Procurámos acender um sinal vermelho ao alertarmos para o perigo de um capitalismo de Estado. Por Passa Palavra

Numa série de artigos, o Passa Palavra tem alertado para o perigo de que uma saída da zona euro traga como horizonte certo o capitalismo de Estado e como horizonte muito possível o fascismo, mais provavelmente surgido à esquerda do que à direita. Como somos incansáveis, continuaremos a assinalar este perigo.

1.

O abandono do euro e o regresso ao velho escudo não significariam apenas a renúncia a uma moeda supranacional e a adopção de uma moeda nacional, o que já de si é grave. Igualmente grave é o facto de o regresso ao escudo ser o resultado daquilo que no vocabulário do Direito se denomina inadimplência e em português de todos os dias se chama pregar um calote. Internacionalmente o escudo assinalaria uma economia sem credibilidade. Basta lembrar que todos os compromissos e contratos estão firmados em termos de euro e que a mudança para o escudo implicaria litígios sem fim e o descalabro jurídico da vida económica.

Há quem não se importe com isso e argumente que uma moeda fraca facilitaria as exportações, que sairiam mais baratas para o estrangeiro. Todavia, como em 2010, segundo um Relatório do Banco de Portugal (veja aqui), 75% das exportações portuguesas se dirigiram para a União Europeia e 51% foram absorvidas pela Espanha, a Alemanha e a França (50% em 2011), isto significa que o país se isolaria monetariamente do seu principal mercado. Mesmo assim, os defensores do abandono do euro não perdem o optimismo e invocam o notável crescimento das exportações para a China, que aumentaram 70% em 2011 e 53% nos primeiros oito meses de 2012. O balde de água fria vem quando se sabe que a China absorveu tão somente 0,7% das exportações portuguesas em 2009, 0,6% em 2010 e 0,9% em 2011. Será a partir desta base que pretende reconstruir-se o comércio externo?

E reconstruí-lo com que tipo de exportações? Importa examinar a composição tecnológica daquilo que o país vende e compra ao estrangeiro. Segundo o Relatório de Execução 2010 do COMPETE (POFC – Programa Operacional Factores de Competitividade) (veja aqui), a exportação de produtos industriais com intensidade tecnológica considerada baixa e média-baixa aumentou, entre 2006 e 2010, de 57,4% para 61,6% do total das exportações de produtos industriais. Tal como o referido Relatório sintetizou na pág. 82, «mantém-se o perfil do país, exportador de bens com baixo grau de transformação e importa[dor] de bens de alto valor acrescentado». Com efeito, 55,2% das importações portuguesas de produtos industriais em 2006 classificam-se como tendo uma intensidade tecnológica alta e média-alta, percentagem que foi de 52,9% em 2010.

Acresce que o abandono do euro e o calote surtiriam efeitos negativos sobre os investimentos externos directos em Portugal, ou seja, os investimentos originários do estrangeiro e que asseguram ao investidor o controlo ou, pelo menos, um interesse duradouro e uma influência decisiva na empresa onde o capital é aplicado. Considera-se habitualmente que o investimento externo é directo quando permite adquirir uma participação superior a 10% do capital de uma empresa. Um retraimento dos capitais estrangeiros seria tanto mais grave quanto nos últimos anos o país tem mantido o volume dos investimentos externos directos recebidos, enquanto ao mesmo tempo as remessas de lucros têm atingido níveis elevados. Vejamos melhor.

Fluxos de investimentos externos directos, em milhões de US$

2006 2007 2008 2009 2010 2011
em direcção a Portugal 10 908 3 063 4 665 2 706 2 646 10 344
a partir de Portugal 7 139 5 493 2 741 816 -7 493 12 639

Fonte: World Investment Report 2012

Sintetizando este duplo processo, o World Investment Report 2012 (veja aqui) escreve na pág. 62: «Apesar do agravamento da crise na zona euro, os fluxos totais de investimento externo directo tanto para os quatro países mais atingidos como a partir deles parecem pouco afectados. Aumentaram os fluxos de investimento externo directo em direcção a Portugal, à Itália e à Grécia, e em direcção à Espanha mantiveram-se próximos da média dos dois anos anteriores [2009 e 2010]. No entanto, as variáveis subjacentes mostram sinais preocupantes. Dada a profundidade da recessão, especialmente na Grécia, o reinvestimento dos lucros — um dos três componentes dos investimentos externos directos — desceu nos quatro países». Ora, por pior que seja a situação económica em Portugal, o facto de a moeda ser aceite em todo o mundo ao seu valor facial constitui uma garantia para as companhias transnacionais, que investem aqui com a condição de poderem remeter os lucros se não estiverem interessadas em reinvesti-los. E, com efeito, ao observarmos a evolução dos investimentos externos directos recebidos por Portugal que dão lugar a projectos inteiramente novos, o que em termos técnicos se chama greenfield projects, verificamos que, depois de um pico em 2007, têm vindo a descer.

Projectos greenfield realizados em Portugal pelos investimentos externos directos, em milhões de US$

2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011
1 005 4 381 10 945 7 763 4 932 2 665 1 701

Fonte: World Investment Report 2012

Se os investimentos externos directos já estão a retrair-se de desenvolver em Portugal projectos novos, mais ainda esses investimentos se afastarão quando a remessa de lucros só puder ser efectuada numa moeda depreciada e sem aceitação no mercado mundial. Por isso, o abandono do euro implicaria uma crise na entrada de capitais. Ora, como são as companhias transnacionais quem difunde as tecnologias de ponta, um retraimento dos investimentos directos repercutir-se-ia de imediato nos sectores de maior avanço tecnológico, atingindo suplementarmente a composição das exportações, cuja intensidade tecnológica média se tornaria ainda mais baixa.

Assim, o abandono do euro e a adopção de uma moeda depreciada nem sequer teriam as vantagens competitivas no mercado mundial que os seus defensores invocam. Mas o problema é ainda mais grave, porque a balança comercial portuguesa apresenta um persistente saldo negativo. Segundo o referido Relatório do Banco de Portugal, nos últimos anos, medido em percentagem do Produto Interno Bruto, o saldo da balança de bens e serviços manteve-se acima de -7% até 2009. Com a imposição das normas de austeridade aquele saldo negativo desceu em 2010 para -6,7 e para -3,2 em 2011. Ora, na mesma medida em que a adopção de uma moeda depreciada tornaria mais baratas as exportações, encareceria as importações, o que por si só implicaria o agravamento do saldo negativo.

A situação seria tanto mais grave quanto o aumento do preço das importações se repercutiria de imediato sobre a produtividade das empresas, diminuindo a sua capacidade de adopção de tecnologias mais modernas. De acordo com o referido Relatório do Banco de Portugal, se adicionarmos os seguintes grupos de produtos — combustíveis minerais, químicos, plásticos e borracha, pasta celulósica e papel, matérias têxteis, minerais e minérios, metais comuns, máquinas e aparelhos, veículos e outro material de transporte e óptica e precisão — atingimos 76,8% das importações totais de bens efectuadas em 2010. Só as máquinas e aparelhos e os veículos e outro material de transporte somaram 30,5%. O encarecimento das importações teria, portanto, um efeito negativo não só no volume da produção como igualmente na qualidade dessa produção, o que, por sua vez, afectaria negativamente a capacidade concorrencial das exportações portuguesas.

Mas o aumento do preço das importações repercutir-se-ia igualmente sobre o consumo popular, pois uma grande parte dos artigos de alimentação e vestuário é importada. Sempre segundo o mesmo Relatório do Banco de Portugal, se adicionarmos os seguintes grupos de produtos — agrícolas, alimentares, vestuário e calçado — alcançamos 17,5% das importações totais de bens realizadas em 2010. Assim, ao mesmo tempo que a situação dos trabalhadores se deterioraria em consequência do descalabro da actividade económica, aumentando o desemprego e paradoxalmente reduzindo-se os salários, o seu nível real de vida ficaria ainda pior, já que aumentariam muito os preços da componente importada dos bens de consumo.

Poderá pensar-se que quem não tem trabalho num lado arranja-o noutro, e não foram sempre os portugueses, até uma data recente, um povo de emigrantes? Na emigração se funda o eixo mítico mais vincado e duradouro da história do país, os Descobrimentos, e nela se inspiram os símbolos recorrentes da maior expressão artística popular, o Fado — o marinheiro, a gaivota, a ausência, a saudade. No entanto, as remessas dos emigrantes desceram 30% de 2000 para 2011.

Remessas dos emigrantes, em milhões de € (valores aproximados)

2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011
3 458 3 737 2 818 2 434 2 442 2 277 2 420 2 588 2 485 2 282 2 426 2 430

Fonte: Pordata

Perante este declínio das remessas dos emigrantes, os actuais governantes lembraram-se de dizer aos portugueses para irem trabalhar noutros países, já que não conseguem viver onde nasceram. O certo é que, segundo o secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, José Cesário (veja aqui), entre 100 mil a 120 mil portugueses emigraram em 2011. Numa perspectiva mundial a longo prazo, porém, verifica-se que, apesar de serem hoje maiores as diferenças entre os níveis salariais nos países que exportam migrantes e naqueles para onde eles se dirigem, a percentagem de migrantes na população total é menor do que antes da primeira guerra mundial. O capitalismo tornou o mundo único e global, e mesmo havendo quem imagine que abandonando o euro pode refugiar-se dentro das fronteiras, a necessidade de emigrar mostra que as fronteiras hoje servem para ser ultrapassadas. Mas a isto se opõem as restrições erguidas à mobilidade do trabalho, o que que contribui para tornar ainda mais difícil a via de saída que os governantes tiveram a cruel estupidez de indicar.

Como escreveu recentemente Jorge Valadas (veja aqui), «um nacionalismo sem economia e de campos de golf é a mesma coisa que uma emigração que não encontra trabalho».

2.

O abandono do euro, com a emissão de uma nova moeda, a necessidade de impedir a fuga de capitais denominados na antiga moeda forte e a necessidade de impor uma taxa de câmbio da moeda forte pela nova moeda fraca, obrigaria de imediato ao controlo directo do Estado sobre o sistema bancário, efectuado verosimilmente sob a forma de uma estatização da banca.

Convém aqui não confundir economia com homilias nem capitalismo com mercantilismo. Infelizmente, uma concepção moralista da vida económica e, o que é tão grave ou mais ainda, uma noção arcaica dos mecanismos económicos grassam entre as multidões que justamente se indignam com a actual situação. Ora, os erros pagam-se, e em política o preço é elevado. Neste caso pagam-se com uma aliança entre os trabalhadores e os empresários considerados produtivos, contra os banqueiros considerados improdutivos, e foi uma aliança deste tipo que serviu de fundamento aos fascismos.

O Passa Palavra tem repetidamente feito a crítica à demagogia que considera o capital financeiro como parasita (veja especialmente aqui e aqui). Para nos limitarmos a indicar as linhas fundamentais de um tema que ocupa muitos volumes, a principal função do dinheiro no capitalismo não é a de servir de intermediário na compra de bens nem de encher o pé da meia. No capitalismo o dinheiro serve fundamentalmente de sistema sinalizador. Serve também de sinalizador entre o presente e o futuro, porque este modo de produção, contrariamente a todos os anteriores, não se concebe como estático, mas só como dinâmico. E assim, enquanto ponte entre a actividade económica de hoje e a de amanhã, o dinheiro, além de constituir um sistema de sinais e de informação, constitui igualmente um sistema de crédito, em que uma parte dos frutos do presumível crescimento futuro é desde já usada para alimentar o crescimento presente. As alavancagens, de que tanto se falou recentemente, são um desenvolvimento lógico desta função multiplicadora do crédito. É precisamente nesse espaço que ocorrem as crises, quando a desaceleração do crescimento torna inverosímil que o crescimento futuro seja capaz, além de ocasionar lucros, de garantir o pagamento da dívida presente. Nesta economia assente em antecipações e, por conseguinte, inerentemente instável, o sistema financeiro assume ainda uma função seguradora; daí os derivativos, ou seja, o estabelecimento do preço futuro de compra e venda de um dado activo em função do preço de outro activo, com tudo o que acarretam. Sistema de informações, sistema de crédito e sistema segurador — é nestes parâmetros que pode entender-se a função do dinheiro no capitalismo.

Assim, não existe no capitalismo uma economia fictícia contraposta a uma economia real. Existe um sistema financeiro que não só serve para conjugar toda a economia presente mas que o faz num quadro dinâmico, articulando o presente com o futuro. Se na história se pudessem fazer operações como na cirurgia se fazem com os corpos e extrair o sistema financeiro à economia contemporânea como, salvo seja, um médico extrai o apêndice do leitor, então teríamos o capitalismo retrogradado para mercantilismo.

Napoleão Bonaparte, que tinha sobre o crédito as mesmas noções que tem hoje a esmagadora maioria dos indignados, considerava que a Grã-Bretanha estava condenada porque a sua economia assentava no crédito e, em vez disso, procurou assentar a prosperidade da França nos valores sólidos da conquista militar, das ocupações territoriais e da pilhagem. Mas foi ele quem terminou os dias em Santa Helena e foram os britânicos quem, com o crédito, conquistou o mundo. Não sabemos se na ilha onde o enfiaram o ilustre estratega compreendeu que, afinal, a economia fictícia era mais real do que a outra.

Abandonado o euro e restaurado o escudo em Portugal, seria então necessário reorganizar a relação do sistema financeiro com a produção de bens e serviços. O que quer que pensem os fanáticos do nacionalismo económico, é impossível uma economia moderna subsistir sem crédito. Ora, a adopção de uma moeda depreciada tornaria o crédito externo ainda mais caro do que já hoje é, implicando para a banca portuguesa uma maior dificuldade de financiamento internacional. Nestas condições, em vez de reduzir os subsídios estatais à banca, o abandono do euro exigiria, pelo contrário, que a retracção do crédito externo fosse compensada pelo avolumar do crédito interno, do qual o Estado se encarregaria, porque não haveria mais ninguém para o fazer. Sem isto ruiria uma das condições básicas de funcionamento da economia. E assim, na prática antes de o ser na letra da lei, o sistema bancário teria sido estatizado. Totalmente dependentes do financiamento do Estado, os bancos não teriam base para se opor à mudança do regime de propriedade e, por seu lado, o Estado não aceitaria sustentar entidades que lhe escapassem. A estatização da banca seria uma consequência directa da adopção de uma moeda nacional depreciada.

Porém, nas condições de isolamento em relação ao sistema bancário mundial que o abandono do euro provocaria e perante a crise de produção que acima evocámos, depressa o sentido do financiamento se inverteria e seriam os bancos estatizados a subsidiar o Estado. Ora, sem a possibilidade de obter crédito no estrangeiro, a sustentação financeira do Estado ficaria obrigatoriamente a dever-se à inflação. E num quadro recessivo a inflação mais ainda agravaria a crise económica, desencadeando-se um ciclo vicioso bem conhecido.

Perante este descalabro, e para tentar refreá-lo, a reacção do Estado é previsível graças aos exemplos históricos conhecidos. Os subsídios inflacionários estender-se-iam à generalidade das empresas, que necessariamente passariam para o controlo directo do Estado ou se converteriam mesmo em propriedade estatal. Em suma, o abandono do euro determinaria a necessidade de estatizar a banca, que por sua vez, num contexto de recessão inflacionária, determinaria a ampliação do controlo estatal a toda a economia. Juntando os dois extremos deste processo, a adopção do escudo teria como consequência a implantação de um capitalismo de Estado.

Ora, não há capitalismo de Estado sem autoritarismo político. Como escreveu Jorge Valadas no artigo que citámos, «este regresso à dita “soberania nacional” implicará necessariamente, não só mais miséria, mas também o regresso do autoritarismo por parte do poder politico. Um novo totalitarismo é o preço da mísera “independência nacional”».

São os mecanismos desse totalitarismo que vamos analisar na segunda parte deste artigo.

Ilustram este artigo obras de Ellsworth Kelly (a primeira e a última) e de Tàpies (as outras).

Leia a 2ª parte deste artigo.

9 COMENTÁRIOS

  1. Júlio,
    Agradecemos o seu interesse. Esta 1ª parte foi publicada hoje, domingo. A 2ª parte será publicada no próximo domingo, dia 2 de Dezembro.

  2. No Vias de Facto ( http://viasfacto.blogspot.com.br/ ) o Miguel Serras Pereira chamou a atenção para este artigo. Outro dos colaboradores desse blog, Pedro Viana, num comentário dirigido ao Miguel Serras Pereira, criticou o artigo da forma que se pode ler aqui :
    http://www.blogger.com/comment.g?blogID=2525053614363345408&postID=1561046616104630239
    É engraçado observar, e está longe de ser a primeira vez, que algumas pessoas, em vez de colocarem os seus comentários no Passa Palavra, os colocam no site onde encontraram uma chamada de atenção para o artigo. Talvez seja timidez. De qualquer modo, repliquei no Vias de Facto às observações de Pedro Viana e reproduzo aqui o meu comentário:

    Apesar de o comentário de Pedro Viana se dirigir ao Miguel Serras Pereira (e se Pedro Viana quisesse dirigir-se ao Passa Palavra certamente teria colocado o seu comentário nesse site) pareceu-me conveniente intervir. A minha ligação ao Passa Palavra é conhecida e, embora aquele artigo seja colectivo e assinado pelo colectivo, poderei adiantar o seguinte:
    1) Em numerosos artigos, tanto colectivos como assinados pelo Manolo, pelo João Valente Aguiar, por mim mesmo e por outros autores, o Passa Palavra tem mostrado a impossibilidade de reflectir sobre a economia actual em termos nacionais. Nem sequer é o inconveniente político de o fazer, é a sua impossibilidade de facto. A transnacionalização do capital deixou as fronteiras totalmente inoperantes, no caso de pequenas economias, ou parcialmente inoperantes, no caso dos cinco grandes países subcontinentais. Isso significa, entre outras coisas, que nenhuma economia pode desenvolver-se sem investimentos externos directos, a tal ponto que uma parte considerável e crescente do que é contabilizado como comércio externo é hoje constituído por comércio intrafirmas. Não é com homilias que se inverte esta situação nem é ignorando-a que ela desaparece.
    2) A adopação de uma moeda nacional depreciada, em situação de inadimplência, provocaria o descalabro jurídico da vida económica sobretudo no interior do país. Os compromissos assumidos com o estrangeiro, em termos de euro ou de dólar, teriam de ser cumpridos nessas moedas — embora com muito mais dificuldades — sob pena de corte das relações internacionais. Mas tanto no caso de cumprimento como de incumprimento a situação para o exterior seria juridicamente clara. O caos jurídico verificar-se-ia nos compromissos assumidos internamente, firmados em euros e a cumprir na nova moeda, mas a que taxa? Na estipulada oficialmente, o que corresponderia à ruina dos credores? Numa que correspondesse ao valor real do compromisso assinado, o que seria impossível para os devedores? Se estes litígios fossem levados a tribunal o sistema jurídico ficaria praticamente paralisado.
    3) Quando Pedro Viana atribui àquele artigo do Passa Palavra «a crítica da nacionalização, em particular como meio de controlo social sobre a economia, vista como inevitavelmente conducente ao totalitarismo», só posso concluir que ou não leu o artigo ou está a tresler. Nesse artigo nunca se menciona a «nacionalização», mas sempre a «estatização», precisamente porque o Passa Palavra, tanto enquanto colectivo como os seus colaboradores individualmente, não consideram que naquelas circunstâncias política haja possilidade de os trabalhadores exercerem o seu controlo sobre a economia. Para todos nós, no Passa Palavra, a estatização — e repito que foi este o termo que usámos — é o oposto ao controlo social sobre a economia. E é porque defendemos o controlo social sobre a economia que atacamos a estatização. Para mim, pessoalmente, é uma posição que assumo desde há muito, e que assumimos todos os que a seguir ao 25 de Abril criámos e mantivemos (até 1978) o jornal Combate (http://www.marxists.org/portugues/tematica/combate/index.htm ), Miguel Serras Pereira incluído.
    4) A mesma alternativa que me vi obrigado a colocar há pouco tenho de a colocar de novo quando Pedro Viana escreve que existe naquele artigo «uma argumentação apenas e só assente em considerandos económicos». Em primeiro lugar, o que preocupa o colectivo do Passa Palavra é que um capitalismo de Estado instaurado em condições de miséria pressupõe um autoritarismo político reforçado. Isto está claramente dito naquele artigo, como aliás nos artigos anteriores sobre o mesmo assunto. É como sinal vermelho para o autoritarismo político que o Passa Palavra se preocupa com o risco de estatização da economia. Em segundo lugar, por muito que custe aos diletantes da demagogia, os problemas sentidos pela periferia meridional da zona euro são problemas económicos. E quem não os quiser — ou não os souber — analisar em termos económicos estará a dar o aval a soluções economicamente catastróficas e politicamente nocivas.
    Finalmente, uma observação. Todos nós, no Passa Palavra, lamentamos muito ter de analisar a situação portuguesa no plano estrito do capitalismo. Fazêmo-lo apenas porque não existe nem parece despontar nenhuma alternativa revolucionária, anticapitalista. E sob a estatização económica e o autoritarismo político será mutíssimo mais difícil criar condições de desenvolvimento de uma alternativa anticapitalista.
    Mas a indignação de pessoas como Pedro Viana e tantos outros explica-se quando observamos a facilidade com que, onde o Passa Palavra escreveu «estatização», ele leu «nacionalização». Esse será o tema da 2ª parte do artigo, que analisará por que motivos o capitalismo de Estado e o autoritarismo político podem servir, para toda essa gente, de farol.

  3. “Acresce que o abandono do euro e o calote surtiriam efeitos negativos sobre os investimentos externos directos em Portugal, ou seja, os investimentos originários do estrangeiro e que asseguram ao investidor o controlo ou, pelo menos, um interesse duradouro e uma influência decisiva na empresa onde o capital é aplicado.”

    Substituam “Portugal” por “União Europeia” e reparem que o vosso artigo invalida tão facilmente uma revolução à escala de Portugal como uma revolução à escala europeia, também ela dependente de investimentos externos e mercadorias que obtém no mercado mundial. Ou seja, em linhas gerais, a vossa tese: a economia transnacionalizou-se e como tal a revolução ou é mundial levará à decadência da economia. E pelo caminho parecem esquecer-se que queremos construir uma economia socialista, onde evidentemente o investimento externo não é apetecível.

    Em segundo lugar, não é por acaso que há muitos liberais (blog Insurgente) que defendem o default. Foi lá que aprendi que, ao contrário do senso comum, os países que têm feito default nas últimas décadas conseguiram facilmente financiar-se.

  4. Será que Triplo A atribuiu a menção a ele mesmo ou a obteve da Standard & Poor’s?
    O seu comentário caiu tão pouco tempo depois do meu, que não sei se não teria sido escrito antes. Seja como for, receio muito que o que tenha invalidado as revoluções de âmbito nacional, ou de âmbito regional num espaço limitado, não fosse o artigo do Passa Palavra mas a realidade económica transnacional do capitalismo contemporâneo. Aliás, não tão contemporâneo assim, já que essa precisamente foi a polémica maior que se travou no campo comunista a partir dos primeiros anos da década de 1920. Se já então havia quem afirmasse a impossibilidade de contruir o socialismo num só país — e não eram poucos a afirmá-lo — com muitíssimo mais razão se pode dizer o mesmo agora. Esses que afirmavam a impossibilidade de construir o socialismo num só país atribuíram a essa impossibilidade o facto de se ter construído na União Soviética não um socialismo mas um capitalismo de Estado (os trotskistas empregavam outro termo, correntes esquerdistas empregavam aquele termo). Com muito mais razão podemos hoje prever que o mesmo sucederia, e sob formas políticas igualmente autoritárias, se se abandonasse o euro para cair no isolamento económico. É esta a questão que está em causa.

  5. Eis que já passa da hora de enfrentar o pseudoparadoxo entre pensar&agir “classista” e afirmar a tese “aclassista” da necessária autossupressão comunista do proletariado. Nem indecifrável esfinge, nem indigerível merenda: hic Rodhus, hic salta!

  6. Curioso como as posições se parecem, tanto de um lado do Atlântico quanto do outro.

    Em Portugal, a crise econômica lança a esquerda décadas para trás rumo às surradas teses da “nacionalização” (que, no fundo, significa submeter os trabalhadores aos mandos e desmandos da burocracia estatal).

    No Brasil, país de economia pujante mas temeroso dos efeitos da crise global sobre o mercado interno, cabeças coroadas da esquerda — e algumas da centro-esquerda — buscam também inspiração nas teses da “nacionalização” para escrever um manifesto (http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=21253). Levado a cabo no pouco que tem de preciso e factível sob a retórica mofada, suas propostas resultariam não apenas em maior exploração dos trabalhadores sob o argumento da “aceleração do crescimento econômico”, mas também em estruturação do poderio militar brasileiro e em aumento de exportação de capitais e de “assessoria técnica” para a América Latina e África (não mencionada, mas subentendida no manifesto), com consequente aumento da participação de empresas e produtos brasileiros nas economias de outros países.

    Em suma: o nacionalismo, quando “vira-lata”, serve de base para políticas que se não são diretamente fascistas andam dele bem próximas; e quando “de pedigree”, serve de base para políticas que tendem ao imperialismo. É para esta infeliz dicotomia que tentamos chamar a atenção desde sempre.

    Meter o dedo nesta ferida não nos traz popularidade como traz, de um e de outro lado do Atlântico, a panaceia nacionalista; mas serve para entender um pouco melhor as alternativas criadas pelas ações do presente, e quais tem maior probabilidade de se efetivarem por força dos interesses dos sujeitos políticos em conflito, e de suas alianças.

  7. Fico na dúvida se o Passa Palavra teve uma mudança de posicionamento, ou usam o termo “Capitalismo de Estado” como englobando também o fascismo, e não apenas o dito socialismo soviético, o stalinismo, o castrismo, entre outros.

  8. Marcus,
    Capitalismo de Estado é uma classificação económica, não política. Vários fascismos não se podem classificar como capitalismos de Estado, mas alguns tenderam nesse sentido e desenvolveram, em certas áreas económicas, formas de capitalismo de Estado. O Passa Palavra pensa que um abandono do euro e a adopção de um escudo depreciado levaria a um capitalismo de Estado sustentado em formas políticas autoritárias, mais verosimilmente de tipo fascista, o que chamámos um fascismo surgido à esquerda.

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