Numa primeira fase, era preciso dar vazão aos capitais e mercadorias excedentes nos Estados Unidos, recorrendo, para isso, à América Latina. Por Fagner Enrique
Em 2014, o Golpe de 1964 completa 50 anos. Encontramos, em toda parte, por ocasião desse cinquentenário, reflexões sobre o seu significado e sobre a ditadura de, aproximadamente, duas décadas que a ele se seguiu. O objetivo desta série de artigos é oferecer uma introdução à contribuição de Mário Pedrosa (1900-1981) para a compreensão dos acontecimentos de 1964. Recomenda-se, ainda, a leitura das séries de artigos publicadas, neste site, aqui e aqui.
O Golpe de 1964 no contexto internacional
Para Mário Pedrosa, em A Opção Imperialista [1], o Golpe de 1964 [2], bem como a história do Brasil em sua totalidade, desde a Descoberta até à República, precisava ser situado num contexto mais amplo, de âmbito internacional, pois, segundo o autor, o Brasil todo, como nação, Estado, economia e sociedade, nunca foi um produto exclusivo de si mesmo, tendo sido, historicamente, ao contrário, resultado de um “paralelograma de forças” que o impelia “para uma direção diferente, externa”, que não resultava, por sua vez, “da dinâmica de suas forças interiores, autênticas” [3]. O objetivo da obra é, portanto, “indicar a linha de forças que impõe ao Brasil uma distorção que o desnatura, se não o faz definhar ou mesmo perecer” [4]. Em suma, o autor vai estudar o imperialismo americano, desde as suas origens até o pós-Segunda Guerra Mundial, para tentar estabelecer um quadro geral a partir do qual se tornam explicáveis os acontecimentos de 1964.
No caso específico dos acontecimentos de 1964, a conjuntura internacional mais ampla, em que se deveria situá-los, era a das “reformas contra-revolucionárias”: eles seriam o resultado de uma das “opções” colocadas à disposição das classes dominantes brasileiras naquele contexto. Ou seja, o Golpe de 1964 foi o resultado de uma “opção” das classes dominantes brasileiras nos anos 1960 (ou, pelo menos, de uma parcela dessas classes dominantes) pela adesão decisiva do Brasil à órbita imperial dos Estados Unidos e, também, pela sua adesão decisiva ao “neocapitalismo liberal” americano [5], opção esta estimulada, por um lado, pelo seu temor em relação ao “desassossego social” [6] suscitado pelos movimentos nacionalistas latino-americanos de modernização e reforma, então em voga mas que se cumpria revogar e dos quais o Presidente João Goulart era um dos representantes no Brasil, e, por outro lado, pela mentalidade e atitude “capitulacionista e colonial” dos “técnicos” brasileiros formados na escola do “neocapitalismo liberal” americano [7], os quais conduziam, com desprazer, uma política econômica desenvolvimentista, isto é, voltada para a industrialização do país [8], condicionando-a, ainda, à boa vontade e aos interesses estratégicos dos Estados Unidos, o “grande financiador” do sistema interamericano [9].
O “neocapitalismo liberal” americano, de acordo com Pedrosa, entrou em cena quando os Estados Unidos pretenderam, no imediato pós-Segunda Guerra Mundial, sob pressão das grandes corporações industriais e financeiras americanas,
restaurar as leis do capitalismo nascente, separando a política da economia, para permitir que as forças capitalistas encontrem o velho automatismo inicial, automatismo esse que lhes dava um movimento próprio, indiferente a qualquer outra consideração de ordem social e política, enquanto os governos, aparentemente neutros diante dos negócios, ficariam apenas com as funções de manter a ordem e garantir a santidade dos contratos comerciais. […] um neovitorianismo americano, a proclamar a independência da política e da economia como uma máxima de comportamento internacional. […] querem subordinar de novo as atividades econômicas do mundo aos automatismos do mercado [10].
Era preciso, portanto, primeiro voltar atrás, do segundo pós-guerra ao período do “arranque imperial” dos Estados Unidos [11], em fins do século XIX, para que se pudessem explicar as pressões das grandes corporações industriais e financeiras americanas pela restauração das leis do capitalismo original, tanto nos Estados Unidos quanto fora deles. Pressões às quais, para Pedrosa, os “técnicos”, os políticos, as classes proprietárias, os militares, as elites conservadoras brasileiras, aqueles que derrubaram o Governo João Goulart e tomaram o seu lugar, se curvavam, com muita boa vontade, diga-se de passagem. Estes aderiam, de pronto, à civilização cristã ocidental do livre-mercado e da livre-empresa e, temendo o avanço dos comunistas, que lhes parecia patente e flagrante, aderiam, também, à órbita imperial protetora dos Estados Unidos. O mesmo se dava nos demais países latino-americanos, em maior ou menor medida.
A política do big stick
“Já é tempo de alguém acordar e compreender a necessidade de anexar alguma propriedade”. Trecho de um discurso de um senador americano no Capitólio, na década de 1890 [12].
Os dirigentes americanos, desde a constituição dos Estados Unidos como nação independente, sempre tiveram em mente a necessidade de exercer controle sobre o Mar do Caribe e, sobretudo, sobre a ilha de Cuba. John Quincy Adams (sexto presidente dos Estados Unidos), dizia, por exemplo, que “olhando o provável curso futuro dos acontecimentos, é quase impossível resistir à convicção de que a anexação de Cuba à nossa República Federal será indispensável à continuidade e à integridade da própria União” [13]. Às vésperas da Guerra de Secessão, uma comissão do Senado chegava à conclusão de que “a administração de Cuba pode ser considerada um propósito fixo dos Estados Unidos” [14]. E, já em fins do século XIX, um senador americano afirma: “quando o canal de Nicarágua estiver construído a ilha de Cuba se tornará uma necessidade. […] os pequenos Estados pertencem ao passado” [15]. O sonho ou a aspiração vaga à anexação de Cuba estava, assim, encontrando condições para se realizar. No meio do Mar do Caribe, Cuba era, para os Estados Unidos, não só um ponto estratégico mas também um grande parceiro comercial, com o comércio entre os Estados Unidos e Cuba ultrapassando a casa dos 100 milhões de dólares, na década de 1890, e com as inversões americanas na indústria açucareira cubana chegando aos 50 milhões de dólares, na mesma época [16].
Ao fim da Guerra de Secessão, os Estados Unidos puderam, enfim, entregar-se
de corpo e alma, à tarefa de desenvolver suas forças produtivas ao máximo e a todo vapor e constituir-se num poder nacional capitalista de primeira ordem, para cuja formação não houve, por isso mesmo, poupança nem de recursos nem de energias intelectuais, nem de dinheiro, nem de músculos e braços, nem de suor, nem de lágrimas, nem de sangue, mas apenas de escrúpulos. Enfim, poderoso e rico, ao curso de uma geração, com seus multimilionários novinhos em folha, o país sentiu crescer em si […] “uma consciência nova”, “a consciência de sua força e com ela um apetite novo… o sabor do império na boca do povo” [17].
O controle do Mar do Caribe e da ilha de Cuba, nesse sentido, configurava um primeiro passo para “limpeza do hemisfério, considerado caça privada dos norte-americanos, de qualquer gringo europeu” [18] e “açambarcar para a indústria nascente de seu país os mercados ainda mal desabrochados de todo o Continente” [19]. Para o capitalismo americano, “investimentos de capitais e comércio exterior tinham de ampliar-se ao máximo, para dar saída ao que se chamou de ininterrupta corrente de mercadorias” [20]. Era preciso dar vazão aos capitais e mercadorias excedentes nos Estados Unidos, recorrendo, para isso, à América Latina, que, entretanto, já mantinha relações comerciais tradicionais, às vezes de caráter exclusivo, com a Europa (vendendo-lhe produtos primários e comprando-lhe produtos manufaturados), as quais precisavam ser, pelo bem ou pelo mal, rompidas. Pedrosa reproduz um trecho de uma nota do secretário de Estado do Presidente Grover Cleveland, em que este afirma que “[sic] a distância e três milhas de oceano intermediário tornam inatural e inviável qualquer união política permanente entre um Estado americano e um europeu” [21]. Tratava-se, pois, de apresentar os vínculos, já de séculos, entre a América Latina e a Europa como “inviáveis” e “inaturais”. A ideologia do pan-americanismo nasce, por conseguinte, vinculada aos interesses imperialistas da potência norte-americana. Por seu turno, os latino-americanos se opunham a uma tal vinculação, exclusiva e permanente, de seus países aos Estados Unidos, temendo, com isso, “perder qualquer poder de barganha com que ainda pudessem sonhar, no futuro” [22].
Em 1895, estoura a Guerra de Independência Cubana e, três anos depois, os Estados Unidos entram em guerra contra a Espanha. Finda a guerra, com a ilha ocupada por tropas americanas, o governo não pode ser transferido, não sem restrições, à junta revolucionária em Havana, pois, se isso fosse feito, com os “peões insurretos e [o] proletariado que tripudiavam triunfalmente sobre as classes dominantes espanholas, ficaria a salvo a propriedade da terra e do capital”? [23] A junta revolucionária cubana não estava disposta a tratar com muita preferência os espanhóis residentes na ilha, que continuaram leais a Madri e que sempre desprezaram as “pretensões do populacho”: “se com a retirada das tropas dos Estados Unidos as coisas chegassem a uma situação perigosa, os interesses dos negociantes americanos na ilha assim como as propriedades imobiliárias dos antigos dominadores ficariam seriamente ameaçados” [24]. É, então, estabelecida a tutela militar americana na ilha e instituída a chamada Emenda Platt. Abre-se um precedente: os Estados Unidos têm, agora, o “direito” de intervir militarmente num país latino-americano para proteger, aí, as “vidas” e as “propriedades” dos seus cidadãos [25]. Posteriormente, é claro, esse “direito” vai ser estendido a todo o continente, por obra do Presidente Theodore Roosevelt, que, em mensagem ao Congresso, em 1903, diz: “erros crônicos, desordens que resultam em afrouxamento dos laços da sociedade civilizada e a falta de pagamento de dívidas forçarão os Estados Unidos a exercer seu poder de polícia” [26]. Anuncia-se, por aí, a política do big stick [27].
Vê-se, portanto, que o imperialismo americano na América Latina se restringia, nessa época, à conquista de mercados (de exportação de matérias-primas e importação de produtos manufaturados), somando-se, aí, a apropriação e a exploração de recursos naturais (com ênfase particular para as riquezas do subsolo, como o petróleo, por exemplo) [28]. E os investimentos realizados, por sua vez, destinavam-se, em geral, ao controle das atividades econômicas atreladas ao comércio de matérias-primas (via investimentos diretos ou empréstimos etc.). Em breve, as coisas iriam mudar. Seja como for, havia, é possível sugerir, uma divisão de trabalho entre o Estado americano e os “homens de negócios” americanos: o primeiro, por um lado, negociava tratados comerciais, quando não os descia goela abaixo, mediante chantagens, ameaças ou, até mesmo, pela força, além de realizar “batidas policiais”, quando necessário (afinal, os “homens de negócios” precisam sempre de um ambiente tranquilo e estável para “trabalhar”): cumpria, portanto, ao Estado americano, tão somente, abrir caminho, por assim dizer, para os investimentos privados (e assegurá-los); os segundos, por outro lado, tratavam de meter as garras no que conseguissem abocanhar, em termos de recursos naturais e de mercados. E, nesse sentido, atuavam também os indivíduos “pioneiros”, os “abridores de fronteiras”, construindo estradas de ferro etc. Os investimentos até então realizados, contudo, são tímidos, “provincianos”, não representando “senão parte extremamente pequena da economia nacional americana” [29], pois a maior parte dos “homens de negócios” americanos estava interessada mais no desenvolvimento dos próprios Estados Unidos do que no investimento estrangeiro [30].
Trata-se de uma primeira face do imperialismo americano. Ele assumirá outras, a seguir, como se verá. “Estamos por assim dizer na primeira mocidade do novo imperialismo. Os Estados Unidos crescem em força e em irradiação, ganham a Primeira Guerra Mundial e seus interesses, a partir de então, se estendem ao mundo inteiro. Ascendem ao posto de primeira potência mundial” [31]. É então que as ambições imperiais globais dos Estados Unidos passam a conviver e, dependendo da conjuntura, a se chocar com as suas ambições imperiais originais, continentais, pois “o acúmulo de capitais, as tremendas potencialidades de seu aparelho produtivo precisavam do mundo para realizar-se em plenitude” [32]. Havia, no entanto, dois obstáculos no caminho: a legislação antitruste, que vigorava no interior do país, e o poder naval britânico, que dominava, inconteste, os oceanos. Barreiras a superar. Foram superadas.
A Lei Webb-Pomerane e o Tratado Naval de Washington
No ano de 1918, é aprovada, nos Estados Unidos, a Lei Webb-Pomerane, que revogava parcialmente a Lei Sherman (Lei Antitruste) e autorizava a realização de “combinações” (trustes, holdings, cartéis), mas somente se destinados a atuar fora do país. O relatório da comissão que preparou a lei foi baseado na consulta de
produtores, industriais, financistas, engenheiros, publicitários, agentes, importadores, contratantes, economistas, todos eles […] unânimes em mostrar a disparidade de condições entre eles, desprotegidos pelo Estado, que lhes amarrava os movimentos e os felizardos rivais […] dos outros países, assistidos a cada passo por seus governos [33].
E prossegue o relatório:
na Alemanha, Itália, Holanda, Suíça, Bélgica, Japão, os homens de negócios são muito mais livres para cooperar e combinar que neste país. Eles desenvolveram numerosas e amplas combinações, por vezes ajudados por seus governos que, efetivamente, os apoiam em suas atividades, tanto no comércio interno como externo [34].
Assim, liberados pela nova lei, começam os “homens de negócios” americanos a se exercitar [35], primeiro, logicamente, na América Latina. Já nos anos 1920, dá-se “um verdadeiro derrame de dólares sobre a América Latina, principalmente sobre a América do Sul” [36]. Ao final da década, as exportações americanas para a América Latina já se tinham elevado a mais de 1 bilhão de dólares: os Estados Unidos vão, assim, paulatinamente, arrancando à Inglaterra a hegemonia financeira e econômica que ela, ali, exercia [37]. Segundo Pedrosa, aprovada a Lei Webb-Pomerane, os capitalistas americanos são tomados por uma “euforia exogâmica” e começam a investir massivamente na América Latina e a emprestar-lhe, indiscriminadamente, grandes somas de dinheiro, configurando-se uma verdadeira “orgia” de empréstimos privados [38]. Enfim, eliminava-se, assim, um dos obstáculos acima referidos, criando-se condições para que o fluxo de capital para fora do país se ampliasse abruptamente. Além do mais, o público americano era estimulado a financiar tais investimentos, através da aquisição de títulos de governos estrangeiros, com taxas de juros, indevidamente altas, de 6, 7, 8%: “no boom de 1920, […] um bilhão e meio de dólares foram despejados na América Latina por aquele processo” [39].
Vejamos, agora, o segundo obstáculo. De acordo com Pedrosa,
para que a bandeira pudesse cobrir a mercadoria era preciso ter os mares livres aos navios mercantes. Daí surgiu a política de “portas abertas” cujo objetivo precípuo era liquidar as últimas pretensões do poder marítimo britânico de exercer a sua velha missão de polícia dos mares [40].
É então que o Presidente Warren Harding convoca, de súbito, em 1921, as grandes potências marítimas para uma conferência expressamente destinada a reduzir os armamentos, impondo, “sem muita diplomacia”, a política de “portas abertas”: impõe-se a paridade, em força naval, entre Estados Unidos e Inglaterra, com o Japão ocupando um segundo lugar obrigatório e a França e a Itália em terceiro lugar. “Nessa conferência, a Grã-Bretanha perdia, na realidade, talvez a sua maior batalha naval” [41]. Dela resultou o Tratado Naval de Washington de 1922 [42]. Com ele, o mar estaria “aberto” para que o capitalismo americano pudesse ou, pelo menos, tentasse devorar o mundo.
Pedrosa atribui a “obra de mundialização do imperialismo americano” ao Presidente Calvin Coolidge, um dos expoentes da ideologia isolacionista ou “a mediocridade provinciana coroada em mito, o mito áureo da prosperidade com normalidade” [43]. A ideologia do isolacionismo, de Coolidge em diante, serviria
como fórmula para encobrir a política dos monopolistas ianques e livrá-los de quaisquer compromissos que […] lhes pudessem atar as mãos, pés e canhões, na conquista de sua parte, parte condigna, nos mercados mundiais que começavam a redividir-se e a ser ampliados, em consequência mesmo da mudança nas relações de forças entre as grandes potências imperialistas [44].
O imperialismo americano vai mudando de face. Vai se tornando global. Chegará o momento em que as considerações estratégicas dos dirigentes do Estado, sejam estas voltadas para a manutenção das posições conquistadas no plano global ou no plano continental, entrarão em choque com os interesses do grande capital privado, inaugurando um imperialismo de uma nova face: um imperialismo de Estado, que surge como corolário de um capitalismo de Estado. Mas será preciso que um novo Roosevelt esteja já no cargo de Presidente dos Estados Unidos. Então, o imediatismo voltado para o lucro privado passará a se chocar com o planejamento e a estratégia militar.
Só o que não muda são duas coisas: em primeiro lugar, a “técnica da retórica americana”, “que vai dos altos conceitos abstratos de idealismo, democracia, progresso, felicidade, às noções mais vulgares de propriedade e negócios” e, por isso, “de permeio às expressões mais brutais de avidez, egoísmo e violência surgem as de um idealismo quase apostólico como em Woodrow Wilson, Franklin Delano Roosevelt, John Fitzgerald Kennedy, sem falar no próprio Theodore Roosevelt, em Herbert Hoover e outros” [45]. Assim, conclui Pedrosa, ironicamente:
exala tal atitude uma dose de hipocrisia tão profunda e natural, de que não é capaz nenhum dos estouvados e irresponsáveis povos latinos do continente. Justiça lhes seja feita. Mas os nossos amigos americanos conseguem manter, em meio aos mais sujos negócios e ambições, esse imperturbável sentimento de inocência, de quem se conduz pelo mundo na mais espontânea das gratuidades [46].
Em segundo lugar, não muda o que querem os “homens de negócios”: “com o big business […], eles só falam uma linguagem. Quando passa a chuva ou a tempestade e vem uma tarde de verão, lá está o grilo, impassível e tranquilo na sua cantilena, velha como o tempo. Assim, o grande capitalista, o homem de negócios autêntico. Não muda. E não erra no que quer” [47].
As ilustrações são de Kathe Kollwitz.
Notas
[1] Mário Pedrosa, A Opção Imperialista, [S.l.], Civilização Brasileira, 1966.
[2] Utilizo, aqui, o termo “Golpe de 1964” e não “Golpe Militar” porque o golpe de Estado que derrubou o Presidente João Goulart, em Março/Abril de 1964, não foi exclusivamente militar, como se verá adiante.
[3] Id., ibid., p. 1.
[4] Id., ibid., p. 2.
[5] Que, veremos mais à frente, corresponde, em grande medida, senão totalmente, ao que se convencionou chamar, hoje, de “neoliberalismo”. Um outro autor faz referência a um outro projeto de americanização do Brasil, que surgiu nos tempos da Proclamação da República, em 1889: “a americanização do Brasil significava, para os homens que assumiram o poder a 15 de Novembro […], o fim da herança colonial, a industrialização, o progresso da democracia”, dedicando-se o Governo Provisório “à tarefa de sintonizar o Brasil com o tempo”. “Rui Barbosa era o cérebro daquele governo de composição pequeno-burguesa, sôfrego e ansioso para arrancar o Brasil do atoleiro pré-capitalista e equipará-lo aos Estados Unidos, ainda que pelo simples mimetismo. A americanização, que imprimiu ao país, correspondia ao estado de espírito das classes em ascensão, contrário à preeminência da Inglaterra. Os Estados Unidos, segundo se informava, ofereciam dinheiro mais barato e constituíam uma opção para o Brasil, cujo crédito ficara abalado na Europa. Esta era uma das razões que levava o positivista Benjamin Constant […] a defender uma política exclusivamente americana, a Doutrina Monroe (Moniz Bandeira, Presença dos Estados Unidos no Brasil [Dois séculos de história], 2.ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978, pp. 133-134)”. Vê-se, portanto, que a opção de uma parcela das classes dominantes brasileiras pela substituição da Europa pelos Estados Unidos, enquanto parceiro comercial exclusivo e modelo político, econômico e social a ser seguido, vem de longa data.
[6] Conforme colocado por David Rockefeller, numa Conferência sobre Tensões no Hemisfério Ocidental, em sua crítica ao “nacionalismo emocional” dos latino-americanos (cf. Mário Pedrosa, A Opção Imperialista, [S.l.], Civilização Brasileira, 1966, p. 64).
[7] Cf. id., ibid., p. 10. Aqui, Pedrosa refere-se, mais exatamente, aos condutores da política econômica do Governo Castelo Branco, que, com ele, chegaram ao poder, a partir do sucesso da conspiração civil-militar que depôs o Presidente João Goulart: Roberto Campos, Otávio Gouveia de Bulhões etc.
[8] Pedrosa, citando trechos de um discurso proferido por Roberto Campos, ministro do Planejamento do Governo Castelo Branco, no Comitê Interamericano Econômico e Social da Aliança (trata-se da Aliança para o Progresso do Presidente John Kennedy), escreve: “se pudesse […] o Dr. Campos daria ‘contornos de alta prioridade ao incremento da produção e produtividade agrícola’ e não ‘à promoção do desenvolvimento industrial’; mas, ‘infelizmente’, lamenta ele, o último ‘esforço oferece maior valor-prestígio […] e pode basear-se, muito mais que no tocante à agricultura, em técnicas e métodos importados do exterior’ (id., ibid., p. 10)”.
[9] Id., ibid., p. 7.
[10] Id., ibid., pp. 273-274.
[11] Id., ibid., p. 13.
[12] Cf. id., ibid., p. 18.
[13] Id., ibid., p. 13.
[14] Id., ibid., p. 14.
[15] Id., ibid., p. 14.
[16] Id., ibid., p. 17.
[17] Id., ibid., p. 15.
[18] Id., ibid., p. 20. Já o primeiro passo para a conquista dos mercados do Extremo Oriente seria, por sua vez, a conquista das Filipinas, que, segundo o relatório de uma comissão mandada para lá pelo Presidente Calvin Coolidge, para inspecionar a região, seriam “a porta para as futuras possibilidades do Extremo Oriente” (cf. id., ibid., p. 26).
[19] Id., ibid., p. 16.
[20] Id., ibid., p. 28.
[21] Id., ibid., p. 15.
[22] Id., ibid., p. 17. Uma das tentativas dos americanos de forçar uma ruptura dos latino-americanos com a Europa, em favor dos Estados Unidos, foi a de impor uma união alfandegária pan-americana, em 1889.
[23] Charles Beard apud id., ibid., p. 19.
[24] Charles Beard apud id., ibid., p. 19.
[25] Cf. id., ibid., pp. 20 e 26.
[26] Id., ibid., p. 19. A partir daí, Pedrosa vai narrando uma longa sucessão de “batidas policiais” (intervenções militares), destinadas a preservar as “vidas” e as “propriedades” de americanos na América Latina (cf. id., ibid., pp. 20-21). E conclui: “estava assim definida para sempre a posição a que almejam os Estados Unidos no nosso Continente: plena soberania continental e que sejam lei seus interesses. Indo-se ao fundo das coisas, verifica-se, ao longo dos anos e das peripécias históricas, que tudo o que a política externa estadunidense se tem proposto até hoje não tem variado: alcançar, de algum modo, algum dia, a dita soberania (id., ibid., p. 15)”. Um outro autor lista as intervenções ou ocupações militares dos Estados Unidos na América Central e no Caribe, de 1898 a 1933: Cuba, 1898-1902, 1906-1919, 1912, 1917-1922; Guatemala, 1920; Haiti, 1915-1934; Honduras, 1903, 1907, 1911, 1912, 1924, 1925; México, 1914, 1916-1917; Nicarágua, 1909-1910, 1912-1925, 1926-1933, Panamá, 1903; Porto Rico, 1898; República Dominicana, 1903, 1904, 1905, 1912, 1916-1924 (cf. Olivier Dabène, América Latina no século XX, Porto Alegre, EDIPUCRS, 2003, p. 39).
[27] “Os Estados Unidos, emergindo para o imperialismo, preparavam-se para confirmar, pelas armas, sua soberania sobre o Continente, onde seu fiat era lei […]. Empunhariam o big-stick (o grande cassetete), para exercitar o seu poder internacional de polícia (international police power), que o Presidente Theodore Roosevelt instituiria, como um corolário da Doutrina Monroe. E não permitiriam a intrusão de outra potência na sua esfera de domínio. […] A Alemanha […] projetava sua sombra sobre a América (Moniz Bandeira, Presença dos Estados Unidos no Brasil [Dois séculos de história], 2.ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978, p. 168)”.
[28] Pedrosa faz menção, por exemplo, à imposição, pelos EUA, de uma carta constitucional ao Haiti que permitia que estrangeiros possuíssem terras no país (cf. Mário Pedrosa, A Opção Imperialista, [S.l.], Civilização Brasileira, 1966, p. 25). Em outro trecho, afirma: “uma das grandes questões conflitantes entre investidores estrangeiros e exportadores de capitais e os países importadores deles foi e tem sido sempre […] a da propriedade das riquezas do subsolo. A questão é tão naturalmente espinhosa que ao economista liberal [Samuel F.] Bemis ‘a autoridade soberana dessas nações’ pareceu ‘uma armadilha’ para a propriedade americana ali adquirida (id., ibid., p. 61)”.
[29] Cf. id., ibid., pp. 35-36.
[30] Experimentava-se, no interior do país, uma grande euforia: desenvolvimento industrial, integração nacional, boom das indústrias petrolífera e automobilística etc. (cf. id., ibid., p. 34).
[31] Id., ibid., p. 27.
[32] Id., ibid., p. 28.
[33] Id., ibid., p. 37. O referido relatório e a referida lei podem ser conferidos na íntegra, aqui.
[34] Id., ibid., p. 38.
[35] “Livres que ficaram os homens de negócios americanos das peias da lei antitrustes no trato do comércio com o exterior, com carta branca para lançar mão de todos os recursos possíveis e imagináveis […], contanto que tudo se passasse fora dos Estados Unidos e só produzisse efeito lá fora, sem que se restrinja o comércio dentro dos Estados Unidos ou se reforcem ou deprimam os preços no país de mercadorias da classe exportada, foram aqueles homens à conquista dos mercados externos, dispostos a bater os concorrentes onde os encontrassem e com quaisquer armas. […] E assim foi feito […] (id., ibid., p. 40)”.
[36] Id., ibid., p. 35.
[37] Id., ibid., p. 35.
[38] Id., ibid., p. 41.
[39] Id., ibid., p. 41.
[40] Id., ibid., p. 27.
[41] Id., ibid., p. 27.
[42] O referido tratado pode ser conferido na íntegra, aqui.
[43] Id., ibid., p. 28.
[44] Id., ibid., pp. 27-28.
[45] Id., ibid., p. 21.
[46] Id., ibid., p. 22.
[47] Id., ibid., p. 102. Big business é o termo que Pedrosa utiliza para se referir aos representantes dos interesses das grandes corporações industriais e financeiras americanas, aos seus gestores, bem como às mesmas.
Esta série reúne os seguintes artigos:
1) a aurora do imperialismo americano
2) um imperialismo de novo tipo
3) a América Latina diante da guerra
4) o contexto da Guerra Fria
5) a América Latina em xeque
6) as reformas contrarrevolucionárias
Raciocinemos como se deve raciocinar, do passado para o presente. O que eram os Estados Unidos no século XIX? Um país retardatário da periferia com o qual ninguém se importava. Os estados-maiores europeus nem sequer estudaram a guerra da secessão. Como pôde esse país converter-se num grande imperialismo? Porque saqueou os outros? Não, porque se dotou de uma estrutura social que lhe permitiu uma enorme acumulação interna de capital e daí é que passou para os outros países. Aliás, o manifest destiny nem sequer teve como eixo principal a expansão para sudeste, para Cuba e para as Caraíbas. O manifest destiny representava a expansão para oeste, ou seja, antes de mais a remodelação social e económica de todo o país de acordo com as condições capitalistas prevalecentes nos estados do nordeste. Esta yankização do país era o manifest destiny. Atingida a Califórnia, o manifest destiny desdobrou-se na expansão para o Pacífico. A segunda guerra mundial, que para os Estados Unidos foi fundamentalmente a guerra no Pacífico, constituiu o resultado último do manifest destiny.
O Brasil nisto tudo foi uma simples nota de rodapé, embora o papão norte-americano seja um pretexto muito útil para as velhas elites brasileiras e a sua intelectualidade arcaica justificarem um atraso que lhes é inerente a elas e não imposto pelos outros. O processo é sempre de dentro do país para fora e não o inverso. Trata-se aqui de capitalismo e não de mercantilismo, embora muita gente de esquerda, apesar de tudo o que Marx escreveu sobre o assunto, continue a pensar que ainda vivemos na época do mercantilismo.
Do mesmo modo, como pôde o Brasil dos últimos anos converter-se num neo-imperialismo na América Latina e em África? Porque foi primeiro espoliar os angolanos e os bolivianos? Não. Porque primeiro modernizou as condições sociais de exploração dentro do Brasil e modernizou decisivamente a composição das classes dominantes. Foi esta a grande missão histórica dos três governos do PT. E isto permitiu às classes dominantes brasileiras uma tal acumulação interna de capital e um tal dinamismo que essa acumulação interna se converteu em imperialismo externo.
A meu ver, o Mário Pedrosa não deixou de levar em conta a questão da acumulação interna, anterior à expansão para fora. Ele não aborda a questão detalhadamente, pois esse não é o foco central da obra, mas ele deixa claro que os Estados Unidos se converteram num grande imperialismo porque eles, em primeiro lugar, consolidaram a acumulação no plano interno. Ele evidencia, inclusive, que a exportação de capitais, durante muito tempo, não interessou aos “homens de negócios” americanos, que estavam mais interessados no desenvolvimento que se processava nos próprios Estados Unidos.
E mais: como se verá nos próximos artigos, o autor enfatiza que, a certa altura, os governos latino-americanos passaram a pedir, a barganhar, a exigir capitais vindos dos Estados Unidos, concedidos, sobretudo, pelo Estado americano, e destinados a industrializá-los e a modernizá-los (e, com eles, assistência técnica etc.): era dos Estados Unidos que pediam, com quem barganhavam e de quem exigiam, porque tinham, pela força ou de boa vontade, rompido, em maior ou menor medida, as suas relações tradicionais com a Europa.
Nesse sentido, é interessante perceber, por exemplo, que havia uma corrente do pensamento econômico desenvolvimentista brasileiro que não era nacionalista e que defendia, desde o início, uma parceria entre capitais públicos e privados, nacionais e estrangeiros.
O Mário Pedrosa parecia reconhecer que os capitais vindos dos Estados Unidos poderiam promover a industrialização e a modernização dos países latino-americanos, em parceria com os capitais nativos (públicos e privados), e só não o faziam porque os Estados Unidos, segundo ele, vacilavam entre assegurar o seu domínio no continente americano e conquistar e assegurar novas posições fora dele (chocavam-se suas ambições continentais e suas ambições globais) e, por conseguinte, interrompiam o fluxo de investimentos para a América Latina, deslocando-o para outros lugares: as Filipinas eram, para os Estados Unidos, segundo o Mário Pedrosa, a porta de entrada para a Ásia. Portanto, fazia-se necessário combater o alinhamento dos países latino-americanos aos Estados Unidos, para que a América Latina não ficasse, para sempre, à espera da boa vontade dos Estados Unidos.
Nisso ele se diferenciava, por exemplo, do Nelson W. Sodré, para quem o imperialismo em nada contribuía para a modernização do Brasil, sendo, ao contrário, uma “bomba de sucção”.
Por isso, eu acho que ele não defende a tese de que a culpa pelo atraso dos países latino-americanos se deve à sua exploração pelos Estados Unidos: se entendi bem, o problema, para ele, estava na economia agrário-exportadora e numa industrialização que dependia da disponibilidade dos capitais americanos, mas daí para afirmar que a culpa de tudo era dos Estados Unidos existe uma grande diferença, porque ele enfatiza que as elites brasileiras (uma uma parcela delas, a parcela vitoriosa), por exemplo, fizeram uma opção pelo alinhamento aos Estados Unidos.
Ele faz uma exposição das relações entre a América Latina e os Estados Unidos, desde a década de 1890, com o objetivo de explicar, a partir daí, a referida opção. Certamente, ele era um homem do seu tempo e, volta e meia, é possível verificar uma dose de anti-imperialismo terceiro-mundista na sua argumentação (a certa altura ele afirma que não é o “hemisfério ocidental” que se deve integrar mas o “hemisfério sul”, referindo-se, assim, aos países subdesenvolvidos da América Latina, da África, da Ásia etc.).
Mas, e já adiantando uma parte do conteúdo dos próximos artigos, ele parece especialmente interessado em enfatizar a ascensão política, nos Estados Unidos, desde o Presidente Eisenhower, de uma “confraria” de gestores vinculados às grandes companhias privadas, os quais se entendiam, e muito bem, com os dirigentes latino-americanos que decidiam pelo alinhamento aos Estados Unidos, pois, assim, estaria preservado, no “hemisfério ocidental”, o capitalismo privado, que estava a ser substituído, no oriente (União Soviética, China etc.) e nos países em que a modernização ficava a cargo, exclusivamente, do Estado, pelo capitalismo de Estado.
Daí resultava, segundo ele, o chamado “neocapitalismo liberal”, que partia de uma parceria entre o capitalismo de Estado e o capitalismo privado, e entre o imperialismo de Estado e o imperialismo privado, para conferir às grandes corporações privadas um crescente protagonismo social, que os grandes “homens de negócios” julgavam ser seu de direito.
A meu ver, uma boa parte do que o Mário Pedrosa escreveu pode até estar ultrapassada, mas tem muito de esclarecedor na sua obra. E eu julguei necessário reproduzir, acima, a argumentação do autor – relativa às relações Estados Unidos-América Latina no século XIX –, mesmo que ela esteja, em parte, incorreta, para que os argumentos subsequentes do autor sejam melhor compreendidos.
Fagner,
O que me preocupou não foi tanto o que Mário Pedrosa escreveu mas a forma como é comum os leitores interpretarem esse tipo de textos. De qualquer modo, Mário Pedrosa não rompeu propriamente com o nacionalismo desenvolvimentista, a ponto de na pág. 309 ter proposto a palavra de ordem «Países subdesenvolvidos do mundo, uni-vos! Não tendes a perder senão vossas cadeias!». Nada disto impede que se trate de um livro notável. Escrevi várias vezes, e disse-o em aulas, que considero A Opção Imperialista como um dos grandes clássicos do marxismo, que todos deviam ler com atenção.
Interessante notar que, muito embora nunca tenhamos vivenciado historicamente o federalismo, até a Carta Constitucional de 1967, imposta pelos militares golpistas, nossa “razão social” (nome oficial) era “Estados Unidos do Brasil”…
Também é interessante notar que os mesmos militares que aboliram os Estados Unidos do Brasil e “proclamaram” a República Federativa do Brasil” foram os mesmos que elegeram como lema “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”…
Realmente nossas elites fizeram suas escolhas. Mas elites também são escolhidas, mediante pactos econômicos e políticos, para se tornarem elites ou se manterem enquanto elites pelo grande capital.
Não há, num mundo de capitais internacionalizados, no meu entender, como se manter uma elite nacional de outra forma.
Expressões tais como “países subdesenvolvidos”, “nações proletárias”, “terceiro mundo” etc. eram e continuam sendo típicas do vocabulário tardojacobino dos fascismos vermelho & marrom (ver Otto Ruhle).
Esse patoá é o santo-e-senha da pequena burguesia radicalizada, sacerdotisa da contrarrevolução preventiva.