Malthus merecia melhor sorte. Por João Bernardo
Robert Malthus é sempre invocado pelos defensores dos limites do crescimento económico, mas o facto de ele ter invertido as suas posições é o primeiro grande desmentido à teoria do esgotamento da natureza, e um desmentido infligido pelo seu próprio criador.
1.
Malthus tornou-se conhecido — estimado por uns e odiado por outros — como autor de An Essay on the Principle of Population, uma obra cuja primeira edição data de 1798 e de que apenas é recordada a tese central, que a população tende a crescer em progressão geométrica enquanto a produção agrícola tende a crescer somente em progressão artimética. Malthus merecia melhor sorte.
Antes de mais porque foi ele o primeiro professor de economia em Inglaterra, e não são muitos a poderem gabar-se de ter inaugurado no seu país uma disciplina científica. Além disso, Malthus ensinava economia no East India Company College, uma instituição destinada a formar os funcionários da Companhia das Índias, e ainda aqui ocupou a primeira fila no seu tempo, porque a Companhia das Índias foi, antes das grandes companhias transnacionais contemporâneas, a mais pura expressão da soberania de empresa. Por outro lado, a Companhia das Índias esteve na génese da formação do funcionalismo público moderno nos países anglo-saxónicos, inspirando as reformas administrativas na Grã-Bretanha e depois nos Estados Unidos.
Além disso, se aquela tese de Malthus redundou, enquanto previsão, num estrondoso fracasso, ela não era inteiramente desprovida de razão de ser. Nas condições demográficas da época conjecturar que a população tendesse a multiplicar-se numa progressão geométrica, duplicando em períodos de vinte e cinco anos, tinha uma certa base realista e, aliás, quando o Essay foi publicado a população europeia era de cerca de 150 milhões de pessoas e a população mundial atingia cerca de 750 milhões, um montante que equivale ao da população europeia actual, enquanto a população mundial ultrapassa agora os 7.100 milhões. O maior insucesso do Essay foi supor que a produção de alimentos tenderia a expandir-se numa simples progressão aritmética, o que não tinha um fundamento empírico válido. E como na realidade o aumento da produção agrícola ultrapassou muito o crescimento populacional, a relação entre as duas tendências não correspondeu às previsões de Malthus.
No entanto, o que é quase sempre esquecido, Malthus acabou por ter em parte razão, já que a humanidade limitou os nascimentos. É certo que esta limitação se fez de forma muito diferente da que ele desejara, pois o seu moralismo religioso não aceitaria os métodos anticoncepcionais hoje prevalecentes. Também é certo que nos países onde se operou a estabilização demográfica ela deveu-se a motivos ignorados por Malthus e que ele não poderia antecipar. Malthus esperava que a razão levasse as pessoas a diminuir a descendência, enquanto nos países ricos as determinantes económicas funcionaram mais do que a razão, ou sobrepuseram-se a ela, na medida em que passou a ser rentável ter menos filhos. Num sistema de exploração baseado predominantemente na mais-valia absoluta, a produtividade é escassa e as famílias pobres têm interesse em procriar uma prole numerosa, que sirva rapidamente de mão-de-obra e ajude a cultivar os campos ou contribua para o salário familiar. É esta a situação que se aproxima do modelo de Malthus. Num sistema de exploração baseado predominantemente na mais-valia relativa, porém, a produtividade é elevada e interessa às famílias gerar menos filhos. Num livro que está hoje disponível na internet expus este mecanismo.
«Nas épocas e regiões em que o capitalismo for capaz de dar grande desenvolvimento ao processo da mais-valia relativa, será, por isso, capaz de garantir uma significativa taxa de crescimento dos salários em termos materiais, com um duplo efeito combinado. Por um lado, o aumento da produtividade libera força de trabalho em cada ramo de produção, permitindo assim a abertura de novos ramos; e, enquanto o número de trabalhadores se revela excedente nos setores onde se verifica o aumento da produtividade, no âmbito da economia globalmente considerada esse acréscimo significa a redução do volume da força de trabalho relativamente ao volume dos elementos do capital constante e, portanto, também a diminuição da procura capitalista de trabalhadores em comparação com o aumento do número de bens produzidos. Este contexto é absolutamente contrário a qualquer crescimento demográfico significativo e condiciona as famílias de trabalhadores a não procriarem mais filhos do que aqueles que aceitará uma procura de emprego cuja tendência é visivelmente para o declínio relativo. Por outro lado, numa situação de aumento dos salários materialmente considerados, o interesse de cada família trabalhadora é, além de procurar aumentar marginalmente a remuneração familiar mediante o emprego em empresas, não só do pai, como da mãe, o de limitar o número de filhos. Como o salário familiar é ganho apenas pelos membros da família que trabalham em empresas, e como o seu acréscimo com abonos etc., é menos do que proporcional ao acréscimo de necessidades acarretado pelo aumento do número de filhos, interessa às famílias de trabalhadores limitar esse número, de forma a poderem gozar efetivamente o aumento permitido pelo acréscimo material do salário familiar. Estes efeitos conjugam-se e reforçam-se mutuamente, de maneira a ser tanto do interesse dos capitalistas como das famílias trabalhadoras a redução da procriação de futuros trabalhadores. A mais-valia relativa, ou seja, o desenvolvimento capitalista, acarreta assim, primeiro, o declínio da taxa de crescimento demográfico e, em seguida, a sua estabilização em números muito baixos» (pág. 99 do pdf).
Na prática, e quanto ao factor demográfico, sucedeu nos países ricos como se os avisos de Malthus tivessem sido escutados. Todavia, o mecanismo previsto no Essay funcionou ao contrário, já que o crescimento demográfico foi travado onde a produção de alimentos mais cresceu e precisamente em virtude dessa maior oferta de bens.
Nestas circunstâncias, importa sublinhar que o mesmo Malthus que deixou o seu nome associado a um modelo em que a procura tende a crescer muito mais rapidamente do que a oferta acabou por dedicar mais tempo e engenho a uma perspectiva inversa, segundo a qual a economia se encontra ameaçada pelo facto de a procura não conseguir corresponder ao aumento da oferta. Foi por causa deste segundo modelo, que o grande público insiste em ignorar, que eu observei que Malthus merecia melhor sorte.
2.
Em 1820 Malthus publicou os Principles of Political Economy, que tiveram dezasseis anos depois uma edição póstuma, revista e corrigida. É à segunda edição que me refiro aqui.
A preocupação central de Malthus nesta obra incidiu na possibilidade de os rendimentos serem poupados em excesso e, portanto, se o aumento da procura não fosse suficiente para absorver o aumento da oferta, extinguir-se o estímulo à produção de bens. Explicou ele que «se a conversão dos rendimentos em capital levada além de um certo ponto deve necessariamente, pela redução da procura efectiva do produto, lançar no desemprego as classes trabalhadoras, é óbvio que a adopção de hábitos frugais além de um certo ponto pode ser acompanhada primeiro pelas consequências mais aflitivas e depois por uma depressão acentuada da riqueza e da população» (pág. 326). Em suma, «o princípio da poupança, levado ao excesso, destruirá o estímulo da produção» (pág. 7). Note-se que o conceito de procura efectiva, central nesta tese, foi criado por Malthus, creio que numa obra de 1800. O mais grave dos erros de Say, James Mill e Ricardo, argumentou Malthus nos Principles, é o de suporem que a acumulação garanta a procura «ou que o consumo dos trabalhadores empregues por aqueles que têm a poupança como objectivo possa criar uma tal procura efectiva pelas mercadorias que estimule um crescimento ininterrupto do produto» (pág. 322). Malthus estabeleceu assim a distinção entre a capacidade potencial de produção e a produção efectiva, a qual decorria da procura efectiva. «Um homem que apenas possui o seu trabalho tem, ou não tem, uma procura efectiva de produtos, consoante o seu trabalho é, ou não é, objecto de procura por aqueles que dispõem de produtos» (págs. 311-312).
A tese central dos Principles havia já sido preparada desde 1814 até 1817 na assídua correspondência entre Malthus e Ricardo, e a discussão acerca deste assunto continuou no ano seguinte à publicação da primeira edição da obra. Os dois economistas trocaram ininterruptamente cartas afirmando as respectivas razões, sem jamais se convencerem um ao outro. O refrão é «a sua última carta está longe de me convencer, etc.», mas, apesar disso, a correspondência prosseguia, felizmente para nós, que podemos hoje seguir os processos de pensamento de ambos. Já na sua carta de 6 de Julho de 1814 Malthus considerara que «o grande elemento da procura efectiva — o desejo de consumir por aqueles que possuem rendimentos, tem sempre necessariamente uma grande influência» e acrescentara que Ricardo «o negligencia demasiadamente» (vol. VI, pág. 112). E insistira no tema em 11 de Setembro daquele ano: «É certo que um país tem a capacidade de comprar tudo aquilo que produz, mas posso facilmente imaginar que não o queira fazer […]» (vol. VI, pág. 132). «Tudo o que tem acontecido ultimamente parece ir em abono da minha ideia da eficácia todo-poderosa da procura», escreveu ele numa carta enviada para Ricardo em 11 de Janeiro de 1817, «e mostrar que estamos realmente muito longe de depender apenas da oferta» (vol. XI, pág. x).
Até então a preocupação dos economistas incidira no risco oposto, de a procura exceder a produção, o que levaria a uma crise na capitalização e, consequentemente, a uma crise na produção. Este era um receio compreensível, porque a nova economia burguesa mal começava a impor os seus critérios numa elite ainda permeada pelas normas de comportamento da nobreza, cujos status se definia pelo luxo e por dívidas sem fim. Ora, na época em que Malthus escreveu os Principles, conceber o perigo inverso revela uma notável capacidade de antecipação, que, no entanto, ele apresentou como uma simples constatação da realidade. «Praticamente no mundo inteiro, a riqueza real de todos os Estados que conhecemos é muito inferior às suas capacidades produtivas» (pág. 313). Malthus considerou até que se na Grã-Bretanha diminuísse duravelmente a taxa de crescimento do consumo, as manufacturas e a agricultura declinariam e o país empobreceria e despovoar-se-ia. Os sintomas da crise inglesa daqueles anos, escreveu ele numa carta para Ricardo em 16 de Julho de 1821, «afiguram-se-me exactamente semelhantes aos que resultariam de uma brusca transformação do trabalho improdutivo em produtivo e da diminuição do consumo improdutivo […]» (vol. IX, pág. 21).
Esta tese de Malthus deve distinguir-se igualmente da defendida por Sismondi, porque, embora os resultados aritméticos possam confundir-se, elas obedecem a mecanismos inversos. Autores como Sismondi, que adoptam a perspectiva do subconsumo, partem do princípio de que o desemprego tende a aumentar e os salários a reduzir-se e manter-se no mínimo, ou seja, de que os lucros dos capitalistas são antagónicos do aumento de poder aquisitivo dos assalariados. Por isso Sismondi defendia que o Estado devia intervir para refrear o aumento da produção e moderar o ritmo do progresso técnico. Muito do que hoje se considera esquerda devia mirar-se no espelho de Sismondi. Pelo contrário, a perspectiva de Malthus era a da sobreprodução, ou seja, a capacidade técnica para aumentar o volume do produto, independentemente do que sucedesse com os salários, e para ele a solução das crises decorria não da restrição da oferta mas do aumento da procura.
Para resolver a situação em que a poupança exagerada levava a procura a não corresponder ao aumento da oferta, Malthus propôs nos Principles que se aumentasse a remuneração e o número dos assalariados improdutivos. Note-se que ele adoptava a definição de trabalho produtivo e improdutivo consoante o critério da materialidade do produto e, portanto, considerava que os serviços pessoais não eram directamente produtivos. Isto significava que tanto os operários das manufacturas e os agricultores como os trabalhadores dos serviços podiam poupar e aplicar essa poupança no consumo, mas só os operários e os agricultores eram capazes, ao mesmo tempo, de aumentar a produção. Aliás, as melhorias técnicas, com o consequente acréscimo da produtividade, faziam com que cada vez menos trabalhadores pudessem fabricar cada vez mais bens. Nestas circunstâncias, observou Malthus, se os ricos aplicassem a poupança no assalariamento dos prestadores de serviços pessoais, estariam a contribuir para que o aumento do consumo fosse maior do que o aumento da produção e, deste modo, estimulariam a produção de bens. Para evitar as crises era necessário aumentar o rendimento salarial dos trabalhadores improdutivos, que consomem sem produzir. Já publicados os Principles, numa carta para Ricardo em 7 de Julho de 1821, Malthus insistiu que «se um aumento da capacidade de produção não for acompanhado por um aumento da despesa improdutiva, inevitavelmente reduzirá os lucros e lançará trabalhadores no desemprego» (vol. IX, págs. 10-11).
Contrariamente ao que sucede com os trabalhadores produtivos, explicou Malthus nos Principles, os trabalhadores improdutivos «são pagos a partir dos rendimentos e não do capital. Não têm tendência a aumentar os custos e diminuir os lucros. Pelo contrário, deixam inalterados os custos de produção, na medida em que estes custos dizem respeito às quantidades de trabalho necessárias para obter cada mercadoria, e entretanto aumentam os lucros, pois aceleram a procura dos produtos materiais, em comparação com a sua oferta» (pág. 409). Malthus, porém, referia-se apenas aos trabalhadores improdutivos decorrentes dos rendimentos privados, já que os outros, como os soldados, os marinheiros ou os funcionários do Estado, eram pagos com a receita dos impostos e da dívida pública e as vantagens obtidas quanto à distribuição de rendimentos e ao aumento da procura podiam ser anuladas pelas desvantagens resultantes do agravamento fiscal.
Em resumo, de acordo com os Principles, existe um nível de equilíbrio entre, por um lado, a poupança que leva ao investimento e, por outro lado, a poupança que leva o consumo a corresponder ao aumento da oferta. Se esse equilíbrio for rompido, o excesso de poupança, logo, a insuficiência relativa do consumo, faz com que uma parte da nova oferta não encontre comprador, o que deixará muitos capitais sem lucro e lançará muitos trabalhadores no desemprego, retirando o incentivo à produção. É a questão da procura efectiva que, nesta obra, explica as crises. Para ultrapassar a crise seria necessário aumentar a procura sem que, numa primeira fase, aumentasse a produção, senão o remédio não surtiria efeito. Ora, isto só se conseguiria se os ricos assalariassem um maior número de trabalhadores improdutivos, os quais consomem sem produzir. Este aumento da procura levaria, na fase seguinte, à reactivação da produção, de modo a que a oferta pudesse corresponder à nova procura, o que rentabilizaria os capitais e expandiria o emprego. A crise ficaria então ultrapassada.
Keynes inspirou-se no modelo de desequilíbrio formulado por Malthus, resultante da insuficiência da procura, para conceber o tipo de desequilíbrio em que a poupança aumenta mais do que o investimento. E ainda nas soluções propostas para esse desequilíbrio Malthus foi um precursor de Keynes, já que antecipou a observação das diferenças sociais na propensão marginal ao consumo, considerando que é muito mais importante a adição de várias procuras de indivíduos com pequenos rendimentos, que se repitam com elevada periodicidade, do que uma só procura de um indivíduo com rendimentos elevados, que compre bens muito duráveis (pág. 374). E numa carta de 7 de Julho de 1821, posterior à primeira edição dos Principles, Malthus deixou clara a relação entre o nível global do consumo e a repartição do produto ao escrever que «a questão principal é se ele», o produto, «é distribuído entre as várias partes interessadas de uma maneira que dê lugar a uma procura realmente efectiva da produção futura» (vol. IX, pág. 10).
Porém, contrariamente ao que seria necessário pôr em prática cem anos depois, no New Deal e no Welfare State, Malthus desconfiava da acção governativa. Ele considerava que o aumento da dívida pública era um meio de intervenção muito arriscado e, por isso, escreveu nos Principles que «ninguém teria a ideia de confiar a qualquer governo os meios de proceder a uma diferente distribuição da riqueza tendo em vista o bem geral» (pág. 410). Apesar disto, «quando nos esforçamos por socorrer a classe trabalhadora num período como o actual», nos anos seguintes às guerras napoleónicas, «é preferível dar-lhe emprego naqueles tipos de trabalho cujos frutos não são postos à venda no mercado, tais como estradas e obras públicas» (pág. 429). Malthus temia, é certo, que este tipo de intervenção dificultasse o reajustamento posterior dos mercados. Tudo somado, porém, «dar emprego aos pobres em estradas e obras públicas e uma tendência dos proprietários e pessoas ricas para fazer construções, melhorar e embelezar as suas terras e empregar trabalhadores e criados são os meios mais ao nosso alcance e mais directamente calculados para remediar os inconvenientes resultantes da perturbação no equilíbrio entre produção e consumo, provocada pelo facto de soldados, marinheiros e várias outras categorias empregues na guerra terem sido convertidos subitamente em trabalhadores produtivos» (pág. 430).
3.
Nos Principles Malthus considerou que os trabalhadores produtivos eram capazes de aumentar a produção dentro de limites não definidos, mas necessariamente muito consideráveis. «É sem dúvida verdade que a riqueza produz necessidades, mas é uma verdade mais importante ainda a de que as necessidades produzem riqueza», afirmou ele, em contraste flagrante com o modelo demográfico que expusera no Essay e invertendo a relação entre o ritmo de crescimento da população e o ritmo de crescimento da produção. «A maior das dificuldades na conversão de países não civilizados e escassamente povoados em países civilizados e populosos consiste em inspirar-lhes as necessidades melhor calculadas para os estimular a esforçar-se pela produção de riqueza» (pág. 403). Mas mesmo sem considerarmos o colonialismo e limitando-nos aos países onde o capitalismo estava já estabelecido, o facto de nos Principles Malthus considerar a procura efectiva como fonte de problemas leva a concluir que, se o consumo pode estimular a produção, é porque os limites naturais têm elasticidade. Já na carta de 9 de Outubro de 1814 para Ricardo, apesar de ter recordado «o que escrevi acerca da questão dos alimentos e da população», Malthus conduziu a sua argumentação invocando a ocorrência de «melhoramentos» «quer na agricultura quer nas manufacturas» (vol. VI, pág. 140). Foi este o ponto de vista adoptado nos Principles e, ao admitir que, «como está sempre a suceder, os aperfeiçoamentos introduzidos nas máquinas, a queda dos lucros e o aumento das aptidões [skill] tanto nas manufacturas como na agricultura façam com que um grande volume de artigos manufacturados possa ser obtido muito mais facilmente do que antes, enquanto o aumento das aptidões na agricultura evite qualquer aumento da dificuldade de obtenção de matérias-primas» (pág. 58), ao admitir isto Malthus aceitava que os limites naturais fossem extensíveis a tal ponto que podiam desencadear crises de excesso da produção relativamente à procura efectiva. Também é sugestiva a carta que escreveu para Ricardo em 5 de Maio de 1815, onde aceitou a possibilidade de a população não aumentar proporcionalmente ao aumento das capacidades produtivas, o que poderia impedir que a oferta criasse a sua própria procura (vol. VI, pág. 225), ou seja, Malthus avançou ali uma hipótese exactamente oposta ao modelo que havia defendido no Essay.
A este respeito, é curioso que Marx, ao citar em O Capital uma passagem dos Principles que indica a possibilidade de o crescimento da acumulação capitalista ser superior ao crescimento populacional, não tivesse destacado o facto de esta tese implicar a renúncia ao modelo demográfico a que geralmente está associado o nome de Malthus.
Nos Principles Malthus seguiu tanto quanto lhe foi possível The Wealth of Nations, de Adam Smith, e enquanto para os contemporâneos, e ainda hoje para muitos, a obra de Smith era dominada pela noção da invisible hand, a mão invisível dos mercados, Malthus sublinhou a inspiração desenvolvimentista daquele livro. Aliás, as preocupações desenvolvimentistas de Malthus ficam patentes quando observamos que o capítulo VII da primeira edição dos Principles, On the immediate causes of the progress of wealth, foi convertido na segunda edição em Livro II, On the progress of wealth, adquirindo assim maior relevo e autonomia. A nova versão da economia malthusiana não se apresentou como uma heterodoxia relativamente a Smith, mas como uma polémica relativamente às leituras de Smith que tiveram em Ricardo o principal expoente.
Criticando a teoria ricardiana da renda fundiária, Malthus negou que a renda fosse assimilável ao excesso do preço sobre o custo de produção devido a um monopólio. Lemos nos Principles que «a fertilidade da terra confere-lhe a capacidade de produzir uma renda, porque produz um volume excedentário de bens indispensáveis que ultrapassa as necessidades dos agricultores; e o carácter próprio dos bens indispensáveis à vida, quando estes estão adequadamente repartidos, tende de maneira decidida e constante a conferir um valor a esse excedente, incrementando uma população que forme uma procura» (pág. 143). Malthus chamou a atenção para o facto de já os fisiocratas terem insistido nesta propriedade do solo como fundamento da renda, e na mesma perspectiva acrescentou que «a renda é o resultado natural de uma qualidade inestimável do solo, que Deus outorgou à humanidade — a qualidade de ser capaz de sustentar mais pessoas do que aquelas que são necessárias para a trabalhar […]» (págs. 147-148). Se a terra diminuísse a sua fertilidade de metade, argumentou Malthus, a economia ficaria gravemente comprometida e, neste caso, grande parte das terras hoje cultivadas seria abandonada e a renda diminuiria, pois o declínio económico reduziria a população e a procura.
Ora, esta teoria da renda é contrária ao modelo sempre associado ao nome de Malthus, em que a renda tenderia para infinito, até que a catástrofe demográfica a fizesse tender para zero. Nos Principles, porém, o factor de mudança não são os movimentos populacionais mas a produtividade da terra, cujo aumento provocaria um aumento demográfico e estimularia a economia, aumentando portanto a renda. Embora Malthus considerasse que as economias de escala eram uma característica geral das manufacturas e os rendimentos decrescentes eram uma característica geral da agricultura e continuasse a censurar os pobres por fazerem filhos em grande número e de maneira imprevidente, aquele mecanismo pelo qual o aumento da população pressionaria ao aumento da área cultivada e, portanto, ao aumento da produção agrícola é contrário ao modelo exposto no Essay.
Malthus explicou que analisara no seu ensaio sobre a demografia a dominância da oferta sobre a população de um país, mas que nos Principles iria analisar as causas que determinam essa oferta. Dentro de certos limites, o progresso populacional aumenta a procura e estimula a economia. Porém, «a pressão populacional, esbarrando com a limitação dos meios de subsistência, não fornece um estímulo efectivo ao crescimento ininterrupto da riqueza […]» (pág. 311). Mas o principal obstáculo viria da natureza ou da sociedade?
Malthus adoptara a medida de valor proposta por Adam Smith, segundo a qual o valor de um produto era definido pela força de trabalho que ele permitisse assalariar. Assim, explicou Malthus, quando a população crescesse mais do que os meios de subsistência, a porção de meios de subsistência destinada a cada trabalhador seria menor, o que levaria o seu valor a aumentar, já que a mesma quantidade de produto permitiria angariar mais trabalho. Consequentemente, no que diz respeito à renda, mais terras e terras menos férteis passariam a ser cultivadas. Em polémica contra Ricardo, a tese de Malthus nos Principles é a de que a renda fundiária é um factor de progresso, porque leva ao cultivo de mais terras, à produção de mais géneros agrícolas, ao aumento do emprego e assim por diante. Analisando uma situação inversa, e criticando Say, James Mill e Ricardo, argumentou Malthus que as mercadorias não devem ser comparadas apenas umas com as outras mas devem ser comparadas simultaneamente com os custos de produção e com a procura. Ora, se a produção aumentar e a procura for estacionária, ainda que os custos de produção se mantenham, diminuirá o valor das mercadorias, medido pela força de trabalho que elas permitem assalariar. Como resultado deste processo, a acumulação de capital será travada (págs. 316-317). É difícil ser mais taxativo e conciso do que Malthus foi na carta de 26 de Janeiro de 1817: «Sou absolutamente da opinião de que na prática o obstáculo efectivo que se ergue à produção e à população resulta mais da falta de estímulo do que da falta de capacidade produtiva» (vol. VII, pág. 123).
Assim, o contraste é total entre o modelo demográfico do Essay e a análise das crises feita nos Principles, porque aqui o declínio populacional resulta de uma poupança excessiva que trava as potencialidades do consumo e da produção. É certo que Malthus caiu na falácia de que o aumento de produtividade da maquinaria reduziria o emprego total, mas creio que na época em que ele escrevia não havia ainda base empírica para pensar o contrário. Apesar disto, considerou que «há poucas razões para recear que o acréscimo de maquinaria traga consequências permanentemente funestas», com a condição de que se amplie a procura e o consumo. «Tal como a fertilidade da terra, a invenção de boas máquinas proporciona uma extraordinária capacidade produtiva». E a concluir esta passagem teórica decisiva, Malthus observou que «as três causas principais mais favoráveis à produção são a acumulação de capital, a fertilidade do solo e as invenções para poupar trabalho», mas que «como todas elas tendem a facilitar a oferta, sem referência à procura, não é provável que quer separadamente quer em conjunto proporcionem um estímulo adequado ao crescimento ininterrupto da riqueza» (pág. 360).
A rigidez ou elasticidade da procura eram para Malthus factores fundamentais, de modo que a oferta e a procura não eram variáveis simétricas, e Malthus destroçou a tese de que era possível haver excedentes de uma dada mercadoria mas não seria possível haver excedentes do conjunto de todas as mercadorias. As mercadorias não eram sempre trocadas por outras mercadorias, argumentou ele, mas eram igualmente trocadas por trabalho, o que levantava a questão da falta de emprego. «[…] um aumento da população onde não haja necessidade de uma quantidade adicional de trabalho será rapidamente travado pela falta de emprego e pelos parcos meios de sustentação dos empregados e não suscitará o estímulo necessário a um aumento de riqueza proporcional à capacidade produtiva» (pág. 313). O problema vem da falta de emprego, ou seja, de uma insuficiência da procura que leve a investimentos inferiores ao necessário, não de imposições naturais, a tal ponto que para solucionar a questão teria de se recorrer às medidas de ultrapassagem da crise que expus acima. Uma vez mais a teoria do desenvolvimento levou a melhor sobre a teoria da população.
Contrariamente ao que sucedera no seu modelo demográfico, Malthus passou a conceber uma situação em que a capacidade de produção de bens excede a procura social, e este é um modelo exactamente oposto ao que é defendido pelos ecologistas. É uma triste ironia observarmos que uma certa esquerda partidária do decrescimento económico prolonga o Malthus de An Essay on the Principle of Population contra o Malthus final, dos Principles of Political Economy.
Referências
O meu livro que refiro e está agora disponível na internet é: Economia dos Conflitos Sociais (1ª ed.: São Paulo: Cortez, 1991; 2ª ed.: São Paulo: Expressão Popular, 2009). A obra de Malthus é: Thomas R. Malthus, Principles of Political Economy, Considered with a View to their Practical Application, Nova Iorque: Augustus M. Kelley, 1964. As cartas de Malthus para Ricardo encontram-se em Piero Sraffa e M. H. Dobb (orgs.), The Works and Correspondence of David Ricardo, Cambridge: Cambridge University Press, 1951-1973. A passagem de O Capital que refiro encontra-se em Karl Marx, Le Capital. Critique de l’Économie Politique, Paris: Éditions Sociales, 1973, vol. III, pág. 78 ou Karl Marx, Capital. A Critical Analysis of Capitalist Production, Moscovo: Foreign Languages Publishing House, 1961, vol. I, pág. 634.
Este artigo é ilustrado, de cima para baixo, com fotografias de Don McCullin (a primeira), Louis Stettner (a segunda) e Henri Cartier-Bresson (a última). As restantes ilustrações representam esculturas de Claes Oldenburg.
A série Post-scriptum: contra a ecologia é formada pelos seguintes artigos:
1) a raiz de um debate
2) o lugar-comum dos nossos dias
3) a hostilidade à civilização urbana
4) a agroecologia e a mais-valia absoluta
5) Georgescu-Roegen e o decrescimento económico
6) Malthus, teórico do crescimento económico
7) «Os Limites do Crescimento» ou crescimento sem limites?
8) oportunidades de investimento e agravamento da exploração
sobre aquecimento global:
Leia a íntegra da entrevista com o climatologista Richard Lindzen
http://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2013/10/1352924-leia-a-integra-da-entrevista-com-o-climatologista-richard-lindzen.shtml
Já que Lucas indicou um link para despejar um pouco de água fria no aquecimento global, indico de novo o link para a tese de doutorado de Daniela de Souza Onça, na Usp:
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8135/tde-01062011-104754/pt-br.php
Mas será que não existem entre os leitores deste site pessoas suficientemente interessadas por economia para apreciar a contribuição que o Maltuhs dos Principles forneceu para as discussões actuais?
João,
não acho que falte leitores interessados em economia, talvez o que falte sejam leitores suficientemente íntimos com esta ciência para poder dizer algo de interessante nos comentários.
Tenho a impressão, por exemplo, de que o interesse em Marx presente em grande parte dos jovens militantes e simpatizantes “de esquerda” hoje tem mais a ver com a busca por uma “weltanschauung” ou por conceitos sociológicos e políticos, do que por uma análise do mundo da produção e circulação de bens. Isso é apenas uma impressão, é claro, mas vai de encontro à facilidade com que uma pessoa repousa sua leitura política na idéia de luta de classes ao mesmo tempo em que considera o conceito de produtividade como algo “capitalista”.
Em extrema consonância com esta tendência vemos se propagar o interesse pelas tais hortas urbanas, o autocultivo de maconha, a produção artesanal de cerveja, um enorme interesse nos processos de produção de pequena escala, também impulsionados pelos conhecimentos técnicos, não necessariamente mais simples mas de menor escala, que hoje podem ser trocados pela internet.
Acaso você também identifica esta tendência na juventude atual? Ou isso é apenas uma impressão distorcida pela limitação do meu meio (e por pertencer a esta mesma juventude)?
PS: acho que a primeira vez que eu pessoalmente senti algum interesse e, mais do que tudo, respeito pela economia foi ao ler o Poema Pedagógico, livro de Anton Makarenko. Recomendo a todos, ler este livro é uma experiência intensa.
Lucas,
Escrevi no terceiro artigo desta série que as hortas urbanas cumprem uma função estritamente ideológica e ritual, são uma hierofania naquela relação mística com a natureza que hoje caracteriza uma grande parte do que, por razões complexas, continua a chamar-se esquerda. E junto com as hortas urbanas, com idênticas funções ideológicas, estão os cultivos e fabricos artesanais que você referiu. O carácter simplesmente ideológico dessas actividades confirma-se ao verificarmos que em tudo o mais os seus promotores estão inseridos nas tecnologias contemporâneas, usam a internet e as redes sociais para se comunicarem e compram a roupa nas lojas em vez de tosquiarem eles mesmos as ovelhas ou de cultivarem e fiarem o linho e o algodão e instalarem um tear em casa. Dedicam umas horas à produção artesanal de cerveja ou de yogurte como outros vão à missa ou ao culto. O processo ideológico é o mesmo. No oitavo e último artigo retomo este assunto com um pouco mais de detalhe.
Para gente assim — e é esta gente que hoje povoa aquilo que se insiste em chamar esquerda — a economia reduz-se a ideias feitas e a termos empregues como insulto. Basta um exemplo. A esquerda brasileira não menciona o governo sem o apelidar de neoliberal. E se eu perguntar como pode ser neoliberal um governo que dispõe da capacidade de intervenção garantida pelo BNDES, que manobra os fundos de investimento dos sindicatos, que age sobre a banca comercial através do Banco do Brasil, que intervém no mercado de trabalho através do Programa Bolsa Família, que institui o PAC, se eu perguntar isto ou não me respondem ou chamam-me coisas, mas quanto a argumentos económicos, zero.
Disse que ia dar só um exemplo, mas acrescento outro. Com a crise desencadeada em 2008 nos países economicamente mais desenvolvidos, agravada agora na periferia meridional da zona euro, voltou a ter curso a noção de que existe um capital especulativo e nocivo, o capital financeiro, e um capital produtivo e benéfico, aplicado na indústria, na agricultura e na parte material dos serviços. Esta noção fora corrente na extrema-direita entre as duas guerras mundiais e é agora adoptada pela chamada esquerda na União Europeia e nos Estados Unidos, que em geral reduz a isto as suas ideias económicas. Vários artigos deste site têm chamado a atenção para as consequências práticas catastróficas que decorrem desta indigência da teoria económica na esquerda contemporânea.
O raciocínio económico foi substituído pelo lugar-comum moralista. Você fala de Weltanschauung, uma visão global do mundo. Sim, mas com a condição de essa visão ser entendida como simples colecção de palavras, desprovidas da função de conceitos e reduzidas a objurgações e insultos. A isto se reduz a vida ideológica de uma grande parte da chamada esquerda.
E enquanto essa esquerda esgrime com palavras gastas, a tecnocracia vai procedendo a análises económicas rigorosas e os gestores vão remodelando os sistemas de administração.
E eis que vêm Bill e Melinda Gates para, entre outras coisas, demonstrar que (1) os “cenários apocalípticos em que a oferta de alimentos não consegue acompanhar o crescimento da população” são desprovidos de fundamento e (2), como colocado por João Bernardo, que “Malthus acabou por ter em parte razão, já que a humanidade limitou os nascimentos”. Vale a pena conferir:
«Desde pelo menos Thomas Malthus, em 1798, que as pessoas se preocupam com cenários apocalípticos em que a oferta de alimentos não consegue acompanhar o crescimento da população. Esse tipo de pensamento já causou um monte de problemas no mundo. A ansiedade sobre o tamanho da população mundial tem uma tendência perigosa de substituir a preocupação pelos seres humanos que compõem essa população.
Deixar crianças morrerem agora para que elas não padeçam mais tarde não é apenas cruel. É também uma estratégia que não funciona.
Pode ser surpreendente, mas os países que têm mais mortes também estão entre as populações que mais crescem no mundo. Isso ocorre porque as mulheres desses países tendem a ter o maior número de filhos.
Quando mais crianças sobrevivem, os pais decidem ter famílias menores. Considere a Tailândia. Por volta de 1960, a mortalidade infantil começou a cair. Logo, por volta de 1970, depois que o governo investiu em um forte programa de planejamento familiar, as taxas de natalidade começaram a cair. No curso de apenas duas décadas, as mulheres tailandesas passaram de uma média de seis filhos para apenas dois. Hoje, a mortalidade infantil na Tailândia é quase tão baixa quanto a dos EUA, e as mulheres tailandesas têm uma média de 1,6 filho. Esse movimento de queda nas taxas de mortalidade seguida por queda nas de natalidade é observado na grande maioria dos países do mundo.
Salvar vidas não leva à superpopulação. É exatamente o oposto. A criação de sociedades onde as pessoas têm acesso à saúde básica, relativa prosperidade, igualdade fundamental e acesso a contraceptivos é o único caminho para um mundo sustentável.
Mais pessoas, especialmente líderes políticos, precisam entender os equívocos por trás desses mitos. O fato é que, se você olhar para a questão como um indivíduo ou um governo, as contribuições para a promoção da saúde e desenvolvimento internacional oferecem um retorno surpreendente.»
Texto publicado no The Wall Street Journal. Aqui: http://online.wsj.com/news/articles/SB10001424052702303802904579330842486442398?mod=WSJP_inicio_MiddleTop&mg=reno64-wsj&url=http%3A%2F%2Fonline.wsj.com%2Farticle%2FSB10001424052702303802904579330842486442398.html%3Fmod%3DWSJP_inicio_MiddleTop