Enquanto os avanços tecnológicos são amplamente usados para monitorar os trabalhadores e tirar deles maior produtividade, as ferramentas que objetivam melhorar as condições de trabalho ou a vida dos usuários são categoricamente descartadas. Por Daniel Caribé

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VI

Outro elemento do Edital que merece um pouco mais de nossa atenção é o prazo de 25 anos lá estipulado para as empresas controlarem o sistema de transporte de Salvador.

Qualquer empresa, mesmo as que operam em monopólios, sabe que um planejamento de 25 anos é fora da realidade. Os gestores podem criar metas, fazer planos, projeções e desenhar cenários, mas é impossível prever com exatidão as transformações tecnológicas e consequentemente os custos das atividades produtivas para um período tão longo. Sequer podem garantir que os seus produtos tenham mercado em tão estendido prazo. Ao contrário do que possa parecer, um contrato de 25 anos, se for feito dentro dos marcos legais atuais, só aumentaria os riscos para as empresas, inviabilizando a adesão das mesmas.

calçada01Mas não é isto que aconteceu. Apesar de apenas três consórcios terem se candidatado, um para cada área de operação, neles estão contidos praticamente todas as empresas que já exploravam o serviço de transporte público em Salvador.

Ao contrário de um processo de concorrência, através do Edital procurou-se criar uma barreira de entrada para que empresas que até então não atuavam na cidade fossem impedidas “tecnicamente” de participar, o que foi bem sucedido. Ou as empresas reunidas no SETPS (Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros de Salvador) querem muito presentear a cidade em uma prática rara de dádiva empresarial ou alguma coisa não anda bem explicada. O fato é que se não houvesse garantias à lucratividade, para além das cláusulas do equilíbrio econômico-financeiro, dificilmente uma empresa se candidataria a incorrer em riscos por tão longo tempo, ainda mais em uma cidade em que inevitavelmente novas modalidades de mobilidade urbana deverão ser implementadas em curto e médio prazos, configurando uma licitação deserta como foi a recente em Porto Alegre.

Inviabiliza a participação de novas empresas, para ficar em apenas um exemplo, além daquelas que atualmente oferecem o serviço na cidade, a imposição de já possuir a frota de ônibus e as garagens com suas instalações, itens bastante detalhados nos anexos do Edital. O prazo máximo disponibilizado no Edital é de 180 dias para início da operacionalização e este prazo é usado nos critérios de pontuação. A empresa ou consórcio que não for capaz de atender a este requisito, nem deveria oferecer propostas. E foi o que aconteceu. Ou seja, uma empresa que não atuava em Salvador perderia muitos pontos já de início e ainda teria que avaliar se é tecnicamente possível iniciar a operacionalização dos serviços nestes seis meses máximos.

Não se trata aqui de uma desconfiança da capacidade empreendedora dos empresários soteropolitanos, nem um preconceito em relação aos meus conterrâneos proprietários da cidade. Ao contrário, já cogitei a possibilidade do Edital ser uma tentativa de dádiva empresarial e espantar os forasteiros talvez seja uma boa solução. Até José Carlos Aleluia, o anterior secretário Municipal de Urbanismo e Transporte e principal defensor do Edital, hoje candidato a deputado federal pelo DEM, se mostrou insensível diante de tanto altruísmo e espírito cívico dos nossos empresários ao questionar o fato das empresas de ônibus apresentarem balanços que as colocam no vermelho por longos anos: “Não considero plausível [as planilhas]. Um sistema com 18 empresas tendo um prejuízo desta ordem quebraria em três meses. Não temos tido notícias de falências. Você viu alguma empresa de ônibus falindo em Salvador recentemente?” (ver aqui).

Talvez sejamos mesmo todos ingratos. E de fato os empresários dos sistemas de transportes das outras grandes cidades só fazem um trabalho melhor do que os de Salvador porque visam o lucro, ao contrário dos daqui. A tarifa de R$2,80, uma das mais caras do país; a frota sendo uma das com tempo de uso mais prolongado; a quase exclusividade do ônibus enquanto modalidade de transporte público; o número reduzido de ônibus frente a demanda; nada disso e outras muitas coisas devem ser usadas como parâmetros para mensurar a competência ou para questionar a lisura dos empresários soteropolitanos. Entretanto, há economistas dizendo por aí que a concorrência é melhor que o monopólio; a Lei das Licitações que deveria balizar este Edital também busca garantir a competitividade nos processos de contratação pública, entre outras balelas que acabam punindo os bons corações. E nós, claro, trabalhadores ricos que somos, e enquanto ricos também mesquinhos, só pensamos em uma tarifa mais baixa e um transporte eficiente. Definitivamente Salvador não merece os empresários e os governantes que tem.

A proposta do Ministério Público do Estado, através da Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo de Salvador, era que houvesse um contrato com tempo reduzido, por volta de cinco anos, prazo suficiente para regularizar a situação do PDDU e para permitir a elaboração do Plano de Mobilidade Urbana, podendo após isto ser lançado um novo edital, pautado nas diretrizes dos planos supracitados, com prazo mais dilatado. Os movimentos sociais, por ainda não terem propostas, se apegaram a esta estratégia da promotora.

O Poder Executivo Municipal, ao contrário, sempre tendo por prioridade o tal do equilíbrio econômico-financeiro, termo usado para mascarar a garantia eterna de lucratividade das empresas, argumenta, conforme relatório da ata de audiência realizada no dia 09 de dezembro de 2013 com a participação de representantes da Prefeitura, que “o prazo de 30 anos se justifica em função do investimento necessário de mais de 3,5 bilhões, e também, para guardar, segundo subsecretário [da SEMUT, Orlando Santos], compatibilidade com o prazo de concessão do metrô…”. Entretanto, o próprio Ministério Público questionou os números, que não batem com as planilhas apresentadas, nas quais não há previsão para investimento tecnológico, no máximo para “monitoramento”, e que o investimento a que se referem é praticamente exclusivo para a renovação da frota, não chegando aos 3,5 bilhões apontados. Devemos comemorar a diminuição do prazo de 30 para 25 anos?

VII

Por fim, algumas palavras sobre a relação com aqueles que sacolejam dentro dos ônibus diariamente, os seus usuários e os trabalhadores do setor.

OLYMPUS DIGITAL CAMERAPara um soteropolitano que não conhece outro sistema de ônibus além do de Salvador, uma situação pode ter se naturalizado, mas nem por isto retira dela toda a sua crueldade. Enquanto o grande lema das manifestações do ano passado (2013) era “por uma vida sem catracas”, em Salvador teríamos que dar um passo atrás. Não porque catraca seja uma palavra pouco usada na cidade, aqui se chamando roleta ou borboleta o símbolo da opressão do sistema de transporte. Mas porque, pior que ela, há o tal do “curral”.

O curral, para quem não sabe, é um corredor que vai da porta de embarque até a catraca do ônibus e cujas paredes vão do piso ao teto. Ele obriga o passageiro a se dirigir imediatamente à roleta e cria um sistema que torna difícil realizar as viagens sem pagar a tarifa. É de fato muito parecido com o curral utilizado para tanger gado e demonstra, sem muitos rodeios, a forma como a população é tratada.

Ao contrário da grande maioria dos sistemas de transporte público pelo mundo, em Salvador a porta de embarque é a traseira e a de saída fica ao lado do motorista. Cobradores e motoristas trabalham em extremos opostos dentro dos ônibus, o que dificulta a interação entre eles porém eleva a capacidade dos mesmos de controlarem os passageiros. O curral é um dos maiores absurdos por qual passam os usuários, além de tornar ainda mais ineficiente o transporte público.

Isto porque, por ser um corredor estreito, e por a cidade não ter um sistema de bilhetagem eletrônica eficiente, o tempo que os passageiros levam para atravessá-lo é relativamente alto. Em alguns pontos de ônibus, nos quais há uma grande entrada de pessoas no mesmo veículo, as paradas ultrapassam 10 minutos e, em algumas vias de faixa única, todo o trânsito é obstruído, inclusive para os ônibus que vêm logo atrás.

É claro que o curral não consegue evitar completamente que alguns usuários deixem de pagar a tarifa. Há sempre os insubordinados, mesmo que seja pela lógica da resistência individual e ativa (ler o artigo de Dokonal sobre as formas de resistência que os usuários do sistema de transportem encontram para combater a opressão cotidiana, “A economia das lutas do transporte”). Uma das práticas mais recorrentes é a traseiragem e a respeito dela vale a pena ler esta passagem do artigo de Manolo sobre a Revolta do Buzu de 2003 em Salvador (“Teses sobre a Revolta do Buzu – 1ª Parte”):

A traseiragem é uma antiga e interessantíssima prática dos usuários de ônibus de Salvador, especialmente de estudantes e moradores de periferia. Ela é facilitada pela disposição da roleta no interior do veículo, instalada bem próximo à porta traseira, à qual se liga por um estreito corredor de barras de ferro chamado de traseira ou – com bastante propriedade – de curral. Nas primeiras horas da manhã, quando todos saem para o trabalho, o ônibus lota, e o curral fica cheio, evitando que outras pessoas entrem no ônibus e causando risco aos passageiros que ali ficam. Como às vezes é mesmo impossível nesta situação passar da traseira para a frente do carro, muita gente fica por ali mesmo e desce pelo fundo quando chega seu ponto – sem pagar a passagem. A prática não se restringe a horários de pico; é possível encontrar traseiristas nos ônibus em qualquer horário, a depender do trajeto do veículo. São estudantes, baleiros, mendigos, bêbados, meninos de rua, desempregados, e mesmo trabalhadores. Pode-se dizer que entre as empresas de ônibus e os grupos inorganizados de traseiristas existe uma espécie de conflito particular, pois nestes horários de menor fluxo a traseiragem depende de força física para abrir a porta traseira. Daí os empresários terem instalado macacos hidráulicos que segurassem as portas fechadas; eles apareciam quebrados em poucos meses. Trocaram a borracha que une as duas metades da porta traseira por aço puro, mas os traseiristas passaram a andar com tocos de madeira, pedaços serrados de cabo de vassoura, que colocavam entre as bandas da porta como garantia do espaço para as mãos no vão aberto pelo toco. Trata-se da mais antiga e sistemática crítica prática dos usuários de ônibus de Salvador contra o preço das passagens, constantemente vigiada pelos fiscais da empresa colocados ao longo do trajeto dos veículos, que pode acarretar todo tipo de punições para os cobradores e motoristas que a permitem – mas alguns deles reconhecem a dificuldade da situação econômica da população e colaboram com os traseiristas até onde podem em determinados trechos da cidade.

O estranho é que a minuta do Edital, ao definir os requisitos mínimos dos ônibus (sub-anexo 1.3) estabelece que os ônibus devem “contar com leiaute interno e externo conforme as definições da Concedente, considerando o embarque dos passageiros pela porta dianteira e o desembarque pela porta traseira e ou central, sem direcionador de fluxo, de acordo com as normas técnicas da ABNT;”, ou seja, que se deve inverter o fluxo interno de entrada e saída de passageiros e, com isto, eliminar o curral. Como não se escreve nada mais a respeito, e nem se toca no problema do curral, parece ser tratar somente de um erro de “copiar e colar” de outros editais, pois mudanças mais radicais neste sentido precisariam ser feitas com maiores especificações. Ou então, comemoremos uma vitória sem ter pelejado. E desta forma, as esperanças de que esta tecnologia de opressão não se perpetue, evitando que em Salvador as manifestações tenham o seu programa reduzido para “por uma vida sem curral”, são mínimas.

Já para os rodoviários há a previsão de atender uma antiga reivindicação da categoria, que é a de “construir, manter e operar equipamentos urbanos denominados ‘Módulos de Conforto’, que são estruturas em pontos finais de linhas, destinadas ao apoio, ao controle operacional, à fiscalização pelo Poder Concedente e ao suporte de facilidades para a tripulação, como sanitários, sala de descanso (…). Na impossibilidade da construção de Módulos de Conforto, obrigam-se a prover, manter e operar instalações similares que atendam aos mesmos objetivos.” Há também, já na versão definitiva, a exigência de que no mínimo 90% dos atuais trabalhadores sejam reaproveitados, o que deve ser o motivo de maior comemoração dos rodoviários.

Calçada04Por outro lado, conforme o relatório da audiência realizada no dia 09 de dezembro de 2013 a convite do Ministério Público, os representantes da prefeitura argumentaram, ao serem questionados sobre as especificações no Edital a respeito das condições de trabalho, que “quanto ao ambiente de trabalho dos motoristas, será exigido o quanto disposto nas NBR’s, quanto às condições dos ônibus (motores dianteiros, câmbios automáticos, direção hidráulica) tais exigências (…) não estão previstas, e elevariam muito os custos dos ônibus, já que um ônibus com estas características custaria 800 mil, e tal previsão não está inclusa na equação financeira do contrato”.

Ou seja, enquanto os avanços tecnológicos são amplamente usados para monitorar os trabalhadores e tirar deles maior produtividade, a exemplo do uso das câmeras de vigilância e de outras formas de controle, as ferramentas que objetivam melhorar as condições de trabalho (como a adoção de ônibus mais modernos) ou a vida dos usuários (como sistemas de bilhetagem mais eficientes e confortáveis) são categoricamente descartadas. O Edital, para não deixar dúvidas a respeito de quem foi o autor da obra, apesar de ter sido assinada pela Prefeitura, ressalta que “com o monitoramento, a tendência é que os funcionários sejam mais atentos na execução de suas atividades, evitando falhas e negligências” (sub-anexo 1.3). E desta forma, nenhuma outra linha a respeito das históricas reivindicações dos rodoviários é riscada.

VIII

No Edital, os usuários do sistema de transporte público de Salvador são tratados às vezes como produtos, às vezes como consumidores, mas nunca como sujeitos ativos ou como real proprietários dos serviços públicos. Há nos anexos uma quantidade muito restrita de direitos a serem garantidos. Entretanto, o usuário não é parte formal do contrato a ser firmado entre a Prefeitura e as empresas de ônibus. Parte-se do pressuposto que a Prefeitura tem legitimidade para representar toda coletividade, por mais que haja algumas reivindicações exigindo o contrário e leis que determinam a constituição de espaços abertos para a consulta pública. E este é o limite das lutas pela via institucional.

Por outro lado, independente das leis e dos espaços institucionais constituídos, o fato é que o Edital quase não encontrou resistência, mesmo tendo sido imposto na ressaca das mobilizações de junho de 2013 e, como defendo, por causa delas. Mesmo a Prefeitura sendo gerida por um partido de direita, o Democratas, e tendo o Partido dos Trabalhadores um forte poder de mobilização na cidade, nem que seja por ter cooptado os sindicatos e os movimentos sociais, além da gestão do próprio governo do Estado, os questionamentos só começaram a acontecer quando a disputa eleitoral foi deflagrada.

A disputa pela posse do Conselho da Cidade, promessa feita pelo prefeito já nos primeiros meses do seu mandato, cegou boa parte dos movimentos e organizações que poderiam fazer oposição. E se somarmos a este caldo a multiplicidade de pautas pelas quais nos dedicamos neste momento (luta contra o extermínio da juventude negra, Linha Viva, gentrificação no Centro Antigo, revisão do IPTU e imposição de novas taxas, ausência de ciclovias, etc.), a fragmentação das lutas joga a pá de cal no que poderia ser o esboço de resistência.

Ressalto neste artigo o menosprezo com que os gestores públicos trataram a participação popular, mas bem é verdade que, se de fato tivéssemos força e interesse para reverter a situação, não precisaria apontar para este detalhe. Temos agora 25 anos para nos prepararmos para a próxima audiência pública. Ou, melhor, podemos nos organizar para impor a qualquer tempo o nosso modelo de transporte público.

calçada05

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