As lutas do transporte coletivo obedecem ao mesmo modelo econômico das lutas realizadas no processo de trabalho. Por Dokonal

A generalidade das análises a respeito das lutas do transporte coletivo acaba por deixar de lado a questão econômica dessas lutas. Isso quando não desconsidera completamente seus efeitos econômicos, tratando o assunto em termos estritamente morais. Ao adotar uma perspectiva que considera esse tipo de luta exterior à esfera econômica, contribui-se para isolá-la do restante das lutas sociais. Pretendo mostrar que as lutas deflagradas em torno da questão do transporte obedecem ao mesmo modelo econômico daquelas realizadas no processo de trabalho.

Ganhar mais, trabalhar menos

Do ponto de vista do trabalhador, o tempo perdido no deslocamento para o trabalho é já um tempo de trabalho. Ele não perderia esse tempo se não fosse trabalhar. Além do mais, esse tempo perdido implica desgaste físico e mental: por um lado, quem passa horas num ônibus lotado para chegar ao trabalho, quando chega, está com uma produtividade muito diminuída; por outro lado, o tempo para retornar para casa resulta em menor tempo de descanso até à próxima jornada de trabalho. Diante desse quadro os trabalhadores geralmente recorrem a ações que buscam amenizar o desgaste e a sensação de tempo perdido: podem dormir ou ouvir música; ou então aproveitar o tempo com leituras ou conversando com os demais. Podem também, para impedir que os ônibus ou os vagões dos metrôs fiquem tal qual latas de sardinha, organizar-se de forma desordenada, ficando parados em vez de espremerem-se uns aos outros. Todas essas ações visam reduzir o desgaste com o tempo de deslocamento. Ora, essas práticas inserem-se no mesmo quadro das lutas por redução da jornada de trabalho.

A não ser quando se converte em atraso, o tempo perdido pelo trabalhador nos deslocamentos não é contabilizado pelas empresas; é mais um tempo de trabalho que não lhe é pago. O trabalhador acaba por pagar do próprio bolso os custos de deslocamento ao trabalho, seja através da tarifa do transporte coletivo, seja por meio de veículo próprio. Sendo a tarifa do transporte coletivo componente do custo de vida dos trabalhadores que utilizam essa modalidade de transporte, a redução da tarifa tem para eles o mesmo efeito prático de um aumento salarial. Ao fim e ao cabo, para esses trabalhadores a luta por redução da tarifa é uma luta por aumento do consumo de bens e serviços. Ademais, uma redução relativa do preço da tarifa pode provocar um aumento da demanda por transporte coletivo. E essa elevação na demanda tende a diminuir o trânsito nas vias de acesso, reduzindo também a jornada de trabalho de cada trabalhador, usuário ou não de transporte coletivo. De qualquer forma, as lutas por redução da tarifa inserem-se no quadro geral das lutas por aumento salarial.

Há uma especificidade prática das lutas do transporte que as diferencia das lutas no processo de trabalho. Estas são geralmente deflagradas em uma unidade particular de produção ou em um setor específico. E a vitória de uma luta específica pode suscitar lutas em outras unidades ou setores, ou ainda provocar uma antecipação às reivindicações por parte dos patrões para evitar que as lutas sequer sejam deflagradas. Mas essas lutas costumam ter um início localizado e limitado. As lutas do transporte, pelo contrário, não ocorrem em uma unidade particular de produção, mas num tipo de infraestrutura componente das condições gerais de produção que dá suporte a cada unidade particular: ruas, avenidas, terminais e viadutos das cidades.

As paralisações do trânsito, os fechamentos de terminais têm um potencial de difusão muito maior do que uma greve ou um piquete em uma unidade particular. Uma luta que incide sobre uma condição geral de produção acaba por afetar também aquelas unidades particulares que lhe estão relacionadas. Os efeitos de uma luta vitoriosa ou da antecipação das reivindicações dessa luta são imediatamente absorvidos por uma generalidade de trabalhadores. Uma redução de tarifa eleva o poder de consumo da totalidade dos usuários daquele sistema de transporte coletivo. Uma melhoria do sistema de transporte reduz a jornada de trabalho de todos aqueles que se deslocam ao trabalho. É um tipo de luta que desencadeia efeitos imediatos.

Assimilação dos conflitos

pb-120607-saopaulo-9p.photoblog900Em resposta às lutas dos trabalhadores, os capitalistas podem reprimi-las ou assimilá-las. A repressão é sempre uma possibilidade, mas nunca é uma estratégia eficaz em conflitos prolongados, pois o custo dessa repressão tende a elevar-se ao longo do tempo. Mediante a assimilação dos conflitos e o encerramento provisório das tensões, os capitalistas podem prosseguir com a exploração. No capitalismo, entretanto, a cedência às pressões nunca consiste apenas em dar os anéis para não se perder os dedos. Os anéis são dados, mas já reforjados em novos grilhões. Quer dizer, a assimilação ocorre de maneira a reproduzir o quadro de disciplina social capitalista. Através do aumento da produtividade e da difusão dessa produtividade, podem os capitalistas responder àquelas reivindicações (trabalhar menos, ganhar mais) e ainda aumentar a exploração. Os mecanismos de exploração decorrentes dessas duas formas gerais de resposta às lutas são chamados de, respectivamente, mais-valia absoluta e mais-valia relativa.

As respostas às lutas do transporte coletivo decorrem igualmente dos mecanismos da mais-valia.

Uma luta contra o aumento da tarifa do transporte, por exemplo, pode ter um início tranquilo, sob o olhar distante e atento das forças repressivas. Mas assim que a luta começar a trazer prejuízos aos capitalistas, a repressão terá início. E prosseguirá até a luta ser extinta ou até o custo da repressão dessa luta (já acrescido dos prejuízos ocasionados) [1] ficar maior do que o custo decorrente do não aumento da tarifa. Nesse caso, as negociações, os acordos, as reuniões a portas fechadas passam a dominar o cenário e reivindicações tendem a ser atendidas.

Os aumentos sucessivos das tarifas, o sucateamento e a superlotação dos ônibus e metrôs revelam a incapacidade dos capitalistas do transporte coletivo de incorporar os ganhos de produtividade no setor onde atuam. Essa incompetência é refletida na truculência com que geralmente reprimem as lutas do transporte. E como esses empresários normalmente têm contratos de longo prazo com as prefeituras, o ciclo vicioso e estagnante da mais-valia absoluta tende a se prolongar [2].

Ao tornar mais confortável o transporte coletivo, reduzindo o desgaste decorrente dos deslocamentos, os capitalistas, ao mesmo tempo que atendem às reivindicações dos trabalhadores, também melhoram a produtividade de quem se desloca. Não é por acaso que os transportes coletivos mais confortáveis se localizem nas áreas onde os trabalhadores são mais qualificados; há uma relação direta entre mais-valia relativa e conforto dos transportes coletivos. No caso brasileiro, em que a mais-valia absoluta prevalece no transporte coletivo, os trabalhadores mais qualificados têm resolvido parte do problema com a aquisição de veículos próprios.

Formas de organização das lutas

A radicalidade de uma luta não é determinada pelo seu conteúdo programático, mas pela forma como ela é organizada. Reivindicações similares podem surgir de formas organizativas muito diferentes. A tarifa zero implementada pela Prefeitura de Agudos-SP e a tarifa zero proposta pelo Movimento Passe Livre (MPL) têm um programa muito parecido. O que distingue uma da outra senão a forma como se organizam essas reivindicações?

Para analisar as lutas em seu aspecto organizativo vou recorrer a um modelo de formas de organização das lutas, delimitado por um plano constituído por dois eixos: o individual-coletivo e o passivo-ativo. O primeiro eixo expressa o caráter cooperativo de uma luta; o segundo o grau de violação das normas da disciplina social capitalista [3]. Desse modo, a forma de organização de cada luta resulta da combinação particular desses dois eixos. Temos assim as lutas individuais e passivas, as individuais e ativas, as coletivas e passivas e as coletivas e ativas.

Cochilos, uso de celulares, leitura de livros e jornais/revistas são alguns dos muitos exemplos de lutas individuais e passivas no transporte. São lutas silenciosas, que se inserem no quadro disciplinar instituído e requerem apenas a passividade dos indivíduos para se desenrolarem. A mais característica das lutas individuais e passivas é o uso de fones de ouvido para escutar música durante os deslocamentos diários.

As lutas individuais e ativas rompem claramente a disciplina social vigente, mas num quadro de isolamento da luta. Pular catraca, praticar a traseiragem [4], o surf de trem, negociar com o cobrador para pagar mais barato e não passar pela catraca são algumas das possibilidades nessa modalidade de luta.

Quando as lutas se efetivam em decorrência da colaboração de várias pessoas, mas sem violar o quadro da disciplina social, temos as lutas coletivas e passivas. São as lutas que ocorrem no nível dos aparelhos burocráticos, onde a iniciativa da luta cabe a um grupo dirigente. Diante da passividade da base, a luta passa a organizar-se na forma de pressão institucional e o grupo de representantes assume na prática a função de lobby, convertendo-se em novo agente da disciplina social. O texto «Buro-ácrata», publicado há pouco tempo neste site, é uma ótima análise dos efeitos resultantes desse tipo de luta.

Quando, pelo contrário, os conflitos decorrem da colaboração de várias pessoas num quadro de ruptura com a disciplina social, são as lutas coletivas e ativas que têm vez. Os catracaços, as greves de motoristas e cobradores com catraca livre (ou a greve da mala em Portugal), os bloqueios de terminais e vias, os acorrentamentos nos órgãos públicos para exigir providências são alguns dos exemplos desse tipo de luta.

As lutas não são estáticas e no seu desenrolar podem converter-se em lutas de outro tipo. Uma luta coletiva e ativa pode transformar-se numa coletiva e passiva: é o que normalmente sucede às vanguardas de movimentos que se burocratizam no refluxo de lutas. Mas o contrário também pode ocorrer. Uma manifestação organizada por uma direção, com roteiro previamente definido e cuidadosamente anunciado às forças policiais pode deixar de o ser se a base resolver sair de sua passividade. O mesmo raciocínio pode ser usado na conversão de uma luta individual numa coletiva ou na degeneração de uma coletiva para uma individual. Aliás, as histórias de lutas do transporte poderiam ser contadas cada uma aplicando esse modelo na análise da sucessão das formas de organização dessas lutas.

Novamente a assimilação

Não é somente a reivindicação de uma luta que é reprimida ou assimilada. A maneira pela qual é organizada uma dada luta acaba por determinar também as formas possíveis da sua repressão e da sua assimilação no quadro de disciplina social capitalista. As lutas passivas, por não romperem de antemão esse quadro disciplinar, estão sempre condenadas à pronta assimilação.

Um exemplo de assimilação de uma luta individual e passiva que me vem à cabeça são as bibliotecas Embarque na Leitura, que existem em algumas estações do metrô de São Paulo e possibilitam aos usuários melhorarem suas qualificações durante o tempo de deslocamento.

O processo de burocratização caracteriza a assimilação das lutas coletivas e passivas. Conhecendo os ânimos populares de muito perto, os grupos dirigentes desse tipo de luta passam eles próprios a contribuir com o reforço do controle social. Durante uma negociação com o poder público, por exemplo, esses grupos podem antecipar a reação da população e evitar que medidas impopulares sejam implementadas. Não é difícil imaginar que alguém saído desse tipo de vanguarda já burocratizada acabe, num futuro próximo, convertendo-se num burocrata especialista em transportes de alguma prefeitura.

Embora sejam sempre caracterizadas pela ruptura de disciplina, as lutas individuais e ativas, por ocorrerem de maneira isolada, tendem a reforçar o quadro de controle disciplinar. Para inibir que os usuários pulem as catracas, por exemplo, as empresas se utilizam de câmeras de vigilância, seguranças privados e até mesmo implementam catracas que dificultam a atividade do pulo.

As respostas às lutas coletivas e ativas também tendem a reforçar esse quadro. Mas o reforço é já de outro tipo, muito mais geral. A implementação de um sistema de integração dos transportes que permite que os usuários não se utilizem dos terminais, agilizando assim o seu deslocamento, igualmente diminui a possibilidade do uso dos terminais enquanto espaço estratégico de deflagração das lutas. Diferentemente da assimilação do conflito individual e ativo, a assimilação do conflito coletivo e ativo produz alterações do próprio funcionamento do sistema de transportes.

O potencial das lutas coletivas e ativas

art14581wideaSão as formas coletivas e ativas de conflito as únicas com potencial de construir algo novo. E não porque a sua assimilação acaba por reformular o sistema em si. O raciocínio é inverso. É porque têm esse potencial que essas lutas, quando assimiladas, transformam a organização social. Na quebra coletiva da disciplina, no exato momento da ruptura do tecido social, os trabalhadores tomam ciência de que possuem o controle desse tecido e de que a possibilidade de criação de algo novo é palpável.

Os exemplos não são poucos, apesar de serem sempre efêmeros. Durante as manifestações pela Tarifa Zero em Florianópolis que sucederam às Jornadas de Junho de 2013 houve uma experiência desse tipo. No catracaço organizado dia 4 de julho, parte dos trabalhadores decidiu, à revelia dos fiscais do terminal, reorganizar também o cronograma de partida dos ônibus, modificando os horários de saída para adequá-los às demandas imediatas de quem estava a experimentar a tarifa zero na prática. Foi um momento breve, mas exemplar, das possibilidades criativas de uma luta coletiva e ativa.

As lutas coletivas e ativas no transporte têm um outro potencial. Por ocorrer justamente nos espaços de deslocamento de trabalhadores, a ruptura do quadro disciplinar nesses espaços pode estimular também a quebra da disciplina nos locais de trabalho e de estudo. A potencialidade desse tipo de “contaminação” dos conflitos permite vislumbrar a possibilidade de uma unificação de lutas futuras. É algo que talvez estejamos prestes a ver.

As lutas do transporte são um tipo de reivindicação geral da classe trabalhadora e as recentes mobilizações conseguiram envolver uma parcela dos trabalhadores que está fora dos sindicatos e das grandes unidades produtivas, esses a que a mídia chama de “a nova classe C”. Não somente isso. As manifestações também tiveram êxito em unir os setores mais qualificados e os menos qualificados da classe trabalhadora. Foram às ruas tanto aqueles submetidos à mais-valia relativa quanto aqueles sujeitos à mais-valia absoluta. Numa época em que a fragmentação dos trabalhadores tornou-se não apenas regra, mas também o sonho de boa parte da esquerda, é animador o fato de que algumas lutas tenham tentado superar na prática essas divisões.

Notas

[1] Considero também os custos políticos incluído nesse custo.

[2] Entretanto as Jornadas de Junho podem ter inaugurado uma inflexão nesse processo.

[3] Esse modelo foi formulado por João Bernardo em dois de seus livros, Economia dos conflitos sociais e Estado: a silenciosa multiplicação do poder.

[4] Traseiragem é uma prática tradicional dos usuários de ônibus de Salvador para não pagarem a passagem. Aqui há uma descrição detalhada da coisa.

Os leitores portugueses que não percebam certos termos usados no Brasil e os leitores brasileiros que não entendam outros termos usados em Portugal encontrarão aqui um glossário de gíria e de expressões idiomáticas.

12 COMENTÁRIOS

  1. Como venho comentando, muito se fala no tempo de deslocamento do trabalhador entre sua casa e local de trabalho, que seria vencido mais eficientemente com um transporte coletivo rápido e de qualidade. E não há dúvidas quanto à importância da questão e da emergência de sua resolução. Mas há de se pensar não só no deslocamento no espaço, e sim também na base deste, o espaço em si. O tecido urbano não é estanque, encontra-se em progressiva expansão e o transporte, bem como os serviços, os equipamentos, a infraestrutura, enfrentam a batalha ininterrupta de alcançá-lo. A urbanização capitalista é irracional, mesmo com os esforços do planejamento urbano e dos planos de mobilidade para racionalizá-la. A tendência à periferização (divisão espacial do trabalho) cada vez mais dificulta e onera as tentativas de levar o transporte público até o trabalhador, que está em constante movimento para áreas cada vez mais periféricas – quando não recorre às favelas e/ou ocupações “ilegais” das áreas mais centrais, sob o risco de uma reintegração de posse violenta amparada pelo aparelho repressor do Estado.

    O espaço não é apenas um cenário onde se estabelecem os conflitos e contradições do capitalismo, e sim uma extensão do processo produtivo capitalista. É a base para todas as operações produtivas, é um meio de produção e, ao mesmo tempo, devido a sua condição indispensável, é uma mercadoria, possui valor de troca. Esta condição do espaço, somada à propriedade privada deste sem o devido controle social, confere poderes monopolistas exclusivos sobre porções espaciais. E tendo o interesse privado poderes totais sobre a superfície onde se dão as operações humanas, permite-se que o mesmo tenha o poder de especular sobre a superfície e afetar todas essas operações.
    Por isso, é preciso ir mais a fundo. Há de se pensar também na não-necessidade de deslocamento ou em deslocamento menores. Como? Medidas mitigadoras já feitas em outros países capitalistas de centro: controle da especulação imobiliária nas áreas centrais através da aplicação de tetos nos preços de aluguéis, tetos nos preços de terrenos e imóveis, associados à uma exigência de porcentagem miníma para a habitação de interesse social em todos os novos empreendimentos imobiliários nas áreas centrais – a Caixa Econômica Federal é responsável pelo financiamento (com o FGTS do trabalhador) de mais de 60% de todos os empreendimentos imobiliários no Brasil (inclusive os de alto padrão), vejam o controle que o Estado pode ter sobre o capital imobiliário. E as medidas de mitigação vão além. Exemplos não nos faltam.
    Concluindo, o Direito à Cidade, expressão famosa nas lutas atuais, tirada de um livro de Henri Lefebvre, ultrapassa o efetivo deslocamento do trabalhador até a cidade e vai até o direito objetivo de usufruir das porções espaciais melhores servidas (às suas custas). Por isso a importância da associação da luta do transporte público com a luta da moradia. E continuar indo a fundo, até a raiz, com a (essencial, na minha opinião) perspectiva da derrubada das relações capitalistas de produção.

  2. Parabéns pelo texto Dokonal!
    Conheço pessoas que pegam ônibus às 07:00 para chegar no trabalho às 09:00 e sei que há realidades bem piores… É tempo de trabalho apropriado sem dar um equivalente em contrapartida.

    O debate sobre essa questão, para ficar mais completo, deve ser articulado com a economia regional e urbana, ou seja, por que as unidades de produção/serviço são tão concentradas nos centros municipais?; por que os trabalhadores moram tão longe de seus postos de trabalho?

    Mobilidade e urbanização são temas transversais que atingem a todos os grupos e categorias de trabalhadores. Fica a sugestão para seu próximo texto…

    Abraço!

  3. De Caminho para Wigan Pier, de George Orwell

    “O que quero destacar é o seguinte: falamos desse negócio terrível de ter que andar abaixado no trajeto de ida e volta, o que para uma pessoa normal já é uma tarefa duríssima, e, no entanto ele não é considerado parte do trabalho do mineiro, em absoluto; é apenas um extra, tal como a viagem diária de metrô de um funcionário da City de Londres. O mineiro vai e vem dessa maneira, e entre a ida e a volta há sete horas e meia de trabalho bruto, feroz. Nunca percorri muito mais que um quilômetro e meio até chegar ao veio de carvão, mas muitas vezes são quase cinco quilômetros, e nesse caso eu e a maioria das pessoas que não são mineiros de carvão jamais conseguiríamos chegar até lá. Quando se pensa em uma mina de carvão, se pensa na profundidade, no calor, na escuridão, em figuras enegrecidas escavando a parede da rocha com suas picaretas, mas não se pensa, necessariamente, nesses quilômetros de trajeto que é preciso percorrer agachado. Há também a questão do tempo. O turno de trabalho de um mineiro, de sete horas e meia, não parece muito longo, mas é preciso acrescentar pelo menos uma hora para o trajeto subterrâneo ­– com freqüência duas horas e às vezes até três. É claro que o trajeto não é, tecnicamente, trabalho, e o mineiro não é pago pelo tempo assim gasto; mas é como se fosse um trabalho.”

  4. A Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan) acabou de publicar um estudo intitulado “Os custos da (i)mobilidade nas regiões metropolitanas do Rio de Janeiro e São Paulo”, disponível aqui http://migre.me/kG5bb e comentado aqui http://www.firjan.org.br/data/pages/2C908CEC475A6EB101477D37239150E6.htm.

    O custo de R$98,4 bi ao ano para as duas regiões metropolitanas foi calculado segundo a metodologia do custo de oportunidade, isto é, considerando-se aquilo que é renunciado com uma dada escolha. O custo de oportunidade é sempre um produto potencial. No caso em questão, as pessoas que estão presas no trânsito poderiam utilizar esse tempo para trabalhar ou consumir.

    Escrevi na segunda parte deste artigo que o mecanismo da mais-valia relativa consistia em agravar a exploração mediante a assimilação dos conflitos. Entretanto a execução desse tipo de estratégia demanda investimento e planejamento consideráveis. Foi por isso que mencionei também a incompetência daqueles capitalistas que não conseguem sair da mais-valia absoluta.

    O custo de oportunidade é o cálculo que os capitalistas fazem para analisar a viabilidade da execução desse tipo de estratégia (a mais-valia relativa).

  5. Gostaria de propor, amigavelmente, algumas reflexões que considero pertinentes.

    O capitalismo cria dificuldades para vender facilidades…

    O capital não é irracional. Mesmo o mais cruel estado de miséria está inserido dentro da racionalidade capitalista. A periferização urbana ou precarização das relações de trabalho são consequências inexoráveis do desenvolvimento capitalista. Os ganhos dos trabalhadores muitas vezes são efêmeros ou ilusórios. Se a jornada formal de trabalho hoje é menor que a do início da revolução industrial, o tempo que se demanda para a preparação da vasta mão-de-obra para o “mercado de trabalho” é infinitamente maior. O sistema capitalista impõe-se não só sobre o tempo do trabalho, mas, também, sobre o tempo do não trabalho. Quanto mais se desenvolve o capitalismo, mais necessidades técnicas se impõem, porém sobre um tempo que continua sendo linear e que, certamente, será subtraído do lado mais frágil da luta de classes.

    Para cada ganho dos trabalhadores, há uma contrapartida aos capitalistas. Por exemplo, diminui-se a jornada de trabalho aumentando o ritmo da produção. O capitalista nunca arca, e nunca arcará com os custos da produção; é sempre o produtor, o trabalhador que arca com esses custos. Assim, é uma grande mentira quando os capitalistas dizem que pagam impostos, porque eles são embutidos no preço da mercadoria, que mais cedo ou mais tarde será pago pelo trabalhador. Da mesma forma os custos sociais não são divididos por toda a sociedade, mas apenas àqueles que produzem e não podem repassar estes custos a outrem, de novo os trabalhadores. Portanto seria difícil entender a redução ou mesmo a extinção da tarifa enquanto acréscimo salarial. O trabalhador deixará de arcar com a tarifa e arcará de alguma outra forma com os custos desse “ganho”.

    A tentativa de ruptura a este estado de coisas existe e é necessária. Mas devemos prestar atenção em posições ou ações que ao invés de aproximar nós, os trabalhadores, de nosso ideal de emancipação de classe, nos aprisionam ainda mais aos grilhões do capital. Aumentar a produtividade é condição sine qua non para a reprodução do capitalismo e, talvez, certas pautas e reinvidicações estejam justamente colaborando, ou pelo menos corroborando, neste sentido.
    Existem, é fato, questões de ordem imediata e de ordem mediata. As questões de ordem imediata, como o próprio termo indica, exigem soluções emergenciais, mas devemos ter claro que dependendo da solução, o futuro fica comprometido. É bom termos em mente, que todo o sistema é preparado para enfraquecer o trabalhador e fortalecer o capital. As agruras do dia a dia servem para reproduzir o capital e também para minar as forças do trabalhador, que num mundo extramente individualista e competitivo, luta com unhas e dentes para ganhar o pão de cada dia, por isso, muitas vezes ele vê seu trabalho como “sagrado”. Nem devemos nos esquecer que pode ser que numa “sociedade do espetáculo” nem sempre o que se ouve ou que se lê é para romper com o sistema, especialmente em tempos do “Templo de Salomão” ou “funk ostentação”…

    Abraços fraternais,

    Beto.

  6. Beto,

    Temos visões bastante diferentes sobre o funcionamento do capitalismo. Não consigo ver, por exemplo, a periferização urbana ou a precarização das relações de trabalho enquanto consequências inexoráveis do desenvolvimento capitalista. Elas foram resultado de uma dada configuração das relações sociais num certo momento. Mas isso não é inexorável. Inexorável é uma palavra muito forte para ser usada na qualificação de um modo de produção cuja regra geral é a instabilidade social.

    Tampouco vejo o capitalismo como um sistema linear de soma zero, como você parece indicar em algumas passagens do comentário. Nem a redução da jornada de trabalho nem o aumento salarial são simples trade-offs que se anulam reciprocamente. A razão para isso é a própria capacidade de criação de valor que os trabalhadores têm. Os regimes de exploração caracterizados pelo predomínio da mais-valia relativa, aliás, são a materialização da não-linearidade do capitalismo.

    A respeito de redução de tarifa e do acréscimo salarial, parece-me que você está confundindo o fato de os trabalhadores serem os produtores da riqueza social com a remuneração que eles recebem para produzir essa riqueza. Ora, o salário determina a capacidade de consumo de bens e serviços dos trabalhadores. Um acréscimo no salário ou uma redução nos preços de bens e serviços faz aumentar essa capacidade de consumo. E se esse aumento vir a ser coberto por meio de um acréscimo geral de produtividade, então a coisa pode prosseguir no regime de mais-valia relativa citado no parágrafo anterior.

  7. Caro Dokonal,

    Creio que embora o capitalismo seja em suas formas uma “mutatis mutandi”, o que lhe revela um cárater, de certa forma, revolucionário, sua essência será sempre a mesma, por isso a expressão “inexorável”. Já com relação à linearidade tentei expressar a condição temporal oposta ao tempo cíclico que caraterizava os sistemas de produção anteriores, ou seja, sistemas baseados e dependentes dos ritmos e condições naturais. No sistema capitalista a produção ocorre de dia ou de noite, no inverno ou no verão, faça frio ou calor e assim por diante, portanto é linear neste sentido.

    Minha preocupação se encontra no sentido do alerta que Karl Marx fazia ao dizer que “todo modo de produção deve ser também um modo de reprodução”. Deste modo, aquilo que, premidos pela necessidade (muitas delas cirurgicamente introduzidas no conjunto dos trabalhadores), consideramos socialmente um ganho ou um avanço pode impor consequências nefastas ao trabalhador. Por isso o mesmo Marx dizia “as causas das evoluções sociais encontram-se na estrutura ecônomica, no modo de produção e da troca, que preside a distribuição das riquezas e, por conseguinte, a formação das classes e a hierarquia. Quando essas evoluções se efetuam, não é porque obedeçam a um ideal de justiça, mas sim porque se ajustam à ordem econômica do momento” (também o injusto obedece à ordem econômica). Não há soma zero! A soma é constante sempre em favor do capital. Quem fica no “zero a zero” não é o capitalista, mas o trabalhador, isto quando o placar não lhe é negativo e de goleada!

    Em relação à periferização, Henri Léfèvbre chamava a atenção para um estratagema sutil e perigoso de classe, no caso a estratégia da classe dominante: “Não se propunham desmoralizar a classe operária mas sim, pelo contrário, moralizá-la. (…) Assim, imaginaram com o habitat, à ascensão à propriedade” (Henri Léfèvbre – O direito à cidade – pág. 16). É neste sentido que entendo que as pautas dos trabalhadores devem ater a atenção para justamente não reforçar as amarras que lhe prendem ao “desígnios” do capital e, insistindo um pouco mais sobre a questão aparentemente caótica que os aspectos urbanos em seus mais variados setores (moradia, transporte, educação, saúde, etc) se apresentam: “A desordem suburbana oculta uma ordem: (…). Esta oposição tende a constituir um sistema de significações, ainda urbano mesmo na desurbanização (Henri Léfèvbre – O direito à cidade – pág. 20).

    Penso ser importante, para compreender um pouco mais como a questão do “urbano” e, consequentemente, da periferização, relembrar Debord: “O urbanismo é a concretização moderna da tarefa ininterrupta que salvaguarda o poder de classe: a manutenção da atomização dos trabalhadores que as condições urbanas de produção tinham perigosamente reunido (…) «Com os meios de comunicação de massa a grande distância, o isolamento da população verificou-se ser um meio de controlo muito mais eficaz» (…) Mas o movimento geral do isolamento, que é a realidade do urbanismo, deve também conter uma reintegração controlada dos trabalhadores, segundo as necessidades planificáveis da produção e do consumo. A integração no sistema deve apoderar-se dos indivíduos isolados em conjunto: as fábricas como as casas da cultura, as aldeias de férias como os «grandes conjuntos habitacionais», são especialmente organizados para os fins desta pseudocolectividade que acompanha também o indivíduo isolado na célula familiar (…). (Guy Debourd- A sociedade do Espetáculo – Tese 172).

    Na minha opinião, talvez, o aspecto mais preocupante seja a questão fetichista. Da mesma forma que existem movimentos sociais que podem vir a sectarizar a luta de classe, a questão do consumo posta nos molde de uma economia capitalista, nos afasta da nossa emancipação.Por exemplo, se o trabalhador de trinta anos atrás não tinha condições econômicas para comprar uma TV e hoje tem, não significa que ele ficou mais rico. Significa apenas que seu potencial de consumo hoje se enquadra dentro das necessidades do capital de hoje, podendo ele estar inclusive proporcionalmente mais pobre. Da mesma forma, ter uma jornada reduzida de trabalho não significa rabalhar menos e, talvez, nem ganhar mais, como bem nos ensina o João Bernardo: “A redução formal do horário de trabalho tem correspondido a um aumento real do tempo de trabalho despendido durante esse período. Mas por que razão ocorre este processo, aparentemente contraditório, de redução dos limites e de aumento em profundidade? O mecanismo motor são as lutas sociais. A classe trabalhadora impôs sucessivas reduções da jornada de trabalho, que os capitalistas de cada vez recuperaram, aumentando a complexidade das tarefas executadas no interior do novo horário.
    Este processo adquire, por sua vez, uma dinâmica própria, na medida em que o aumento das qualificações e a capacidade de laborar com maior intensidade exigem uma formação cada vez mais demorada. Para que a qualificação e a intensidade do trabalho possam aumentar, têm de se multiplicar também as horas dedicadas à instrução e à preparação da força de trabalho. Por isso, o acréscimo do período passado pelo trabalhador fora da empresa, em vez de representar qualquer redução do peso do trabalho na sociedade, decorre directamente das próprias necessidades do processo de trabalho” (João Bernardo – Transnacionalização do capital e fragmentação dos trabalhadores – Pág 64)

    Sem querer me alongar mais do que já me alonguei, mas ante o exposto é por isso que penso que, por exemplo, a redução de jornada pode não surtitr os efeitos almejados, quer porque os custos deste benefícios serão rateados, na realidade entre os trabalhadores através de outros impostos ou taxas, ou porque o tempo livre conseguido pode vir a se tornar um tempo a mais para o capital, quer produzindo mais (e enriquecendo ainda mais o capitalista), quer se tornando mais qualificado não para si, mais para o “mercado.”

    Obrigado pela atenção. Valeu!

  8. intervenção breve:
    Beto, considerando a diminuição de horas sem diminuição do salário, penso que fica claro que a luta não é pelo salário num sentido formal, mas no sentido de poder aquisitivo. Se os preços gerais subirem devido aos impostos, o salário terá que seguir a correção. O tempo livre conseguido pode se tornar também o posto de trabalho de mais gente em economias de sobreprodução. Creio que o seu pensamento está viciado a uma ideia de soma zero, cego para a capacidade de pequenas alterações econômicas gestadas na própria luta de classes que podem ir abrindo espaços e disputas na estrutura.
    Bom debate! abraço.

  9. O texo chama a atenção a aspectos importantes mas geralmente inconscientes da prática relacionada aos transportes. Porém, tendo a concordar com as colocações de Beto. Em um debate anterior (http://passapalavra.info/2014/05/93844), usei a expressão “fetichismo da mais-valia relativa”, talvez com um pouco de espalhafato. O argumento, é esse:

    “O único mecanismo contratendencial da queda da taxa de lucros que existe é a relação diferencial (e simultânea) entre regiões/empresas de mais-valia relativa e regiões/empresas de mais-valia absoluta.

    A competição entre empresas é a competição por reduzir os custos de produção (sobretudo capital variável, ou seja, menos tempo de trabalho cristalizado), mas obviamente o objetivo não é reduzir na mesma proporção o preço daquilo que vendem. Pelo contrário, o objetivo sempre é obter um lucro extraordinário (ou superlucro), isto é, acima do valor que ela mesma cria (pois todo aumento de produtividade leva na realidade a uma redução do valor criado comparado ao custo, devido à proporção sempre maior do capital constante, que não cria valor, apenas transfere, em comparação ao variável). E elas conseguem. Esses superlucros não são “mágica”, são trabalho não pago. Mas trabalho não pago de quem? Dos proletários das empresas concorrentes que possuem composição orgânica menor (proporção entre capit. constant e capt. variável desfavorável) e são forçados a trabalhar mais por menos, já que a ameaça de perder seus empregos se intensifica, ao mesmo tempo que os seus empregadores vendem a mercadoria com mais valor cristalizado (isto é, mais trabalho) mas a um preço abaixo, única maneira de não serem engolido pela concorrência e não falir.

    A medida que a composição orgânica mais alta (proporção sempre maior do capital constante em comparação ao variável) se difunde igualmente por todas as empresas, a base para os superlucros daquelas empresas “pioneiras” desaparece. Porém, como as empresas/regiões “pioneiras” já absorveram antes dessa difusão uma massa de superlucros imensa, elas sempre tem mais dinheiro para P&D (pesquisa e desenvolvimento) e portanto, são capazes de desenvolver “pioneiramente” novos meios de produção, formas de organização produtiva, novos produtos, e nova qualificação da força de trabalho, que lhes permitem uma nova rodada de superlucros.

    Resumindo: a busca e efetuação da mais-valia relativa existe sempre e unicamente em função da mais-valia absoluta (intensificada e expandida) que pode ser absorvida (como superlucros) do restante das empresas/regiões. Este é o único mecanismo contratendencial da queda da taxa de lucros.

    Portanto, se ficamos felizes pelo desenvolvimento – redução da mortalidade, melhora da qualidade de vida, da expectativa de vida, preços mais acessíveis de mercadorias aos trabalhadores etc. – não é de modo nenhum porque ele se baseie numa idílica mais-valia relativa que pudesse existir sem a absoluta, e nem porque haja uma evolução da história caracterizada por uma fase de mais-valia absoluta ser sucedida por uma fase de mais-valia relativa (a primeira supostamente mais “autoritária” e a outra mais “libertária”).”

  10. Caro Lucas,

    O aumento do poder aquisitivo não gera apenas o aumento de preços devido aos impostos, mas, e talvez principalmente, gera o aumento de preço das mercadorias. Um bom exemplo é a alta “ESPETACULAR” do preço dos imóveis que se seguiu ao plano “minha casa minha vida”. Se é fato que o poder aquisitivo dos brasileiros aumentou, também é fato que houve uma alta generalizada de preços. Se se consome mais é porque produz-se mais e mais barato, mas, contraditoriamente, com uma margem de lucro ainda maior para o capitalista, como bem lembrou Humanaesfera.
    No meu pensamento, talvez cego como você apontou, eu não consigo vislumbrar, dentro de uma estrutura capitalista, onde tanto os meios quantos os fins estão sob o controle totalitário dos expropriadores, possa haver, de fato (dentro da lógica do capital, e não dos trabalhadores) um jogo que não seja de cartas marcadas. É nesse sentido que venho encaminhando minha dúvida, ou seja, menos tempo “perdido” no transporte” significa trabalhador mais descansado, produzindo mais e melhor para seu algoz?
    Até o “tempo perdido” favorece o capital! Menos tempo para o trabalhador pensar e se organizar, menos tempo para conscientizar de sua realidade, menos força para lutar contra o sistema até o ponto que só reste força e tempo para trabalhar (incluindo aí o tempo cada vez maior que ele tem que estudar para se inserir e manter no mercado de trabalho) e não morrer de fome é o que não só deseja, mas conspira o capital…

    Abraços fraternais,

    Beto.

  11. Caro Beto,
    com meus estudos bastante introdutórios sobre economia, entendo que o aumento do poder aquisitivo só existe se de fato houver aumento na produtividade, como você aponta. Uma questão primordial hoje em dia é justamente então o problema do trabalho não-produtivo, uma forma de se manter os trabalhadores em seus regimes de produção sem que eles aproveitem um aumento na qualidade de vida. Além do trabalho não-produtivo, está o trabalho em regime de mais-valia absoluta, que mantém o trabalhador num regime intenso de trabalho sem que isso signifique viver melhor.

    Passando agora para a questão da luta de classes em si, vejamos o exemplo argentino de 2001: uma economia em crise completa e uma massa de desempregados. Todas as instâncias de organização da classe trabalhadora neste cenário são urgentemente direcionadas não para a organização de uma nova sociedade, mas para botar comida no prato: um trabalhador muito antes de se mobilizar para combater o capital se mobiliza para alimentar os filhos. As assembleias de bairro, que na ideia tanto se assemelhavam às instâncias democráticas de períodos revolucionários, serviam muito mais para colocar os vizinhos em contato e resolver precariedades comuns [um corte de cabelo em troca de um saco de arroz] do que para organizar os próximos passos de uma ruptura revolucionária. As organizações de trabalhadores desempregados logo se desfazem quando os trabalhadores conseguem seus postos de trabalho estáveis.

    Digo isso para argumentar que os cenários são muito diferentes no próprio processo de organização da classe quando o regime de trabalho está baseado num tipo de mais valia e não no outro. Se os capitalistas lucram de ambos jeitos, oras, não importa. As pressões econômicas que a classe trabalhadora impõe por meio de greves e ações diretas são inclusive demonstração da autonomia da classe no que diz respeito à esfera econômica, ao invés de relegar o correto funcionamento à uma equipe de expertos.
    Do contrário o que resta, na sua opinião? Que a luta de classes se dê apenas no campo político, responsável por organizar a economia?

    abraço!

  12. Caro Lucas,

    Antes de mais nada,gostaria de dizer que espaços como esse são fundamentais para pessoas que, como eu, possuem mais dúvidas do que certezas. Dentre aquilo que tenho como certo é que o capitalismo é um “inimigo” comum, fundamentado nas mais diversas “alienações” e concebido para ser a “não realização” de todas as pontencialidades humanas, que entendo eu, só são possíveis de serem realizadas dentro do “socialismo da abundância”.

    Porém, com você bem lembrou, nós, trabalhadores, vivemos em busca do “pão de cada dia”, mas sempre sem a certeza se iremos conseguir levá-lo à mesa ou não.

    Meu primeiro comentário nesta matéria eu disse que existem necessidades imediatas e mediatas. Claro que se do ponto de vista imediato medidas como a redução de tarifa ou mesmo a melhoria dos transportes representam um alívio na “cruz” cotidiana de todo o trabalhador, podendo até evoluir numa ampliação de direitos, isto não significa, obrigatoriamente, uma vitória em definitivo. Numa pergunta que fiz ao João Bernardo (http://passapalavra.info/2014/05/93844) ele respondeu que “Os trabalhadores hoje lutam de uma dada maneira contra o perfil actual do capitalismo e, consoante o resultado desta luta, o capitalismo apresentará amanhã um perfil diferente, contra o qual os trabalhadores hão-de lutar de outra forma, e assim sucessivamente”.

    É neste sentido que compreendo aquilo que você chamou de “soma zero”, só que numa escala muito maior. Por exemplo, a questão do aumento do consumo. O que representa para a classe trabalhadora como um todo (internacionalmente falando) consumir mais quinquilharias e bugigangas feitas por trabalhadores chineses ou roupas feitas por trabalhadores bolivianos? Ou, ainda, o tal do “home office”, onde aparentemente o trabalhador pode ter mais “qualidade” de vida mas, ao mesmo tempo, tem sua esfera mais íntima e privada definitivamente ocupada pelo capital (ou seja, o trabalhador não vai mais precisar enfrentar e perder tempo no trânsito, mas vai ceder gratuitamente seu espaço para o capital, será lucro ou prejuízo para ele?). Um capitalismo melhor ou pior, selvagem ou civilizado, não muda sua essência, continua sendo capitalismo…

    Enfim, caro Lucas, não creio que a luta de classe deva se desenvolver só no campo político, mas meu receio é que as nossas conquistas possam trazer mais desvantagens que vantagens e que este “capitalismo da abundância” nos ponha cada vez mais distantes do socialismo da abundância…

    Valeu o papo!

    Abraços fraternais,

    Beto.

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