpretação gramsciana original, segundo a qual o modelo da Revolução Russa (ou, melhor dizendo, o modelo da tomada do Estado pelos bolcheviques em outubro de 1917) não poderia ser realisticamente replicado no Ocidente, com sua sociedade civil e seu Estado muito mais complexos, cabendo, isso sim, um processo de conquista gradual, “trincheira por trincheira”, degenerou posteriormente no “entrismo”, que é a visão francamente oportunista (embrionariamente presente em Gramsci) de acordo com a qual cumpre adentrar o Estado, onde e como for possível, para depois tentar transformá-lo a partir do interior.
[9] O eurocomunismo foi formulado na década de 1970 por estrategistas políticos italianos, espanhóis e franceses vinculados aos partidos comunistas, que desejavam romper com o stalinismo cada vez mais anacrônico que então ainda predominava nos esclerosados PCI, PCE e PCF. A tentativa de buscar uma via alternativa que não fosse nem o (cripto-)stalinismo dos PCs nem o reformismo acomodado da social democracia teve defensores ilustres, como o brilhante teórico greco-francês Nicos Poulantzas, mas acabou por revelar-se, na prática, como um pretexto para o “entrismo” mais escancarado e oportunista.
[10] Convém não esquecer que o neoliberalismo, como modelo de política econômica (crença reforçada no livre mercado e no “Estado mínimo”, privatizações etc.), não surgiu nos anos 1970 ou 1980. A eleição de Margareth Thatcher como primeira-ministra britânica em 1979 e a ascensão da reaganomics (política econômica do governo Ronald Reagan) após a eleição de Reagan para a Presidência dos Estados Unidos, no ano seguinte, foram marcos simbólicos e práticos importantes; porém, a implementação daquela agenda só se tornou possível na esteira da crise do capitalismo que, agravando-se ao longo da década de 1970 com os dois choques do petróleo, forçou e catalisou transformações tanto econômico-tecnológicas (“Terceira Revolução Industrial”, aumento de produtividade, novas ondas de desemprego tecnológico, incremento da extração da mais-valia relativa, consolidação da globalização econômico-financeira) quanto político-econômicas e econômico-político-sociais (enfraquecimento das políticas econômicas keynesianas e dos sindicatos, postura cada vez mais defensiva e mesmo conservadora dos partidos social-democratas). Desenvolvido como abordagem de política econômica já nos anos 1930 e posteriormente identificado com (e popularizado por) nomes como Friedrich Hayek, o neoliberalismo entrou em relativo ocaso durante os “Trinta Gloriosos”, dominados ideologicamente, no campo burocrático-gestorial, pelo keynesianismo, sendo (re)convocado como ideologia e enfoque básico do capitalismo somente a partir da década de 1980, servindo ao mesmo tempo como expressão das propostas mais reacionárias, antenadas com os interesses de uma boa parcela do empresariado e também da classe média resentidas com o Estado.
[11] A state-centred matrix foi o modelo desenvolvimentista baseado em pesados investimentos e forte regulação estatais (incluída a maciça criação de empresas estatais) que, na América Latina, se estendeu entre as décadas de 1930 e 1970. A expressão foi cunhada por Marcelo Cavarozzi em seu artigo “Beyond Transitions to Democracy in Latin America” (Journal of Latin American Studies, 24(3), Cambridge e outros lugares, 1992)
[12] Alonguei-me sobre isso, com a ajuda de exemplos concretos, em A prisão e a ágora, op.cit..
[13] O conceito de “regime urbano” (do inglês urban regime) foi proposto por Clarence Stone no começo dos anos 1990 (vide o artigo “Urban regimes and the capacity to govern: A political economy approach”, Journal of Urban Affairs, 15[1], 1993, p. 1-28) para caracterizar as combinações de formas institucionais e interesses econômicos (especialmente interesses de classe) que se expressam sob a forma de estilos de gestão específicos: uns mais abertos à pressão dos trabalhadores e permeáveis à participação popular (com ou sem aspas), outros mais repressivos e refratários a uma agenda “progressista”. Ainda que a classificação proposta por Stone não deva ser transposta irrefletidamente para uma realidade bem diferente da estadunidense, como a brasileira, a ideia do conceito é útil em si mesma.
[14] Também chamado de “empreendedorismo urbano” e “empresarialismo urbano”, vários estudos importantes e esclarecedores têm sido publicados sobre isso que, aqui, prefiro chamar de “neoliberalismo urbano”, por exprimir de modo mais simples e direto a essência do fenômeno, que consiste em uma “tradução” da agenda neoliberal para arena urbano-local e as os interesses e agentes específicos vinculados à acumulação de capital nesse âmbito, em que o papel do Estado, a atuação das diversas frações do capital, as estratégias de acumulação, os conflitos sociais e os modos de resistência assumem características particulares.
[15] A ideia do “Estado-penitência”, que em grande medida substituiu o “Estado-providência”, deve-se a Loïc Wacquant, que a desenvolveu em uma série de trabalhos, entre eles o livro As prisões da miséria(originalmente publicado em 1999, e que no Brasil apareceu em tradução de 2001, publicada pela Jorge Zahar, do Rio de janeiro.
[16] Essa característica de muitos movimentos e protestos contemporâneos foi abordada por mim em vários trabalhos, entre eles os artigos “Marxists, libertarians and the city” (City, 16[3], 2012, p. 309-325), “Libertarians and Marxists in the 21st century: Thoughts on our contemporary specificities and their relevance to urban studies, as a tribute to Neil Smith” (City, 16[6], 2012, p. 692-698) e “Towards a libertarian turn? Notes on the past and future of radical urban research and praxis” (City, 18[2], 2014, p. 104-118).
Os leitores portugueses que não percebam certos termos usados no Brasil
e os leitores brasileiros que não entendam outros termos usados em Portugal
encontrarão aqui um glossário de gíria e de expressões idiomáticas.
A expectativa de uma cartografia da dissidência, se havia, segue frustrada.
Menos mal, quanto à bibliografia…